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Discurso de posse

Excelentíssimo Senhor Presidente da Academia Brasileira de Letras, Embaixador Alberto da Costa e Silva, Senhores Acadêmicos, Autoridades aqui presentes e representantes, caros amigos, meus senhores, minhas senhoras.

Chego à vossa ilustre companhia, talvez trazida por uma estrela. Venho para ocupar com orgulho e, sobretudo, com humildade, a Cadeira que foi, durante 40 anos, de Jorge Amado, Cadeira que tem como fundador Machado de Assis e cujo patrono é José de Alencar. Três escritores da minha paixão, escritores da maior grandeza que tiveram, cada qual com seu estilo, o poder de transportar-me em mundos de magia, na emoção da leitura de seus livros a embalar meus sonhos, fazendo-me descobrir a beleza e as maldades da vida.

Também na Cadeira 23 sentou-se, antecedendo Jorge Amado, o importante político baiano, prestigioso e erudito governador da Bahia, Otávio Mangabeira, a quem, nessa minha chegada à vossa Casa, agora também minha, presto homenagem.

Ao falar sobre os três gigantes da literatura brasileira, eu deveria dizer frases profundas, poéticas, belas, deveria proferir um discurso com análises e citações, mas, confesso, não sou boa em discursos, a própria expressão “proferir um discurso” me inibe. Não sou conferencista, não nasci com tais dotes, sou mais de contar histórias. Essa qualidade de contadora de histórias que, bem ou mal executo, trago no sangue.

Nasci na Cidade de São Paulo, há muitos e muitos anos, tantos que chega a ser difícil fazer-se um cálculo da distância do tempo. Basta dizer que naquela época as ruas eram iluminadas a lampiões a gás e não havia um único arranha-céu na cidade; acionados por manivelas, apareciam os primeiros automóveis; não existia rádio e, televisão, nem pensar; o cinema, em preto-e-branco, era mudo.

O maior divertimento das crianças de meus tempos era ouvir histórias.

Um dia mamãe declarou que sua caçula, a última de seus cinco filhos, havia nascido com a estrela. Qual a estrela ela não dizia, mas devia ser uma estrela muito boa. Não entendi, nunca cheguei a tirar a limpo se mamãe regozijava-se diante de tal descoberta ou se não estava de acordo com que apenas a pequena “atrevida” - era como me chamava - fosse agraciada com tal regalia.

Durante anos ouvi dona Angelina, minha mãe, repetir a tal história. Tudo o que acontecia de bom comigo, notas altas na escola, prêmios e elogios, para ela era simplesmente o resultado das artes da dita estrela madrinha. Eu ficava na dúvida: seria possível mesmo que eu possuísse tal proteção? Não podia duvidar, pois já tivera provas de sua eficiência: ela me oferecera espaço para vir ao mundo e viver - eu, que gosto tanto da vida -; ser filha de meus pais, pessoas tão boas que eu tanto amava, e, além do mais, que sabiam contar histórias como ninguém. As que ouvíamos, meus irmãos e eu, à noite após o jantar, ora contadas por papai, ora por mamãe, me empolgavam, deixavam-me encantada.

Meu pai emocionava-se ao nos narrar suas próprias histórias. Digo suas próprias histórias porque acredito que ele as inventava à medida que nos ia contando. Ele próprio se empolgava e isso eu percebia, nos momentos mais emocionantes, ao notar arrepios em seu pescoço. Embora falasse correntemente o português, papai só contava histórias em italiano, matava dois coelhos com um tiro só: divertia os filhos e ensinava-lhes a sua língua natal.

Com mamãe a coisa já era diferente: embora também tivesse grande imaginação, preferia nos contar trechos de romances que lia e filmes que assistia às quintas-feiras, na sessão das senhoras e senhoritas. Embora tivesse tido pouco estudo, pois as condições financeiras da família não lhe permitiram freqüentar sala de aula por mais de alguns meses, mamãe lia correntemente e nas leituras em voz alta dava ênfase, empolgando a quem a ouvisse.

Minhas irmãs Wanda e Vera me ensinaram a amar a poesia e a me encantar com romances. Wanda era apaixonada por Castro Alves, sabia seus poemas de cor e salteado. Vera varava as noites lendo romances.

Ainda pequena, eu mal sabia ler e já repetia com emoção poesias de Castro Alves, Guerra Junqueiro, Olavo Bilac, Fagundes Varela e de tantos outros poetas que Wanda me fazia decorar. Graças à Vera sabia frases inteiras de “O Tronco do Ipê” e de “Iracema”. Brilhava, repetindo com largos gestos, em saraus familiares: “...Ó verdes mares bravios de minha terra natal...” ou “ Iracema, a virgem dos lábios de mel...”

Aos 17 anos, emprestado por um italiano, amigo de meu avô, recebi um livro de Jorge Amado, Cacau. O velho Ristori - este era seu nome - estava empolgado com o rapaz que conhecera naqueles dias, vindo do Rio, “Um tal de Jorge Amado, giovanotto inteligente, jornalista, escritor, não sei bem...”, dissera. Fiz-lhe perguntas sobre o giovanotto inteligente. Percebendo meu interesse, com ar de malícia, o italiano respondeu: “Já se foi, piccina, voltou para o Rio.”

Muito cedo, comecei a entender que uma leitura ou uma história só prestam, empolgam e nos fazem sonhar quando transmitidas com prazer e emoção. Eu reforçaria esse conceito agora, valendo-me de experiência própria, experiência de quem, no decorrer de mais de meio século, viveu ao lado de Jorge Amado, vendo-o trabalhar e emocionar-se ao escrever um romance. Quantas vezes o ouvi desabafar, no final de um dia de trabalho? “Este livro me come as carnes...”

Lembro ainda de quando, ao terminar Dona Flor e seus dois maridos, a rir, divertido, satisfeito com a solução de um problema difícil que acabara de resolver, Jorge cobrou de mim, na maior galhofa: “Essa sua amiga, hein, dona Zélia? Revelou-se uma boa descarada, dormiu com Vadinho, gostou, mandou seu preconceito de pequeno-burguesa às favas e ficou com os dois maridos.” Ele sempre dizia: “Uma história, para prender, para prestar, deve ser escrita com prazer e emoção. Deve transmitir coisas vividas intensamente, não apenas de se ter ouvido falar ou como um simples observador que olha superficialmente um acontecimento.

Na juventude Jorge conviveu, em Salvador, com crianças de rua que moravam num trapiche abandonado. Sabia tudo sobre suas vidas, e jamais poderia ter escrito um romance como Capitães da Areia não fosse esse conhecimento profundo.

Serviu-se de Pedro Arcanjo, personagem de Tenda dos Milagres, para dizer o que ele mesmo pensava: “Sou materialista, mas meu materialismo não me limita.” A essa frase atribuída a Pedro Arcanjo, Jorge costumava acrescentar: “Eu não poderia ter a pretensão de ser um romancista da Bahia se não conhecesse por dentro os candomblés.”

Levantado Obá de Xangô no candomblé de Mãe Senhora, no Axé do Opô Afonjá, embora materialista, Jorge freqüentou o terreiro sempre que pôde, seguindo seus rituais e preceitos com o maior respeito. Entre os amigos que Jorge mais prezava estavam as mães-de-santo Mãe Aninha, Mãe Senhora, Menininha do Gantois, Mãe Stella de Oxóssi, Olga de Alaketu, Mirinha do Portão, Mãe Cleusa, Mãe Carmem e o pai-de-santo Luiz da Muriçoca.

Em 2001, Jorge Amado e eu comemoramos 56 anos de nosso primeiro encontro. Ele me vira pela primeira vez, em São Paulo, em maio de 1945. De mim ele não sabia nada, nem podia saber porque eu era apenas uma simples desconhecida, sem nenhuma credencial. Ele também não sabia que eu possuía uma estrela que o pusera em meu caminho.

Jorge me encontrava pela primeira vez, mas eu o conhecera antes, o vira de longe, no início de 1945, no Teatro Municipal, na abertura do Congresso Brasileiro de Escritores, que se realizava em São Paulo. Admiradora do escritor, ao saber que ele participaria do Congresso, toquei-me para o Municipal e, acanhada, em meio a tantos intelectuais importantes que lotavam o teatro, sentei-me atrás, recolhida na minha timidez, só observando. De longe vi Jorge Amado cercado de gente, sobretudo de mulheres, belas, cultas e charmosas.

Sentada estava, sentada fiquei. Quem era eu para me aproximar da celebridade? Não era intelectual, não tinha categoria e nem mesmo audácia para me apresentar e dizer-lhe ser uma leitora encantada com seus livros, admiradora de sua valentia, não me aproximei, não tive coragem. Fui embora depois de ouvi-lo falar - Ave-maria! Que orador entusiasta! Quanto charme!

De Jorge Amado eu sabia tudo. Já lera seus 10 primeiros livros.

Em notícia de jornal eu soubera que Capitães da Areia, Mar Morto, Jubiabá e outros livros seus haviam sido queimados por imorais e subversivos em frente à Escola de Aprendizes de Marinheiros, em Salvador, por ordem do Comando da VI Região Militar, a 19 de novembro de 1937.

Por amigos em comum, o poeta Paulo Mendes de Almeida e Aparecida, sua mulher, soubera das prisões de Jorge, de seu exílio na Argentina e no Uruguai, de sua volta do exílio ao saber que o Presidente Vargas aderira às forças aliadas; soube ainda que, ao regressar, ele passara três meses preso na Casa de Correção, no Rio de Janeiro. Soube também que daí ele fora confinado, tendo como residência obrigatória a cidade de Salvador.

Nos dois anos que passou na Bahia, Jorge Amado voltou às atividades jornalísticas, colaborando n' O Imparcial, publicando crônicas sobre a guerra. Escreveu, nessa ocasião, São Jorge dos Ilhéus e iniciava outro livro, Bahia de Todos os Santos, quando, no final de 1944, resolveu, por sua conta e risco, sem pedir permissão a quem quer que fosse, viajar para São Paulo, presidindo uma delegação de intelectuais que participaria do Congresso de Escritores no início do ano.

Em maio de 1945, a notícia da presença de Jorge Amado em São Paulo, participando de movimentos reivindicativos, correu de boca em boca e acabou caindo em meus ouvidos. Ele comandava a organização de um comício-monstro para Luiz Carlos Prestes, que saía da prisão. Estava anunciada a chegada do poeta Pablo Neruda, que, em homenagem a Prestes, declamaria um poema sobre dona Leocádia Prestes durante o comício.

Apresentei-me, em seguida, ao local onde seriam organizados os grupos de trabalho para a realização do tal “comício-monstro”.

Pela primeira vez eu via Jorge Amado de perto e me encantei. Fiquei pensando: apenas 32 anos, com tantos livros escritos, tantas e tais aventuras...

Estava eu perdida em meus devaneios quando o vi estender a mão para mim: “Você vai trabalhar comigo...” Em seguida, segurou-me pelo braço: “Venha, me acompanhe, vou ditar um comunicado à imprensa”. Parou diante de uma máquina de escrever: “Sente...” Ai, meu Deus! “Eu não sei escrever à máquina...”

“- Não sabe bater à máquina? Que moça mais inútil!...”

Me contive para não chorar e ele, percebendo o meu constrangimento, tratou de desfazer a brincadeira: “- Não pense que vai se livrar de mim assim. Temos muito o que fazer, trabalho é o que não falta. Logo mais, à noite, você vai comigo a um comício na Lapa.”

Jorge sempre me dizia: “Ao pousar, pela primeira vez os olhos em você, meu coração disparou”.

Desse momento em diante, 56 anos se passaram e eu continuei a seu lado, acompanhando-o.

Por mais de meio século Jorge Amado foi meu marido, meu mestre, meu amor. Deu-me a mão e conduziu-me por mundos os mais distantes, os mais estranhos, os mais fantásticos. Com Jorge palmilhei as estradas da vida, do mundo. Por céus voamos em aviões que rompiam a barreira do som, atravessamos mares tranqüilos e, por vezes, encapelados; sobrevoamos montanhas de gelo e neve, enfrentamos um vendaval no deserto de Gobi, na Mongólia, deserto de areias escaldantes e, juntos, com nossos filhos e netos, num navio-gaiola, costeamos a Floresta Amazônica.

Trabalhei com Jorge desde o primeiro livro que escreveu em minha companhia, Seara Vermelha, datilografando os originais - agora já doutora em datilografia -, passando-os a limpo das correções feitas à mão.

Envolvida na trama do romance, tomando carinho pelos personagens, tentei salvar a vida de um deles, a de Noca. Jorge então me explicou que a menina tinha vida própria, tudo indicava que ia morrer e ele não poderia impedir. Que se fosse mudar o rumo de seus personagens, eles deixariam de ter carne e sangue, deixariam de ser criaturas humanas para se tornarem simples fantoches em suas mãos. Aprendi a lição e me convenci a não mais dar palpites.

Na convivência com Jorge pude constatar ser verdadeira sua afirmação de que os personagens de ficção de seus romances não são pessoas da vida real, mas sim a mistura de muitas delas que ele conhecera no decorrer de sua vida. Ninguém era ninguém. Quando desejava homenagear um amigo, introduzindo-o na trama do romance, dava-lhe nome e sobrenome. Um dos exemplos encontra-se em Tereza Batista, quando ele descreve o casamento da moça com o padeiro Almério. Peço licença para reproduzir aqui essa passagem:

Sentada numa cadeira de braços de alto espaldar, Mãe Senhora rodeada pela corte dos obás... a mãe-pequena Creusa, figurando mãe Menininha do Gantois, Olga de Alaketu toda nos trinques... Os artistas para quem Tereza posara, Mário Cravo, Carybé, Genaro, Mirabeau e ainda outros esperando a ocasião: Emanuel, Fernando Coelho, Willys e Floriano Teixeira... Junto com os artistas, os literatos a gastar uísque, escolhendo marcas, uns perdulários, uns esnobes: João Ubaldo, Wilson Lins, James Amado, escutavam atentos, mestre Calá contar pela milésima vez a história verídica da baleia... Assim postos os nomes parece ter havido excesso de homens e falta de mulheres. Engano, pois cada um deles estava com a esposa, alguns com mais de uma. Em nome de Lalu, dona Zélia levou perfume para a noiva e no próprio nome um anel de fantasia...

Ao descobrir meu nome na lista de convidados, fiquei vaidosa mas em seguida não gostei do presente chinfrim que eu iria oferecer à noiva. Parei o trabalho:

“- Jorge, posso te pedir um favor? Me faça dar um presente melhorzinho à Tereza...” Jorge riu:

“- Que luxo é esse, Zélia! Tereza vai adorar o anel.”

Não atendeu ao meu pedido e eu continuo na história oferecendo um anel de fantasia à moça.

Seara Vermelha, romance que lhe comeu as carnes, foi escrito no Estado do Rio quando, eleito deputado federal por São Paulo, nos mudamos para lá.

Fazendo parte da Comissão de Educação e Cultura na Assembléia Nacional Constituinte, Jorge foi autor de várias emendas aprovadas, como a da liberdade religiosa e a da criação do Salão de Arte Moderna, entre outras, que perduram até hoje.

Num retrocesso democrático no Brasil, em fins de 1947 o registro do Partido Comunista foi cancelado e os parlamentares eleitos por essa legenda, expulsos do Parlamento.

Nos quase dois anos em que o deputado Jorge Amado participou dos trabalhos da elaboração da Constituição, esteve sempre à frente de projetos democráticos com sucesso. Ele sempre dizia: “De uma coisa tenho consciência: ter sido um bom parlamentar, o que me dá prazer, compensa-me dos maus momentos por que passei”.

O ano de 1948 iniciou-se com violência desatada e, entre outros atos de arbitrariedade, lares de deputados foram invadidos, inclusive nossa casa no Estado do Rio foi invadida, pela madrugada, por policiais, verdadeiros vândalos.

Sem condições de segurança para permanecer no Brasil, Jorge viu-se forçado a abandonar o País e, no mesmo mês de Janeiro, viajou para a Europa. Enfrentaria o inverno e as destruições causadas pela guerra, ainda muito presentes. Com um filho recém-nascido, não pude acompanhá-lo. Só fui ao seu encontro alguns meses depois.

A palavra exílio causa mal-estar, lembra desterro, degredo, prisão. Nos quase cinco anos de exilados, sem poder voltar para o Brasil, procuramos tirar o melhor proveito da situação conseguindo viver intensamente e aprendendo muito.

Conhecemos homens e mulheres dos mais significativos de nossa era. É perigoso citar nomes porque corre-se o risco de esquecer, às vezes, quem não poderia ser esquecido. Cito, pois, uns poucos, os que estão na ponta da língua: Paul Eluard, Sartre e Simone de Beauvoir, Pablo Picasso, Yves Montand, Ilya Eremburg, Paul Robson, Anna Seghers, Pablo Neruda e Nicolás Guillén, amigos para sempre, até o fim. Membro do bureau do Conselho Mundial da Paz, sediado em Paris, que tinha como presidente Frederic Joliot Curie, Jorge organizava e participava de congressos contra a bomba atômica, realizados em várias partes do mundo. Vivíamos em Paris, de onde viajávamos para terras distantes.

Com Pablo Neruda e Nicolás Guillén, eles também exilados, corremos mundo na luta contra a ameaça das armas nucleares. Pablo Picasso, também ele entusiasta dessa campanha, num traço firme e de grande delicadeza, simbolizou a paz numa pomba branca, levando no bico um ramo de esperança, desenho que o mundo inteiro conhece. A pomba de Picasso recebeu o maior prêmio que o Conselho Mundial da Paz conferia, uma vez por ano, o Prêmio Mundial da Paz, com uma dotação de 15 mil dólares (pagos pelos soviéticos).

O premiado seria escolhido por um júri internacional integrado por dirigentes do movimento da paz. Entre os membros do júri encontrava-se o acadêmico sueco Arthur Lundkvist, representante dos partidários da paz escandinavos, membro do júri que atribui o Prêmio Nobel de literatura na Suécia.

Pierre Cot era presidente do júri do Prêmio da Paz e Jorge Amado, secretário-geral.

Apresentado por Lundkvist como candidato ao prêmio naquele ano de 1951, o compositor finlandês Jean Sibelius não pôde concorrer. Antes mesmo que a relação dos candidatos se tornasse oficial, o nome de Sibelius foi cortado pelos soviéticos. Havia uma razão:

Famoso compositor, Sibelius compusera canções e hinos de exaltação a seus compatriotas que se batiam contra os exércitos soviéticos na guerra russo-finlandesa de 1939. Sibelius entrara para a lista negra dos russos, que jamais lhes dariam um prêmio. Seu nome foi retirado da lista dos concorrentes antes do julgamento.

Secretário do prêmio, membro do júri, Jorge votou pela pomba da paz de Picasso, a vencedora daquele ano. Quem conheceu o caso de perto soube a razão pela qual nunca deram o Prêmio Nobel a Jorge Amado. Bode expiatório, inocente na questão, Jorge foi considerado por Lundkvist como o responsável pela derrota de Sibelius. Não quis ouvir as explicações de Neruda nem as de Miguel Ángel Astúrias, que de tudo sabiam e se dispunham a defender o amigo. Arthur Lundkvist nunca perdoou Jorge Amado. Nem bem saídos de uma guerra destruidora, passávamos a enfrentar, além do perigo das armas nucleares, a guerra fria.

Depois de vivermos dois anos em Paris, fomos intimados de repente, pela Prefeitura de Polícia, a deixar a França em 15 dias. Motivo? “Vocês viajam demais...” E fim de conversa.

A convite da União dos Escritores Tchecos, fomos viver na Tchecoslováquia, onde passamos mais de dois anos.

Na Tchecoslováquia nasceu nossa filha Paloma e Jorge escreveu ainda um romance, Subterrâneos da Liberdade, no qual ele narra sua experiência de militante comunista. Escrito em 1950, o livro só foi publicado em 1954.

A situação política no país socialista em que vivíamos tornava-se difícil. Depois de experiências positivas que tivéramos do regime, relativas à assistência social, começávamos a enfrentar um clima de desconfiança e medo.

Acompanhávamos de perto os processos de Praga, que puniam, sem dó nem piedade, os chamados, por eles, de traidores, inimigos do socialismo, inimigos de Stálin. Conhecíamos algumas pessoas que haviam sido condenadas e não podíamos acreditar, de jeito nenhum, que fossem traidoras. O ambiente tornava-se pesado, insuportável.

Nunca imagináramos que tais injustiças e violências pudessem acontecer num país socialista, e uma pergunta pairava no ar: teria valido a pena a nossa abnegação, os sacrifícios de toda uma vida, por uma causa que julgávamos a melhor? Constatávamos que, sendo a melhor causa, os dirigentes é que não prestavam: incompetentes, sectários, ambiciosos - sobretudo ambiciosos -que, temerosos de perder seus postos de comando, cometiam os maiores crimes.

Em 1952, cheios de dúvidas e de algumas certezas, regressamos ao Brasil, a bordo de um navio italiano, Paloma com menos de um ano, João com menos de cinco.

Em 1955, sem ter tido tempo nem paz para escrever depois que voltara do exílio, Jorge pediu uma reunião com a direção do Partido Comunista. Anunciou seu desligamento de todas as obrigações partidárias; precisava de tempo para escrever: “Cumprir as tarefas que me atribuem, qualquer um pode, porém escrever meus livros, só eu”. Disse e não voltou atrás.

Sem renegar o Partido, nem recuar de suas convições de que o socialismo com democracia é o melhor caminho, mas que o socialismo sem democracia é tão ruim quanto o fascismo, Jorge afastou-se do Partido. Continuou amigo de Prestes e de Giocondo Dias, homens honestos, íntegros, heróicos, que mereceram o nosso respeito até o fim.

Pessoa de extraordinária importância, Jorge era, no entanto, uma criatura simples, como em geral são os homens verdadeiramente importantes. Sendo um romancista dos mais premiados e condecorados, ele sempre dizia: “Nunca pedi honrarias a ninguém, não pleiteei coisa alguma, nem mesmo insinuei que me dessem prêmios. Se me oferecerem espontaneamente, mesmo que seja uma simples medalha, aceito-a com satisfação e vou recebê-la, seja onde for.”

Em 1958, um novo romance na cabeça, caindo de maduro, foi escrito. Tempo livre pela frente, liberto das amarras do sectarismo, com emoção e alegria, Jorge escreveu Gabriela, Cravo e Canela. Trabalhou de uma forma como eu jamais vira, dia e noite batendo nas teclas da pequena máquina com tanta força e entusiasmo que, ao terminar o livro, tinha os dedos em chagas.

Depois de Gabriela, lançado com grande sucesso no Brasil, transformado em novela pela televisão Tupi, vendido à Metro Goldwin Meyer para um filme, com traduções de não acabar pelo mundo afora, embalado, Jorge não parou, precisava recuperar o tempo perdido. Escreveu os mais belos romances de nossa literatura.

Não vou cansá-los, meus amigos, citando aqui, um a um, os títulos, por demais conhecidos, dos 16 livros escritos daí por diante.

No ano de 1961, o rapaz que na juventude fora fervoroso participante da Academia dos Rebeldes, na Bahia, elegia-se, já maduro escritor, à Academia dos notáveis e bem comportados, à Academia Brasileira de Letras.

Peço licença, Sr. Presidente, caros confrades e confreiras, queridos amigos aqui presentes, para reproduzir, neste meu relato, um trecho da abertura do discurso de Jorge Amado ao ser empossado na Cadeira 23 desta nossa Academia:

Chego à vossa ilustre companhia com a tranqüila satisfação de ter sido intransigente adversário desta Instituição naquela fase da vida em que devemos ser, necessária e obrigatoriamente, contra o assentado e o definitivo, quando a nossa ânsia de construir encontra sua melhor aplicação na tentativa de liquidar, sem dó nem piedade, o que as gerações anteriores conceberam e construiram.

Na noite de sua posse pude constatar, no entanto, que os anos haviam passado e Jorge continuava ainda um menino travesso, não temendo o que dele pudessem dizer, não fazendo certas concessões. Já na hora de sair de casa para a cerimônia na Academia, vestido no seu fardão, os belos bordados a ouro sobressaindo-se no tecido verde-escuro, olhava-se no espelho e eu, então, lhe disse: “Está bonito”.

“- Você acha?” - respondeu. - “Então me dê uma tesoura.”
“- Para quê?” - quis saber.
“- Me dê a tesoura e você vai ver.”

Enquanto falava, ia desabotoando a veste. Curiosa, entreguei-lhe a tesoura e, para meu espanto, vi que ele cortava o colarinho branco, engomado, duro, rente à parte verde.

Rindo, ele explicou: “Esse danado estava furando meu pescoço. Se alguém quiser reparar, paciência. Eu me sinto melhor agora, à vontade”.

Contando, certa vez, a uma senhora minha conhecida, esposa do grande escritor francês Maurice Druon, membro da Academia Francesa, essa travessura de Jorge, ela riu e me disse: “Ele e meu marido se parecem bastante. Imagine que, há pouco tempo Maurice encontrou num antiquário uma mesa de estilo, muito antiga e muito cara. Apaixonou-se pela mesa e em seguida a comprou: Naquela mesa, daí por diante, escreveria seus livros. Levou-a para seu gabinete e chamou-me em seguida: “Me consiga um serrote”. Não quis nem explicar para que desejava o serrote. “Você vai ver”, foi tudo o que disse. Antes que eu pudesse dissuadi-lo, pôs-se a serrar os pés da mesa. “Era muito alta e incômoda, vou me sentir mais confortável agora”. Rimos juntas, as duas esposas de escritores tão importantes, homens especiais, a cujas traquinagens tínhamos o privilégio de assistir.

Com a venda de Gabriela para a companhia americana, tivemos dinheiro para comprar uma casa na Bahia, onde passamos a viver. Jorge gostava de dizer: “Comprei uma casa com o dinheiro do imperialismo americano.”

Jorge voltava a seu chão, vinha ao encontro de seus personagens nas ladeiras do Pelourinho, no cais do porto, passeando com seu velho amigo, Mirabeau Sampaio, querido e fiel colega de infância. Ria muito, pregando peças a Carybé, artista fantástico, nascido na Argentina, que aqui chegara depois de ter lido Jubiabá. Carybé apaixononara-se pela Bahia sem conhecê-la, apenas pela descrição do romance: “Vou ver se esse baiano está dizendo a verdade.” Desembarcou, viu e na Bahia aportou para sempre com Nancy, sua mulher, e seus dois filhos. Ainda outra personalidade trazida por Jubiabá à Bahia, para sempre, foi o antropólogo francês Pierre Verger, amigo querido.

Lembro ainda de uma resposta de Jorge ao ser interpelado por sua amizade com Antônio Carlos Magalhães. Livre de todo e qualquer ranço de sectarismo - “o sectarismo limita e idiotiza as pessoas”, costumava dizer -, ele respondeu: “Somos adversários políticos, mas isso não nos impede de sermos amigos, de eu ser seu admirador. Não sou cego”.

Jorge voltava à Bahia, vinha saciar seu desejo de saborear um siri mole ou uma moqueca de peixe, tomar um sorvete de pitanga ou de umbu, vinha lavar os olhos com o rebolar de ancas das baianas a passar em sua frente. Era demais! Não dava conta de tanta inspiração.

Filha de São Paulo, terra do café, acompanhei Jorge à terra do cacau. A Bahia que aprendi a amar através de seus romances abriu-me os braços.

Em nossa casa do Rio Vermelho, vivemos com nossos filhos os melhores anos de nossas vidas. Nela fincamos os pés para sempre.

Foi na Bahia que, aos 63 anos, escrevi meu primeiro livro. Jamais entrara em minhas cogitações escrever um livro. Quando muito, fizera uma reportagem para uma revista, texto e fotos de minha autoria, sobre a estada de Sartre e Simone de Beauvoir no Brasil, outra sobre Carolina Maria de Jesus, autora de Quarto de Despejo e mais nada, que me lembre.

Lendo umas páginas que eu havia escrito a pedido de minha filha, uma história acontecida quando criança, Jorge gostou e me aconselhou: “Por que você não escreve um livro sobre tua infância? Será a história da menina pobre, mas de infância rica. Tente. Você poderá contar coisas de tua família de imigrantes italianos. Escreva com palavras simples como a deste texto, sem se preocupar com frases bonitas, sem tentar fazer literatura porque você não é literata. Eu também não sou literato.”

A confiança que Jorge depositou em mim assustou-me, comoveu-me, pois o conhecia demais para saber que jamais ele me exporia ao ridículo, aconselhando-me a escrever um livro se não me achasse capaz de fazê-lo.

Com tal credencial, sem ter nenhuma anotação, apenas a memória trabalhando, voltei ao passado, voltei a ser criança, recuperei amigos perdidos na distância do tempo, voltei às ruas mal iluminadas de São Paulo, escrevi meu primeiro livro: Anarquistas, graças a Deus. Jorge só o viu depois de pronto e parece que gostou, pois continuou me incentivando a escrever.

Pedindo desculpas a Jorge, abdiquei de meu nome de casada, nome que tanto prezo, assinando o livro com o de solteira. Não quis andar de muletas escorada por tão famoso marido. Se o livro agradar, pensei, que tenha sucesso pelo que ele valha, não por outro motivo qualquer.

Com uma bagagem tão grande de experiências vividas, uma vida tão longa, de alegrias e sofrimentos, chego agora aos 14 livros, este último escrito depois de Jorge partir.

Descobri, um dia, que ao escrever minhas memórias consigo escapar do sofrimento numa fuga reparadora. O último livro que publiquei foi escrito num momento dramático de minha vida.

Otimista por natureza, sempre achei que problemas, os mais difíceis, terminam por serem resolvidos. Assim, encarei a doença que afetava Jorge, atacado por uma degenerescência senil da mácula da retina que o impossibilitava de ler e escrever, deixando-o prostrado, o coração reclamando. Já nem sei quanto tempo durou essa agonia. Além da assistência médica permanente de um competente cardiologista sempre a postos, nosso dedicado amigo Jadelson Andrade, do empenho do oftalmologista, amigo querido, doutor Marcos Ávila, a esforçar-se pela recuperação dos olhos do amigo, não titubeei em apelar para tudo: Roguei a Deus, a um ebó de candomblé, ao espiritismo, a uma pagelança de índio e até à estrela de dona Angelina, que andava arredia, pedi que me ajudassem, fizessem Jorge voltar a ler e a escrever ou ao menos que o fizessem retornar à alegria de viver. Ninguém me ouviu, nem mesmo a estrela, tão eficiente, não deu confiança aos meus apelos, continuou ausente.

Recorri então ao computador, tentando trazer o meu amor de volta à vida, fazendo-o sorrir novamente; lembrando códigos divertidos de nossa família, ele pregando-me peças, comandando a casa como o grande comandante que sempre foi. Por uns poucos meses, consegui salvar-me de uma depressão. Esse livro, escrito em tais circunstâncias, conseguiu ser um livro leve e alegre. Eu o terminei na véspera de Jorge partir.

Ela, a estrela madrinha, que me abondonara no momento em que eu mais precisei de seus préstimos, sumira e, agora, ao ver-me entregue a tanta dor, reapareceu comandando corações de amigos que vieram em meu socorro.

Deles ouvi dizer que uma cadeira vaga, a que fora ocupada por Jorge, me esperava na Academia Brasileira de Letras: “Pense na satisfação dele ao ver você ocupando a Cadeira 23”, disseram-me: Eduardo Portella, José Sarney, Marcos Vinicius Vilaça, Antonio Olinto, Tarcísio Padilha, Arnaldo Niskier, Nélida Piñon, Murilo Melo Filho, Ivo Pitanguy, Marcos Almir Madeira, Evandro Lins e Silva, Afonso Arinos de Melo Franco, entre outros. Tanto carinho!

Sem saber o que decidir, mais triste do que nunca, envolta em saudades, necessitava escrever, trazer Jorge de volta, mas não era fácil iniciar um novo livro.

Um telefonema de Eduardo Portella, sabedor da minha profunda tristeza, vinha em meu socorro: “– Por que você não escreve ainda um livro sobre ele, Zélia? Você e seus filhos. Fale com João e Paloma. Eles dirão de sua experiência de amor com o pai, você a da amada por mais de meio século, será uma homenagem única!”

A meu pedido, Portella também homenagearia o amigo, escrevendo o prefácio.

Chamei meus filhos para acertar tudo, mas eles já estavam a par do projeto, Eduardo lhes telefonara. Cada qual diante de seu computador, Paloma, João e eu, partimos para a nossa viagem de amor. Trabalhamos com entusiasmo, com o coração, e sentimos, os três, que, mesmo depois de ter partido, Jorge permanecia ao nosso lado.

Ao Senhor Presidente da Academia, meu amigo Alberto da Costa e Silva, aos amigos acadêmicos, neste momento de tanta emoção, quero agradecer a homenagem que me prestaram ao votar em mim. Quero dizer da minha satisfação ao nos encontrarmos juntos nesta Casa da mais alta cultura, quando me concedem a honra de sentar na Cadeira que já foi ocupada por grandes homens da literatura brasileira e homens da maior dignidade.

Nesta Casa entrei hoje conduzida pela estrela de dona Angelina e iluminada por outra estrela que surgiu recentemente no céu e que brilha mais do que todas.

Ainda uma vez, obrigada de todo o coração.