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João Ribeiro

ESTILO E FORMA LITERÁRIA

                       “Teu sangue - rico esmalte de tua alma.”

                                                                                  Ferreira

                       “O artista pertence ao seu livro e não o livro ao artista.”

                                                                                 Novalis

Luís Boerne, que é um dos poucos estilistas alemães, cousa rara ali e que na sua própria frase “se houvera de contá-los pelos dedos ainda estes seriam sobejos”, entende que o verdadeiro estilo, o estilo do homem de gênio, em certa maneira é falho e pobre de beleza e de outros agrados; porque no estilo é cousa muito principal o caráter, e "é raro que um homem de caráter seja de trato amável". Assim o estilo.

Cícero escrevia excelentemente, mas não há estilo seu, porque é fora de dúvida que foi um mau caráter e um bandoleiro político. Tácito, ao contrário, não tem a pompa de Cícero, os seus períodos são breves e atalhados como que de cólera: mas deixou um estilo e era ao mesmo tempo grande homem de caráter.

Esse modo de ver de Luís Boerne coincide com o de Schopenhauer quando este diz (lembrando-se ao certo de Tácito) que a ironia é o estilo da História.

O que em todos, porém, assinala e singulariza o estilo é a paixão e o sentimento. E é razão que se diga tortura a arte de pensar e escrever, porque ela ondula que não corre e tem inflexões súbitas que não linhas certeiras e frias. A indignação tem o seu método próprio e nenhuma forte comoção passa além e extravasa d'alma sem número e medida, e até sem as mesmas razões geométricas do compasso musical.

Não reside o estilo na beleza ou na graça, mas na força e ainda na grosseria e rudeza da força. Suave ou rústica, polida ou tosca, pouco importa.

Almas que sofrem são de si mesmas sonoras, como cordas que, se acaso tremem e vibram, apagam-se e fundem-se indecisas no ar. As dores que o espírito tornou mudas para os profanos, não emudeceram; em seu recolhimento espalharam pelo cristal d’alma as suas ressonâncias.

O nosso exemplo clássico é Fr. Luís de Sousa, reputado o maior dos nossos estilistas e também um dos homens de mais férrea vontade e caráter da nossa raça. Não se há mister saber (e até hoje se ignora ainda) a causa que levara aquele homem de guerra, como ele o foi, a ele e a esposa, a separarem-se ambos e buscarem, cada um, a soledade dos claustros.

Podendo dizer nunca o disse e nunca sequer deixou transluzir em qualquer rasgo, na mais breve linha, o indício ou argumento da tragédia incógnita da sua vida. Era, pois, um homem de grande caráter e foi, pois, também um grande estilista.

A música e a sonoridade da sua arte sempre nos diz alguma cousa daquele mistério.

A sua alma é numerosa, musical, afinada a todos os sopros, como harpa eólia; qualquer assunto que a toque quebra-se e desfaz-se em ritmos; ideias que por ela passem saem já com as suas curvas, e suas elipses certas, como se foram mundos despegados de um sol, no momento da criação deles.

E isso nos temas mais humildes onde não há matéria para atavios e ornatos. Abra-se a primeira página da sua Vida do arcebispo e logo se deparam períodos como este, todo feito de hendecassílabos, e que por isso disporei em versos:

             Assim o tinha dito muito antes

             falando de Jacó e seu irmão:

             que amara um e aborrecera outro.

E todo o livro é uma perpétua sonoridade, na qual vários metros se compõem e se concertam, se atam e desatam, se travam ou se apartam como em “numeroso canto”.

            Leiam à página 6 da mesma Vida, seguidamente:

            Foi fácil de persuadir o valeroso cavaleiro.

            Entra no rio, lança sua gente em terra,

            fortifica-se da parte ocidental

            por todo aquele teso, onde agora

                                                                                     etc., etc.

 Não há mister mais que um módulo ou matiz para os descontar como poesia de lei. Neste momento em que escrevo, tomo do segundo volume e abro acaso (Cap. VI):

            Deu-lhes o Reitor um sacerdote

            virtuoso e sisudo, que os criava...

Este é, decerto, o grande estilista: e é cousa para mim sem dúvida e iniludível que nem mesmo Camões ou o Vieira, espíritos mais cultos e poderosos, se lhe podem emparelhar no estilo e, que é o mesmo, na força pessoal e no caráter.

É muitas vezes o ritmo ou a simetria, quando há excesso, um defeito. Mas é sempre o sinal da força e, por assim dizer, o cristal quando comparado ao líquido informe. Os rascunhos que ainda hoje existem daquele grande exemplar do estilo mostram que nenhuma frase lhe saía acabada sem passar pelos crivos geométricos de uma sereia. Não era um Lieder ohne Wörter.

                                                                         (Páginas de estética, 1905)

 

                           ANTIGUIDADE DOS BRASILEIRISMOS

O primeiro documento de natureza teórica sobre a questão dos brasileirismos foi publicado pelo Visconde de Pedra Branca em língua francesa.

Desde os primeiros tempos da colonização do Brasil, nos documentos literários, nas cartas dos jesuítas e nas crônicas dos antigos historiadores, aparecem os primeiros vocábulos de origem americana.

Esse vocabulário colonial é a primeira diferenciação da língua portuguesa na América; mas, em geral, consiste em expressões técnicas e peculiares ao Novo Mundo, coisas e objetos, plantas e frutos, animais e seres novos, que não tinham designação específica na língua dos conquistadores.

Não é menos certo, todavia, que um poeta satírico, Gregório de Matos, logo no século XVII, já com inteiro desembaraço tirava das vozes indígenas e africanas todos os recursos de expressão de sua veia cômica. Foi sob esse aspecto o primeiro escritor verdadeiramente nacional.

No século XIX (1813), no tempo de D. João VI, quando já se pressentiam os alvores da independência, o nosso lexicógrafo Antônio de Morais e Silva, aproveitando a planta do dicionário da Academia e os trabalhos de Bluteau, compunha o seu grande Dicionário, que é ainda hoje o melhor e o mais autorizado da língua. (1)

Não se esqueceu o nosso Morais de incluir no seu léxico um grande número de vozes brasílicas ou portuguesas já diferenciadas na América. Na sua mesma Gramática que é de 1802 aparecem anotações naturalmente sugeridas pela linguagem do Brasil. (2)

A nossa independência e separação em 1822 abriu desde logo um curso divergente entre o vernaculismo português e o americano. Os próprios indivíduos inflamados pela revolução separatista adotaram nomes e apelidos indígenas ou nacionais (Jês, Tupinambás, Montezumas, etc.), por oposição ao odiado onomástico português.

Na Metrópole, muito pelo contrário, fazia-se desordenada guerra contra os estrangeirismos, principalmente contra os galicismos, cada vez mais antipáticos com a Revolução Francesa e a epopeia napoleônica, infensas ao ferrenho conservantismo lusitano: a guerra ao galicismo, a Arcádia literária e todas as formas de exagerado purismo representam a reação que desde os fins do século XVIII implantou a idolatria do “Português de lei”, que dispõe ainda hoje de alguns soldados fanáticos retardatários.

 No Brasil, depois da separação, o romantismo, sem Idade Média a que recorrer como fizera o romantismo europeu, achou o seu mundo cavalheiresco e antigo na história dos índios. O indianismo de Magalhães, Porto Alegre, Gonçalves Dias e Alencar, representa essa fase que ainda mais acentua a divergência entre o português reinol e o americano.

 Essa divergência que dura ainda ocasionou polêmicas talvez estéreis e questões talvez supérfluas, mas significativas. Supérfluas e estéreis porque os portugueses não abrem mão da sua hegemonia nessa matéria, e, a seu turno, não podem infletir e torcer a naturalidade e o império dos próprios fatos. (3)

Sem dúvida alguma, a nossa língua é a portuguesa, mas enriquecida e adaptada ao novo e longínquo ambiente a que veio respirar. Não só enriquecida a vemos, mas ainda reconstruída pela renovação de antigos elementos preservados desde a vida colonial.

O fenômeno da imigração espontânea para a América é característico do século XIX e as nossas mais recentes estatísticas atestam que o contingente italiano é mais volumoso que o português, e sê-lo-á provavelmente cada vez mais intenso.

Aos efeitos dessa corrente imigratória opõe-se a melhor distribuição do elemento português, generalizado por todas as províncias, com o peso quatro vezes secular da língua comum.

Julgamos, pois, que seria agora interessante publicar um dos documentos mais antigos acerca dessa questão dos brasileirismos, e que veio à luz quando apenas se desenhavam os primeiros elementos do problema.

Veio à luz em momento propício. Em Paris, o grande centro científico dos começos do século XIX, começava o ardor pelos estudos etnográficos.

Achava-se, então, na capital francesa um brasileiro, Domingos Borges de Barros, barão e depois visconde de Pedra Branca, poeta e diplomata, ministro do Imperador, entusiasta da independência da sua pátria, havia pouco emancipada da antiga metrópole.

Por essa ocasião preparava Adrien Balbi o volume de Introduction à l'atlas éthnographique du globe, em que se incluíram informações a respeito das raças e das línguas, espalhadas pela superfície da terra.

O visconde de Pedra Branca foi o colaborador do sábio geógrafo na parte referente à língua portuguesa da antiga colônia. Escreveu, pois, a breve e interessante informação que vamos transcrever e que por ser quase ignorada (pois não sabemos de referência alguma entre nós feita a esse trabalho) terá pelos menos o mérito de curiosidade bibliográfica. (4)

Acreditamos que nesse mérito há alguma coisa melhor que a curiosidade: e era o conhecimento do assunto. Brasileiro, mas ao mesmo tempo possuindo os seus estudos universitários de Coimbra, a Pedra Branca não podia escapar o sentimento da diferenciação entre a língua da metrópole e a da extinta colônia. Essa circunstância aumenta o valor de suas apreciações.

Também, e é uma consideração que lhe acresce a valia, o documento constitui a primeira contribuição teórica que possuímos nesta matéria. Até então os brasileirismos eram cá empregados no uso corrente, mas não ofereceram assunto a nenhuma dissertação acadêmica de origem portuguesa ou brasileira. [Segue a transcrição do documento, em francês.]

1. A primeira compilação de Morais é de 1789, mas não passa de um resumo de Bluteau; a segunda edição (1813) é que constitui a obra capital do lexicógrafo. A edição de 1823 e a de 1831, terceira e quarta, representam ainda a continuidade dos trabalhos que realizou ou deixou inéditos.

2. Por exemplo a das composições viciosas, em que se exemplificaram: amo-lhe, adoro-lhe (Cap. III), modo de frasear que na parte da sintaxe § II condena como “erros das colônias”.

3. Alencar sempre se defendeu das arguições gramaticais que lhe fizeram alguns puristas portugueses. Gonçalves Dias, numa carta íntima e memorável, infelizmente pouco divulgada, e escrita em 1857, punha a questão em seus verdadeiros termos, reclamando para o Brasil a independência razoável e discreta da sua linguagem.

4. O escrito de Pedra Branca é de 1824 ou 1825. O grande livro de Balbi começou a aparecer em MDCCCXXVI (1826). Domingos Borges de Barros nasceu em 1779 (segundo Sílvio Romero); em 1783 (segundo Pereira da Silva); em 1776 (segundo L. Santos Titara); em 1780 (Galeria dos brasileiros ilustres). Com mais exatidão do que havia nascido, morreu em 1855.

                                                             (A língua nacional, 1921)