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Discurso para I. Encontro da  ABL com as Academias da América Latina - 2020

Sonhos da Origem

Marco Lucchesi

 

Senhoras e Senhores Presidentes

Diretoras e Diretores

Caras amigas e amigos

Diante da espessa distopia que define a época atual, eis-nos aqui reunidos para celebrar os valores fundamentais da cultura. Nosso encontro faz história. Abrimos nossas casas ao diálogo com a América Latina. Quem sabe a consciência de um destino comum não institua um fórum permanente? A defesa da cultura e da diversidade desconhece fronteiras: une o Atlântico ao Pacífico, floresta, cordilheiras, ilhas e arquipélagos. Somos embaixadores da diferença. O azul de Rubén Darío e os arautos de Vallejo. A cosmologia de Cardenal e o paraíso de Lezama. Os signos de Octavio Paz e a língua de Huidobro. Ventos de Benedetti, amores de Roque Dalton. Nosso continente repousa na trama de Bioy Casares, no sertão de Guimarães Rosa.

Celebramos o patrimônio comum: a riqueza dos povos originários e as tantas línguas, de que não podermos abrir mão: camadas profundas que infundem outra espessura a nossas vozes: no coração do Logos, o fundamento da linguagem, o ayvú rapyta.

Defendemos a alteridade, os direitos linguísticos, as terras indígenas e quilombolas no Brasil. Para dizer não ao mesmo, e porque preservam os recursos naturais, inspiram a economia circular e designam o bem comum.

Seria penoso imaginar a Terra como um grafite solitário na Via-Láctea, deserta de humanidade. Perderia o melhor de si, a cintilação da noosfera, auge da escala evolutiva: a esfera do pensamento, como assevera Teilhard de Chardin. Não podemos perder a dimensão comunitária.

A agenda intercultural da América Latina, na era do pós-regionalismo procura o descentramento. Uma proposta multilíngue que se incline à cultura do encontro. Como quem procura recolher as pedras de Babel, pedras imateriais que Antônio Vieira encontrou ao longo do Amazonas, Rio-Babel, ecumênico e profundo, em diálogo com seus afluentes e tributários. Não há outra forma de equacionar a relação língua/ terra, tão imbricadas se mostram, senão dentro da cultura da hospitalidade.

Se não dispomos de uma gramática descritiva da língua do paraíso, intuímos suas virtudes poéticas, no plano das essências, na primeira aurora do mundo, pondo-se em marcha a nomeação adâmica, quando o curso do rio e das estrelas formavam um só destino.

Essa língua impensável requer uma projeção utópica, mediante poetas e tradutores que digam adeus às névoas do Uno e abracem vigorosamente o Múltiplo, vibrátil por definição, marcado pela beleza do Rosto.

O plurilinguismo nas Américas deve ser reativo à ontologia do Mesmo, que se espalha em escala planetária, nas imposições gasosas da economia global. O célebre ensaio de Eric Auerbach, “Filologia da Weltliteratur”, permanece atual, ao destacar a insolvência da diversidade, que se faz maior, desde as ruínas do Pós-Guerra:

“é chegada a hora de perguntar que significado possui a palavra Weltliteratur no sentido proposto por Goethe. Nosso planeta, campo da Weltliteratur, está se tornado menor e perdendo a sua diversidade (...) a suposição de que a Weltliteratur é a felix culpa: da divisão da humanidade em muitas culturas. Hoje entretanto a vida humana está se tornando uniforme. O processo de uniformidade (…) está minando todas as tradições individuais”.

A América Latina responde ao ensaio de Auebach com a inteligência da coruja de Minerva, de olhos acesos, a partir de políticas que promovam as línguas fundamentais. Comecemos com o legado ibérico enriquecido com as línguas que o renovam. Ampliar o espaço do castelhano em terras brasileiras e a língua portuguesa nos países da América-Latina, para saber melhor quem somos e para onde vamos.

As virtudes do bilinguismo promovem uma ética entre conjuntos de fricção (a língua um e a dois), conjuntos incompletos, bem entendido, que se movem instados por uma espécie de completude incompleta, ou pela tradução entre dois conjuntos, abrindo caminho para uma terceira via, terceiro rosto, de que ambos os conjuntos saem iluminados. Babel invertida, com fios de ouro, com uma etimologia que olha escandalosamente para o futuro.

Assim, dentro desse programa, sempre por reiniciar, volto ao ensaio de Auerbach, quando afirma que a casa da filologia é a Terra. Eis um gesto propício à defesa multilíngue de nosso continente, entre a filologia do planeta e a sintaxe da diversidade.

Promover a língua e a literatura é a missão de nossas academias. Assim, favorecemos a cultura da paz e da justiça social. Liberdade e igualdade integram nossa agenda. Mas não podemos esquecer a fraternidade, traço de união que avaliza as duas pontas. Eis por que não acatamos a intolerância, as formas de exclusão, autorreferentes. Não existem duas humanidades. É o que repito ao visitar os presídios.

A barbárie da razão nasce de um ensino sem compromisso ético. Impõe o sotaque do ressentimento, a entropia da agressão, promessas de saídas ilusórias. A barbárie é o atalho para o abismo. O continente segue em chamas, com o aquecimento global, o negacionismo e a teologia do mercado.

Nossa vocação repousa na conversão do belo e do bom. O conhecimento exige um compromisso inapelável. Cria responsabilidade, obriga a uma deontologia. O dever kantiano. Uma hierarquia de valores.

A Academia Brasileira de Letras redobrou esforços durante a pandemia, com ênfase na formação de leitores. Levou livros a todos rincões do país: terras indígenas e quilombolas, lares de longa permanência, bibliotecas prisionais e hospitalares, escolas de favelas e comunidades ribeirinhas do Amazonas.

Voltamos infelizmente à geografia da fome. Defendemos a inclusão do livro na cesta básica. Assinamos protocolos para a difusão cultural com a Câmara dos Deputados, a Marinha do Brasil, e as ONGs.

No meio do caos, optamos pelo diálogo da boa vizinhança. Princípio de luz em meio às trevas.

Comovidos com a pandemia, transmutamos a dor com a adesão da esperança. Impagável a dívida com os que morreram e suas famílias.

Devemos apostar na sinergia. Buscar sempre, e em toda a parte, um sentimento de paz e de igualdade.

Abrimos hoje um capítulo inédito em nossa história. As academias encontram-se mutuamente implicadas na busca do bem comum.

Cumprimento a todos com efusão. Agradeço os primeiros passos e a generosa resposta ao nosso apelo. Não mais estrela segregada, mas constelação. Permaneçamos juntos com os sonhos da origem de Oscar Cerruto:

tal vez un viento de esmeralda

un río un agua atronadora

una cascada de pájaros

un apogeo de augurios copioso

y de poderío

como los himnos del origen

como las lluvias

como los sueños del origen.

 

 

 

Acadêmico relacionado : 
Marco Lucchesi