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Discurso de posse

DISCURSO DO SR. JOÃO RIBEIRO

Senhores,

Eu não podia começar sem que as minhas primeiras palavras fossem para vós. A grande distinção que acabais de dar-me, recebendo-me na vossa companhia, alterou-me por assim dizer as forças mesmas do meu espírito. Enobrecido e exaltado por ela, sinto que se apagou de mim o pessimismo – aquela parte furtiva da alma, que é a substância dolorosa e cobarde do nosso ser, aquela que nos grandes momentos de humilhação se entremostra em desesperos inertes e em estéreis renúncias e se reabsorve afinal na indiferença irremediável. Ao mesmo tempo sinto que ela edificou e deu relevo a tudo quanto meu espírito possuía de forte e varonil e concentrou numa só convergência as minhas esperanças, as esperanças maiores que de tempo imêmore venho laboriosamente preparando, acreditando sem fé numa vida superior.
Criastes-me assim essa doce superstição que como um deus tutelar aumentará de uma voz o diálogo sereno ou inquieto da minha vida...

O afago da vossa voz deu-me a grande responsabilidade de trabalhar ainda para merecê-lo e de transformar este aceno da vossa condescendência em um gesto mais intenso de bênção pelos meus esforços ou pelas minhas audácias.

Muitas são as distinções que podem enobrecer o espírito e delas vangloriar-se o homem; nunca as mereci e por isso mesmo passei por elas, quero dizer, passei através delas sem inveja, sem terror e sem emoção; esta porém a nenhuma outra se compara, porque era esta a que eu queria, temia e desejava, porque esta é a que nos produz esse alto sentimento de paz, que é o termo de todas as carreiras e é, para mim, o começo da grande tranqüilidade final. Merecê-la é como se me dissesse: – Já posso estar seguro de mim mesmo. Nada mereço, mas os que merecem vieram a mim. Quanto errei já me perdoaram. Dora em diante trabalharei e serei compreendido.

Calculais acaso o que isso seja para uma alma agreste e rude como é a minha, que viu a luz na aridez do deserto, não viveu senão sob o clima provinciano e cúpido da barbaria e só uma vez, tarde e para mal seu, sentiu o terror pânico da grande civilização?
Eu vos digo: quaisquer que sejam as probabilidades de erro dos cálculos humanos, a vossa escolha teve decerto alguma significação; porque nestas coisas não podeis errar. Quisestes significar que esse é também o lugar dos humildes e que entre vós não há desdém pelos tímidos; também entre as esferas de fogo dos astros pôs a natureza intervalos providenciais e obscuros, pois que, no dizer do poeta,  “a contínua perpetuidade da luz seria exauriente e mortal”.

Pode a ignorância entrar na ciência como a noite entra na computação dos tempos e entram as ilusões e os sonhos de permeio entre os elementos solares da realidade. Entro para o vosso seio para enriquecer-me dos vossos tesouros, para apropriar-me da emanação da vossa sabedoria, para respirar essa atmosfera que eu de longe e de fora sentia já como se sente à porta das igrejas o hálito longínquo das flores que semimortas agonizam nos altares. Que piedade humana haverá na terra que me pudesse dar essa definição da minha vida, dizer-me (e ela mo diz) “como eu devo viver? e para que eu devo viver?”

Essa, a minha grande alegria; mas, – para que ocultá-lo? – ela está penetrada pela tristeza de uma grande humilhação, – a que me cabe de suceder àquele suave e melodioso poeta que foi Luís Guimarães Júnior. Sinto agora que este lugar deveria ser ocupado não por um estudioso nem por um espírito voluntarioso talvez, porém amargo e rude – mas por outro grande poeta como ele foi, por outra grande estrela capaz de salvar do caos o seu sis¬tema agora abismado na inércia insondável... Eu sinto que vou falar do poeta sem a dignidade necessária, sem a capacidade mesmo de senti-lo e compreendê-lo. Eis a minha primeira e grande humilhação.

A grandeza e a sublimidade da poesia está em que ela repele o concurso árido e esterilizante das coisas; ela é, toda ela, sonho e emoção; – emoção e sonho que para os outros desmaiam, esvaem-se, ao primeiro sopro da vida, mas que para o poeta, na agonia do poeta, por um mistério veemente e súbito, petrificam-se tomadas pela surpresa tempestuosa do ritmo que age como um estranho cataclisma. Então, tais coisas vãs e fluidas coagulam-se em formas êneas e marmóreas. Das paixões que para nós outros são aéreas, intangíveis e fugazes, eles, os poetas, fazem catedrais góticas, cheias de música, complicadas e imorredouras.

Eles têm o dom de subjugar o gemido ao número, de subordinar à medida as dores incomensuráveis, de infiltrar a mocidade ou a velhice humana na primavera ou no inverno do mundo e fazer assim coincidir a dor própria com a dor universal. O poeta é, pois, o grande intérprete, o grande Explicador do mundo, da Ilusão inevitável. Ou nos fale da perfídia do “riso inumerável” dos mares, como Ésquilo, ou como Schiller nas Palavras da ilusão nos diga que a terra jamais pertencerá ao homem de bem – vê-se que para o grande Intérprete toda a face do planeta é a expansão superficial de uma perfídia íntima e irredutível que é o elemento primário do universo. O que os distingue, desde Homero, é esse desprezo inexorável pelo solo que pisam, onde rastejam reptilizantes as misérias do mundo. E são nisso como os homens do mar habituados às grandes viagens e aos grandes itinerários. Os homens do mar não olham as ondas que sulcam, senão o céu. É do céu e não das vagas, é das nuvens e das estrelas que lhes vêm a tempestade ou o porto, a orientação ou a perda.

Eu acredito que sem o dom da poesia ninguém possui o senso estético, a faculdade própria de conhecê-la. Sinto e penso, como um crítico notável, que se pode ter um justo desdém pela ciência, e que a primeira condição para compreender-se, por exemplo, uma planta seria a de ser-se igualmente uma planta como ela é. O botânico provavelmente não conhece da planta senão os aspectos vitais que podem não ser os aspectos superiores e essenciais do ser. Para o botânico a planta vale pouco, porque quase não tem inteligência; mas para a planta é possível que a inteligência seja uma aptidão à desgraça, qualidade inferior e tal que aos olhos dela desmoralize o homem. Creio igualmente que a poesia é uma dimensão nova que está talvez oculta à minha perspectiva do mundo. Ser-me-ia preciso sair fora de mim mesmo, sair fora da vida como eu a entendo para achar a grande significação do enigma, do mesmo modo que é preciso sair fora da terra para achar o ponto arquimediano donde levantá-la.

Para sentir o segredo de todas essas emoções interiores em todo o relevo e plenitude, para sentir todas essas reações de forças secretas e íntimas, de todo esse turbilhão vital, de todos esses elementos imperceptíveis carregados de misterioso fluido que convulsionam a alma, inflamam, corroem, clarificam, turbam, explodem fragorosos ou fervem em silêncio, seria preciso ter a constituição original e própria desses seres, a mesma densidade ou a mesma flui¬dez que lhes é própria. Isso, eu vos asseguro, está vedado ao vulgo profano.

Frederico Nietzsche  via na tragédia grega a forma mais veemente e máscula da poesia clássica e a tragédia era o consórcio do elemento épico e do lírico, da ação e do coro; era a identificação do elemento apolíneo, plástico, sereno e escultural com o elemento dionisíaco, feito de dor, de subjetivismo e de música. Em suma, era a conjugação da palavra à música, a subordinação da narrativa ao ritmo. Supunha assim o filósofo achar a misteriosa correlação orgânica que há entre as emoções e as ondas sanguíneas do coração; e pois que a continuidade da paixão produziria a diástole ininterrupta daquele músculo, a necessidade de respirar, salvando a vida, criou o instinto do ritmo. O verso é a emoção pontuada, o regímen vital da emoção, sem o qual uma asfixia passional seria inevitável. Numerus regit orbem.

Em Luís Guimarães Júnior desde cedo revelou-se esse grande segredo rítmico das emoções; assim foi através da vida, e mesmo a sua morte, episódio apenas de uma grande paixão, não lhe interrompeu a continuidade; e o seu livro, a sua múmia aí ficou como a desses grandes reis egípcios atestando a morte compreensível e ao mesmo tempo conservando o mistério dos hieróglifos indecifráveis.

Desde a primeira fase da sua vida é o poeta mal compreendido; as suas desordens, as suas fantasias, primeiros sintomas da grande Doença, afrontam o juízo inexorável dos animais domésticos  que julgam e constituem o mundo. Depois, essa tempestade foi serenada ao clarão de um amor imortal como o de Laura e Petrarca. Daí data a sua grande fase. Então foi que o Caos penetrado pela palavra inicial da edificação, pelo fiat divino da Arte, terminou assim a sua semana do Pentateuco, “semana da criação, da tortura e da grande expiação terrível”.

É que não se pode criar sem destruições prévias e não há vida sem preço e o concurso Incessante da morte. Ah! é dolorosa a compreensão inteira da vida! Cada um de nós vive dos despojos próprios, da dissipação das emoções do outro tempo, do fluido anterior das nossas idades; e tudo é assim no universo; o mesmo planeta que habitamos com todos os seus progressos gigantescos, este planeta que se arroja conosco cheio de claridade lunar através dos espaços, como um pelicano monstruoso alimenta-se também das suas próprias artérias, das velhas carbonizações das suas entranhas, violentamente arrancadas agora do seio e do subsolo de outras eras, profundas e esquecidas!

A máxima significação da vida é que ela é o preço e o triunfo dos grandes extermínios e é a primeira metempsicose de cada ruína.

Senhores,

Desculpai se interrompo, às vezes, o panegírico do poeta. É que ele é profundamente sugestivo, nos obriga todo o momento a pensar – é que o seu lirismo nos arrasta à meditação de todos os problemas. Eu principiei, aliás, confessando que não poderia de todo compreendê-lo e entendê-lo – porque uma coisa é sentir o contato lateral e fugitivo de um ser, e outra é abranger-lhe o conteúdo e a esfera ilimitada da sua radiação. Para mim, como para muitos, os grandes poetas são como esses astros de elipse longa que parece não obedecerem ao sol comum e que se não pode contemplar sem um secreto terror e sem assombro. Deles eu conheço a superstição sem conhecer a verdade dos seus longos destinos. É a minha culpa? Mas dentre vós aqueles que sois poetas (e os maiores dos nossos poetas estão entre vós) bem compreendeis e sentis.

Diante desse cujo panegírico incumbistes à minha ignorância e inexperiência, sinto uma responsabilidade tremenda e incoercível que me inabilita de pregá-lo, de elogiá-lo, de louvá-lo. Li-o vinte vezes para penetrar-me das suas paixões, para adquirir o contágio da sua alma enamorada e pura, para penetrar-me das suas idéias e do “seu modo de entender a vida”.  Perscrutei as suas alegrias e os seus desalentos, e vi gerar-se da evaporação das suas lágrimas, agora batidas do sol da glória, o arco-íris cambiante das suas emoções. Tentei compreendê-lo, senhores; confesso-vos que fiz essa experiência mortal e saí dela edificado. Dela trouxe, se não a voz, ao menos o eco degênere, o vagido elementar do seu grito adulto e valoroso. Mas, ah! tudo isso é inexprimível e não é com a minha prematura velhice que hei de traduzir a sua grande e harmoniosa mocidade!

Eu renuncio à tarefa de fazer a critica do poeta, hoje que é o dia do seu louvor. Mas posso dizer que tão cedo não soará uma voz como a sua. O segredo dessas modulações d’agora em diante ficará eclipsado até um talvez remoto futuro. Virão outras vozes fortes; mais fortes e indispensáveis; mas a sua voz, ou uma voz como a sua, nunca mais! Ele foi o intérprete incorruptível e delicado dessa camada humana que precedeu a babel das raças novas; ele foi um dos últimos druidas da nossa autoctonia bárbara, agora caldeada entre homens adventícios, novos, fulvos e dominadores. Hoje não fazemos nós mais do que passar como eunucos tristemente, sem estirpe e sem póstero. Hoje a civilização é excessiva para a nossa insuficiência, é sábia demais para a nossa ignorância, é humana e universal de sobejo para a nossa mesquinhez nacional, é enfim livre em demasia para a nossa servidão habitudinária; agora tem ela o aspecto de um dom de Zeus-pater, quando outrora era um modesto dom de Prometeu, agora é ela a dignidade dos deuses, quando outrora nos bastava a dignidade de resistir aos deuses. O novo clima não poderá jamais recompor a flora antiga; flores alpinas sucederão ao lírio-do-vale; a disciplina branca extinguirá os nossos histerismos morenos; a atmosfera nova e ascética repelirá as antigas fragrâncias eróticas e o novo dilúvio abafará nos derradeiros cimos as vozes altas e últimas dos últimos náufragos.

Aqui, teria eu concluído, se concluísse pensando em mim. A verdade, porém, e verdade doce e agradável, é que poucos e raros dentre vós estarão penetrados do meu desânimo. Acreditar no futuro é uma grande coisa, a melhor da vida e talvez mesmo o verdadeiro sinal dela. O grande poeta olímpico deste século, o poeta absoluto, Wolfgang Goethe, diante do espetáculo da sociedade revolucionária, no fim do poema idílico de Hermano e Dorotéia, diz pela boca de um êxul estas palavras sublimes de serenidade: “Sê feliz, tu; eu, vou-me embora. Hoje a terra toda estremece e principia a desagregar-se. As velhas leis do povo caem em ruínas; as antigas herdades passam a novos senhores; o amigo se parte do amigo e o amor do outro amor... Já se disse uma vez e agora dir-se-á com razão maior que o homem é um estrangeiro no seu solo natal; a nossa terra nos evita; as riquezas deslocam-se e derivam errantes; das casas e das igrejas os ouros e as pratas, que guardavam as formas antigas e santas, fundem-se na inércia igualitária das barras: a estrutura já consumada do universo parece voltar ao caos para desse sonho no¬turno e agitado sair e despertar numa grande e nova ressurreição...”
“Sê imóvel, diz ainda o poeta, sê imóvel e sereno dentro da eversão universal. O menor movimento de cada um aumentaria e propagaria a catástrofe. Aquele, porém, que se conservar tranqüilo poderá na solidão e de si próprio tirar um mundo.”

Por isso, eu digo: – a vida, talvez o progresso, é o preço e o triunfo de todos os extermínios e é a primeira metempsicose de cada ruína. Aproveitemos o tempo para celebrar os nossos demiurgos e compor-lhes as últimas feições na imortalidade. Não sei; não me julgo bastante convencido de que a civilização seja “a obra das aristocracias intelectuais”, e seja a flor da laboriosa evolução do patriciado humano. Não o será, ao menos por toda a parte, nem em todos os tempos. Penso, todavia, que a literatura tem uma grande significação humana e civil, e que o prestígio da idealidade pura basta para aniquilar todos os desdéns dos profissionais, todas as ironias infecundas dos homens práticos. A nós cabe defendê-la desses ultrajes vulgares e preparar-lhe um asilo no meio de todas as convulsões da vida. Se não um asilo, ao menos um túmulo digno.