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O velho Alves

Texto de autoria do Acadêmico Josué Montello

O livreiro Francisco Alves, de gênio ríspido, sempre visto por trás do balcão da sua livraria, na rua do Ouvidor, no começo deste século, fez esta surpresa póstuma, em 1917, quando lhe abriram o testamento: deixou toda a sua fortuna para a Academia Brasileira.

Assim, tudo quanto ganhou ao longo da vida, quer como livreiro, que como editor, ele transferiu à instituição cultural que Machado de Assis fundara em 1897. Econômico durante a vida, sabendo amealhar tostão por tostão na venda de livros, tornava-se generoso depois de morto.

João do Rio, ao saber-lhe da benemerência, traçou-lhe o perfil estranho numa crônica de jornal, para reconhecer que só Balzac, com seu gênio de criador literário, poderia pintar-lhe o retrato, sem falsear-lhe a figura singular: “Outro qualquer” – reconheceu – “faria do Alves um ser inverossímil.”

Certa vez, na livraria, um ladrão conseguiu cortar a grade de arame que protegia o guichê do caixa. Um empregado viu e deu o alarma. Gritos, correrias, e o ladrão é preso pelo Alves, que manda chamar o guarda para entregá-lo à polícia.

E o ladrão, apavorado:

–   Ah, seu Alves! Sou um homem perdido!

O livreiro amoleceu, apiedado. E mostrou-lhe o caminho da porta, para que fosse embora. Mas ele próprio, logo a seguir, voltou a agarrar o ladrão:

–  Ias esquecendo o alicate. Agora, vai. Vai depressa. Antes que chegue o guarda.

O episódio define o livreiro, tanto nos seus impulsos quanto na sua bondade. Um saco de surpresas o velho Alves. Não se parecia com ninguém no seu feitio esquivo. Por fora, um casca-grossa. Presumia-se mesmo que só conhecesse os livros pela capa ou pela lombada. Ou talvez pelo tato, como os cegos. Ou pelo cheiro, como o personagem de uma velha comédia de Henri Bataille. Na verdade, era também autor.

Autor, sim. De numerosas obras didáticas: atlas, métodos de ensino de francês, inglês, italiano e alemão; antologia de autores clássicos; manuais de composição, gramática, um dicionário, gramática, um dicionário francês-português. Um desses livros alcançou mais de trinta edições.

Durante o dia, lá estava o Alves ao balcão da livraria. De noite, continuava o seu trabalho – escrevendo livros. O livro era o seu mundo. Quando estudava? Ninguém sabia. De onde viera o seu saber? Ninguém sabia. E era de mestres que vivia cercado, a começar por João Ribeiro, que para ele escrevia suas gramáticas e seus compêndios.

Durante o dia, lá estava o Alves ao balcão da livraria. De noite, continuava o seu trabalho – escrevendo livros. O livro era o seu mundo. Quando estudava? Ninguém sabia. De onde viera o seu saber? Ninguém sabia. E era de mestres que vivia cercado, a começar por João Ribeiro, que para ele escrevia suas gramáticas e seus compêndios.

Osvaldo de Melo Braga, que lhe levantou a bibliografia, arrolou 39 títulos do velho Alves, escondidos debaixo destes nomes ou inciais: Francisco de Oliveira, F. d’Oliveira, O. de Oliveira, Guilherme do Prado, F. de O.

Afrânio Peixoto, que figurou entre os seus editados, reconheceu em Francisco Alves o criador de nossa indústria do livro didático: “É o pioneiro do livro popular de ensino, posto ao alcance dos mais pobres, com o que deve ter lugar entre os educadores do Brasil.”

A preocupação do ensino brasileiro, por parte do grande livreiro, iria além de sua morte, ao obrigar a Academia, por determinação testamentária, a promover, de cinco em cinco anos, dois concursos – um, sobre a língua portuguesa; outro, sobre o melhor modo de divulgar o ensino primário no Brasil.

Esses concursos, com altos prêmios em dinheiro, acabaram por perder o interesse dos competidores por força da desvalorização da moeda. A correção monetária, que se impunha em ambos os casos, deixou de ser feita, e a láurea, de tão exígua, terminou ridícula, à revelia do alto propósito do testador. De qualquer forma, dela nos ficou o objetivo generoso, que ainda perdura.

A Livraria Francisco Alves começou na antiga rua dos Latoeiros, hoje Gonçalves Dias, em 1854, por iniciativa de Nicolau Alves, que lhe deu o nome de Livraria Clássica de Nicolau Alves. A moda, por esse tempo, era a forma romântica, nos trajes, nos costumes, nas letras e nas artes, mas a livraria de Nicolau Alves se inspirava na tradição, ostentando esse pendor dos valores clássicos na tabuleta da loja.

No correr de mais de 140 anos, não parece ter sido outra a sua inclinação. Francisco Alves, à frente da livraria, ali publica, em 1887, os seus Trechos de autores clássicos, com o pseudônimo de Guilherme do Prado. Mas também sabe ser sensível aos valores que vêm chegando. E acolhe Afrânio Peixoto, Capistrano de Abreu, Sílvio Romero, Medeiros e Albuquerque, Clóvis Beviláqua, João Ribeiro, Gilberto Amado, Júlia Lopes de Almeida, Gustavo Barroso.

Deste último, editou Francisco Alves um livro de contos regionais, Praias e várzeas, impresso em Lisboa durante a Primeira Guerra Mundial. Vinha a edição inteira para o Brasil, a bordo de um cargueiro, quando o navio, pela altura das Canárias, foi torpedeado por um submarino alemão. O Alves chamou o autor, contou-lhe o desastre, e logo tratou de acalmá-lo: a carga estava no seguro. Depois observou-lhe:

–  De todas as edições que fiz até agora, foi a que se esgotou mais depressa.

Assim era o Alves. Ao que parece, deixou de transferir os seus rompantes de livreiro para as relações pessoais com os seus editados. Ao que parece, tratou-os bem. Firmim de Maillard não o tomaria como exemplo da tese segundo a qual essas relações começam habitualmente por um aperto de mão e acabam quase sempre com a presença de um oficial de justiça entre os dois.

O que as letras deram ao velho Alves, como livreiro, como editor e como autor, ele as restituiu às letras, ao transferir toda a sua fortuna a uma instituição de escritores. Rodrigo Octavio, em Minhas memórias dos outros, reconhece que o Alves, por sua benemerência, tudo merece da Academia. E esta, todos os anos, no aniversário da morte do livreiro, abe o seu salão nobre para festejar-lhe a memória.

Não é fácil, ao longo de mais de setenta anos, encontrar palavras novas para o mesmo louvor. Mas a verdade é que as palavras aparecem. Há sempre uma razão qualquer para exaltar a vida de Francisco Alves e a obra, ainda que lhe recordem as asperezas.

Querem ter mesmo uma idéia do velho livreiro, à hora de seus mais belos sonhos? Pois então guardem a revelação que fez Olavo Bilac, em entrevista a A noite, logo depois da morte de Alves: “Há muito tempo disse-me o Alves que desejava promover a ereção de uma estátua de Gonçalves Dias na capital da República, encarregando-se ele de todas as despesas.” E não ficava só aí. Queria publicar uma edição monumental de I.Juca-Pirama, preparada e revista por Bilac.

Que outro homem, em qualquer parte do mundo, teve o mesmo sonho? Não tendo tido tempo de erguer a estátua do poeta, o Alves fez-se o Mecenas da Academia.

Foi dona Júlia Lopes de Almeida, sua editada, quem contou a história de uma Maria Matilde, que desejava construir rente à baía de São Marcos, em São Luís do Maranhão, uma torre muito alta, encimada por um sino de ouro, com os nomes de todos os estados do Brasil. Sem dinheiro, viveu ela para o seu sonho, e só em imaginação conseguiu vê-lo realizado.

O velho Alves, mais prático, fez da Academia a sua torre. Porque a que lá está, agora, querendo enfiar a cabeça nas nuvens, só foi possível levantá-la com a lição de cautelosa sabedoria que o velho transferiu à instituição, ao ajudá-la a consolidar-se.

Amou ele alguém? Parece que sim. Tanto que fez a Academia pagar uma pensão mensal a uma certa senhora enquanto esta viveu.

João Ribeiro, que para ele muito trabalhou, contou numa crônica, após a sua morte, a peça que o Alves lhe pregou. Costumava aparecer-lhe na livraria um preto velhaco chamado Quelé. Vendo o ar de bondade de João Ribeiro, convidou-o para padrinho de um filho, num subúrbio longínquo. O mestre, não podendo fugir ao compadrio, fez-se presente ao batizado por uma procuração. O Quelé, daí em diante, sempre que via o compadre, pedia-lhe a bênção do afilhado. João Ribeiro não tinha outro jeito senão morrer nos 10 mil réis, embora desconfiasse, de si para si, que o afilhado era um embuste do preto. Um belo dia, quando o escritor conversava com o Alves, o Quelé se aproximou, com ar pesaroso, e lhe deu a notícia de que o filho tinha morrido. Queria 100 mil-réis para enterrá-lo.

–  Estou desprevenido, Quelé

respondeu João Ribeiro.

E o Alves, solícito:

–  Por isso não seja. O senhor tem na casa um saldo de seus direitos autorais. Aqui estão os 100 mil-réis.

E assim que o Quelé saiu levando o dinheiro, o velho bateu no ombro do escritor, que remoía consigo a raiva surda do prejuízo que acabara de ter, por culpa do livreiro, que assim se justificou.

–  Isso foi um negócio da China, meu amigo! O Quelé resolveu matar-lhe o afilhado e o senhor ficou livre dessa pensão para o resto da vida!