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Discurso de Posse na Presidência da ABL - 2020/2021

Senhoras Acadêmicas

Senhores Acadêmicos

Senhoras e Senhores

Amigas e Amigos Internautas

 

A pandemia obriga ao distanciamento social para quebrar a cadeia de transmissão do vírus. Cuidados inegociáveis, diante dos casos que aumentam dia a dia. A tragédia alcançou 180 mil mortos. Será preciso identificar os corpos sepultados no Amazonas. Não pode haver na morte outra morte. Cada corpo exige o próprio nome.

A mais sentida solidariedade às vítimas e às famílias enlutadas. Compartilhamos o sofrimento dos pais das meninas Emilly Victoria, quatro anos de idade, e de Rebeca Beatriz, sete anos, feridas mortalmente pelas armas. Enquanto não houver culpados, somos todos réus.

Façamos um minuto de silêncio.

O ano de 2020 foi de tempestade perfeita: a eclosão da pandemia, a negação da realidade, a politização sanitária e a democracia hipertensa. Ouvimos frases impensáveis, dignas de uma antologia do horror. Houve quem temesse a morte de cnpjs, indiferentes à dos cpfs! Mero eufemismo cartorial, que considera a vida humana apêndice da economia, commodity da indústria, carvão para queimar.

A metáfora ígnea, aliás, devastou partes da Amazônia e Pantanal. E a pandemia incidiu sobre os povos indígenas, sitiados pelo fogo e pelo garimpo dos “comedores de floresta”, uruhi wapopë, como lembra Bruce Albert.

O debate desceu a níveis ilíquidos e não recomendáveis. Promoveu a ignomínia do racismo, a agressão ao Estado laico, e delírios de golpe.

Diante da terra em transe, decidimos que a posse da Diretoria não podia passar em branca nuvem. A cerimônia é prova de vigor, exercício da cultura da paz na distopia. As instituições culturais não podem calar sua voz, nem deixar de cumprir seu destino.

O salão nobre está deserto, faltam rostos, sobram cadeiras. Mas é um deserto povoado, na luz sutil da desmentida ausência: estamos em rede, agora, nas mídias sociais. Como não fazer memória deste vazio? Memória das potências que ampliam os limites do salão e da alma. A liturgia da posse é dever kantiano.

Todavia subsiste algo inadiável. E já não sei por onde começar. Sejamos fortes para buscar saídas. Não posso hesitar quando a realidade vocifera, mostrando-se impiedosa. A grande aceleração abriu feridas no sistema Terra. O projeto de crescimento ilimitado requer sua paga. Tornou-se impossível rolar a dívida. A era geológica do Capital, o assim chamado Capitaloceno, hipotecou todo o futuro. Cessaram as nuvens. Perdemos o azul. Ausentes, o Sol e a Lua. Fugiram as estrelas. Custa dizer, mas vou ao ponto. E sem rodeios: a abóboda celeste caiu! Ouviram muito bem: o céu desabou. Um vazio descomunal. Vazio como o céu de Pirandello. Maior que a angústia de Pascal.

Não foi por falta de aviso. Davi Kopenawa disse mil vezes que se não impedíssemos o desmatamento, a queda seria fatal e irreversível. Foi justamente o que se passou. Cometemos um crime ominoso. Perdemos a floresta. Perdemos Gaia.

Furiosos e desalojados, os celestes, ensaiam resposta. Parte de nós saiu despedaçada, com o fogo de Prometeu, engolindo nosso planeta.

O céu é feito de peles e camadas. Inúmeras instâncias e dimensões. Há muito céu guardado no céu. Quanta metafísica suspensa! O mistério transparente do azul. Sonho e poesia. Beleza e infinito. Sempre houve céu. Nunca deixou de haver. Perdido agora neste chão de iniquidades.

Estamos em 2150, no coração de Devastópolis, entre o deserto do Pantanal e a savana amazônica. O tempo das catástrofes passou. Navegamos no pós-apocalipse. Rios de amônia e mercúrio escorrem pesados. Não há peixes. A água potável acabou, substituída por um líquido industrial reciclado. Calor tremendo. Só os repteis se multiplicam. A flora consiste em mangues apinhados de gigogas. As poucas árvores, desprovidas de beleza, avultam cansadas. Os pássaros perderam suas virtudes, ápteros e afônicos. A humanidade não chega a quatro bilhões e a expectativa de vida é de cinquenta e dois anos.

O ciclo das pandemias, de que a Sars-coV-2 foi a antessala, abriu a caixa de Pandora.

Os negacionistas do futuro seguem coerentes. Insistem na “Inocência do carbono”, para não mencionar a bondade do plutônio, a exploração da Lua e Marte, após o esgotamento da Terra. Padecem do mesmo não saber, que o DSM do século XXII registra como agnosite, doença de quem ignora. Defendem a platitude da Terra e das mentes, a idolatria das leis de mercado, com o indisfarçável ódio a Keynes, considerado um líder revolucionário.

Uma junta de teólogos governa o mosaico do antigo ecúmeno, reduzido a um longo arquipélago de biomas devastados.

Mas por favor, não desanimem. Não pensem que escolhi tema ingrato só porque vivemos tempos ingratos. Sei que deveria ser mais otimista. Confesso o desacerto e quase me arrependo. O final será mais leve. Estamos falando de um futuro distante, talvez ainda reversível, a depender do conjunto de nossas atitudes.

De mais a mais, há sempre boa notícia, mesmo quando não. Em 2150 os guaranis alcançaram a Terra sem Males, o Yvy marã e'ỹ. Os yanomami começam a recompor o firmamento. A cidade de Compost, visitada por Donna Haraway, ensaia a afinidade entre as espécies, a simbiose de humanos e borboletas, com a famosa geração das Camilas. Não falo de países, porque a obsessão com o estado mínimo decretou o fim das grandes extensões geopolíticas.

Há um poeta glosado no pós-apocalipse, de língua escura e suave:

Sor'aqua, la quale è multo utile et humile et pretiosa et casta. Sora nostra matre terra, la quale ne sustenta et governa, et produce diversi fructi con coloriti flori et herba.

Irmã água, que é muito humilde e preciosa e casta. Nossa Terra, mãe e irmã, que nos sustenta e governa, e produz diversos frutos, com coloridas flores e ervas.

Ao fim do poema, todos suspiram saudosos. E cobrem de insultos os antepassados que pouco ou nada fizeram para impedir a quebra do céu.

Senhoras e Senhores

Voltemos do futuro ao salão nobre da Academia, ao aqui e agora, dia 11 de dezembro de 2020, esse ano palíndromo e aziago.

Mesmo de portas fechadas, a Casa de Machado não deixou de cumprir sua agenda solidária e cultural. Edgar Morin publicou, na contramão dos extremos, um precioso ensaio sobre a fraternidade. A Academia Brasileira de Letras atuou justamente em chave fraterna, em asilos, prisões, hospitais, periferias, centros de ensino. Quando possível, incluiu o livro na cesta básica. Porque voltamos, o Brasil e o mundo, à geografia da fome. Mas nem só de pão: a cultura é fome de liberdade.

Acabamos de doar um forte conjunto de livros à Cidade de Deus e, mediante acordo com a Câmara dos Deputados, destinamos em alguns dias volumes às comunidades quilombolas do país, seguindo as indicações da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas.

O site da Academia marcou presença na cultura brasileira. Inspirou diversas casas de cultura e ampliamos intensamente o número de visitas e inscrições.

Assinamos protocolo de amizade com as academias de Angola, Cabo Verde, Moçambique e São Tomé e Príncipe para estreitar nossa raiz fundamental com a África. Organizamos também o primeiro congresso da ABL com as suas coirmãs da América-Latina, encontro memorável para discutir a missão das academias no mundo contemporâneo. E responderam a Rubén Darío, poeta do azul, positivando o papel das academias. Acicatados pelos versos de Darío: “de las epidemias y de las academias, libranos, Señor!"

Com a vacina, devemos retomar o contato presencial, o face a face tão estimado, em aldeias e periferias, unidades socioeducativas e espaços de privação de liberdade. Porque a leitura é um direito fundamental.

A propósito de menores em conflito com a lei, relato um episódio no centro Dom Bosco, antigo Padre Severino, na Ilha do Governador. Vi uma cidade feita com Lego, que incluía acessibilidade e cuidados com a natureza. Jovens de distintas facções sonharam, juntos, uma estética da inclusão, aquela que jamais conheceram.

Como perder a esperança?

As instituições brasileiras precisam abrir portas e janelas, para que se tornem mais coloridas e diversas, mediante a presença de afrodescendentes e povos originários. Assumir a diferença significa ampliar a emancipação, combater o racismo e democratizar a República. Não queremos a entropia do Mesmo. Somos todos brasileiros. Somos filhos do plural.

Pretendemos ampliar, em 2021, o setor de lexicologia e lexicografia, arquivo e bibliotecas da ABL. Se a incerta economia assim o permitir. Será um ano acerbo. A economia vai mal. Se não houvéssemos tomado medidas fortes, não estaríamos aqui neste fim de tarde. A boa nova é a retomada, com o patrocínio da Light, do prêmio Machado de Assis. Uma vitória para o sistema cultural. E trabalhamos em outras frentes.

Senhoras Acadêmicas

Senhores Acadêmicos

Agradeço a votação, prova maior da generosidade dos colegas do que da competência do presidente. Obrigado. Cada ação que tomamos foi resultado de consenso e compromisso com a ABL. Saudoso de nossa convivência, de nosso encontro, de nossa intensa proximidade.

A governança remota da Academia foi altamente desafiadora. Um delicado equilíbrio para contemplar as diferenças que nos unem, as obrigações que nos apertam e as respostas que nos correspondem. A criatividade foi nosso lema.

Teremos de recomeçar de um grau zero. O apoio de todos foi essencial para a refundação da Casa, desde 2018. Agradeço à Diretoria, assim constituída: Merval Pereira, secretário-geral, Antônio Torres, primeiro-secretário, Edmar Bacha, segundo-secretário e José Murilo, tesoureiro. Agradeço também aos Acadêmicos: Alberto Venancio Filho, diretor das bibliotecas, Cicero Sandroni, diretor da Revista Brasileira, Evaldo Cabral de Mello, diretor das publicações, Geraldo Holanda Cavalcanti, diretor dos anais, e José Murilo de Carvalho, diretor do Arquivo.

Meu obrigado a todos os funcionários que compreenderam a reengenharia da Casa de Machado e a ela se dedicaram com denodo e lealdade.

Senhoras e Senhores

Prometi que o fim seria leve. Espero que sim. Talvez mediante a cosmopolítica de Isabelle Stengers. Na passagem do consenso para a aliança, unindo natureza e cultura, quando poetas e cientistas constroem pontes de amizade, como os adolescentes do centro Dom Bosco. Não poderia recusar um viés antropológico, na inconstância da alma selvagem, para citar Viveiros de Castro, não poderia tampouco esquecer a professora Lívia Barbosa, da UFF, que me iniciou em Lévi-Strauss.

Cada sistema etnográfico é uma epistemologia. E hoje, uma espécie de SOS. Penso no futuro de Gaia e no xamã da floresta Davi Kopenawa, a quem me dirijo.

Caro Davi, queremos sonhar a Terra com você. Convoca os xapiris, os espíritos da floresta, para evitar que o céu desabe. É infinito o número de deuses e de estrelas. Melhor que tanto peso não recaia sobre nossos ombros. Mas se cair, vamos soerguê-lo, juntos. Impedindo a xawara, a fumaça tóxica dos metais, a perigosa feitiçaria do capitalismo. Protegendo as terras indígenas e fiscalizando-as, segundo o espírito da Carta da Terra. Atacando o fetiche da mercadoria, aguarrás do campo subjetivo. Considerando nosso corpo como fruto de Gaia. Buscando alianças tentaculares, fraternas e solidárias com a vida. Apostando no decréscimo sereno, na economia circular e sustentável.

A desigualdade social fere o metabolismo da Terra. Nossa hybris é imensa. Lutamos contra o relógio, sem a redenção de um Édipo em Colono. Ele não sabia, enquanto nós sabemos.

Melhor fechar os olhos ou arrancá-los? Eis um falso dilema. Precisamos arrostar os desafios, de olhos abertos. Se o céu cair, meu caro Davi, um misto de delicadeza e força poderá reposicioná-lo. Todos os saberes convocados. Tratemos da floresta e de seus povos, das cidades assimétricas, de nossos rios. A mente lúcida e as mãos firmes, para retesar as cordas e içar o azul do céu a amiores altitudes.

Não podemos perder um só deus, começando por Omomë, e também o colibri de Tupã e os deuses araweté. Só assim, como disse o profeta, “o lobo e o cordeiro viverão juntos, e o leopardo se deitará ao lado do cabrito e a vaca e o urso pastarão lado a lado”.

A Terra pode girar em torno do Sol, ainda que devastada, sem a nossa presença. Mas não podemos perder a memória frágil e sublime, escura e luminosa do humano, de nossos filhos, de nossos ancestrais.

O tempo corre. A nostalgia do mais não recua. O rosto do futuro cresce em nosso espelho. De rosto misterioso e seios fartos. Inteiramente feminino. Começam as dores do parto. Sentimos desde já sua beleza.

Acadêmico relacionado : 
Marco Lucchesi