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Silvério Gomes Pimenta, Dom

PADRE ANTÔNIO E PADRE LEANDRO PARTEM DO RIO E CHEGAM AO CARAÇA

Mas tornando agora ao fio de nossa história, este foi o homem, com quem tomou conhecimento o Padre Antônio Ferreira Viçoso no Rio de Janeiro, o qual em sabendo da vinda dos dois missionários correu ovante a fazer-lhes cordial visita. O mesmo foi verem-se, que penetrarem-se, e amarem-se estas duas almas, das mais puras e santas que então havia na terra. Desde logo nasceu em Joaquim o desejo de possuí-lo para o seu Seminário em Jacuecanga; e tais traças deu, que acabou por consegui-lo, como veremos daqui a pouco.

Estavam os dois missionários à espera do que Deus determinava de suas pessoas, e o ministro Tomás Antônio desejoso de empregar seus serviços, com o maior proveito, quando chegou a notícia da morte e testamento de outro herói cristão, o irmão Lourenço, fundador da casa do Caraça com o título de Senhora Mãe dos Homens. Deixava ele a El-Rei D. João VI herdeiro de sua fundação com a condição de ter ali missionários e um colégio, onde se educasse e instruísse a mocidade. Não podia vir mais a talho esta notícia, nem mostrar-se mais claro o para que Deus destinava aqueles dois fiéis servos seus.

Chama-os o ministro, dá-lhes parte do ocorrido, propõe-lhes tomarem conta do Caraça, e encherem os desejos do irmão Lourenço; aceitam-no os Padres. Mas como dois sós não podiam desempenhar suficientemente as cláusulas postas pelo fundador, concertou-se com o ministro mandar vir mais dois companheiros de Lisboa, o que logo se fez; e em menos de um ano chegaram os padres Jerônimo Gonçalves de Macedo e José Joaquim de Moura Alves Mendes.

Passou-lhes logo El-Rei D. João VI provisão para que o general de Minas lhes mandasse dar posse e entrega do santuário de Nossa Senhora Mãe dos Homens do Caraça com todas as suas dependências, e com ela os despediu para Minas.

Antes de partir para o novo destino, como souberam que se achava no Rio para sagrar-se o novo bispo de Mariana, D. Frei José da Santíssima Trindade, não quiseram, nem era razão, pôr-se a caminho antes de receber sua bênção e ordens, se alguma lhe aprouvesse dar-lhes. Agasalhou-os o Sr. Bispo com a bondade e carinho que distinguiam este eminente e santíssimo varão. E ouvindo-lhes que se iam estabelecer no Caraça, teve particular satisfação e gosto, pelo auxílio que lhe haviam de prestar na cultura da vinha, que Deus lhe confiara, e ao mesmo tempo não dissimulou a repugnância que tinha à honra do Episcopado, dizendo-lhes estas formais palavras: Ó se fôsseis para o meu calvário!... palavras que parecem proféticas pela exata confirmação que lhes deram os acontecimentos posteriores. Calvário foi o episcopado para o Sr. D. Frei José, e nesse calvário veio depois sentar-se o padre Antônio, a quem então falava. Não se realizaram porém ao todo, porque o padre Antônio Ferreira Viçoso não o substituiu, como desejava; mas lhe sucedeu, coisa que nunca lhe veio ao pensamento.

Instava a partida, e não pouco embaraçados se viam os dois peregrinos, por nada terem absolutamente, e exigir a jornada inevitáveis despesas. Nesta pressa acudiu-lhes a Providência pelo modo seguinte. Procura-os certo cavalheiro, encomenda-lhes que celebrem missa, uma cada um, por sua tenção, e que fossem buscar a esmola à sua casa. Não houve dúvida quanto ao celebrarem; quanto porém ao demandarem a esmola, não o fizeram com a mesma prontidão: pelo contrário, custava ao padre Antônio resolver-se a tal demanda, parecendo-lhe mais condecente a seu instituto nada buscar, e deixar à discrição do encomendante. Pensou de outro modo o padre Leandro; que no aperto presente era razão se sujeitassem a procurar o que lhes ofereciam. Venceu a necessidade; foram à casa do encomendante, e este a cada um deu a esmola de vinte mil réis, que apararam como vinda do céu, e foi a única provisão com que se puseram a caminho.

Já tinham estes missionários realizado uma notável conquista; porque um dos pilotos praticantes do navio que os transportou de Lisboa, notando o bom termo dos padres, e a santidade que transluzia de todos os seus atos, se foi pouco e pouco cativando de seu exemplo, até que de todo acabou de render-se às moções da graça. Deixa ele também barcos e redes, une-se aos padres, e afirma que em sua companhia quer viver, e servi-los nos misteres compatíveis com o estado laical, enquanto eles trabalhavam em ganhar almas para Deus. No Rio agregou-se-lhes também um sacerdote secular de nome José Matias, resolvido a imitá-los na vida apostólica de missionário, e com eles perseverou alguns anos, e prestou grandes serviços ao bem das almas.

Aparelhados como podiam, pelos fins de fevereiro tomaram o caminho do Caraça estes quatro companheiros. Duas canastras contendo alguns livros e algum fato menor para muda, eram todo o seu haver e bagagem. A jornada foi em extremo laboriosa pelas muitas chuvas e medonho estado das estradas, de que saberá fazer conceito quem houver transitado por onde eles vieram, quando faltavam na viação os melhoramentos que o tempo tem introduzido. Para quem não experimentou basta referir que os passageiros eram muitas vezes obrigados a pelejar desde o sol nado até ele posto, para vencer uma légua escassamente; porquanto muitos lugares pareciam verdadeiros tremedais, onde as cavalgaduras precisavam mais do socorro dos cavaleiros para tirar-se da lama, do que lhes prestavam auxílio fora dela.

Nesta pendência foram trabalhando, e vencendo caminho. Como chegaram ao arraial de Chapéu d’Uvas, receberam letras do Governador do bispado, Dr. Marcos Monteiro de Barros, pelas quais concedia aos missionários faculdade de confessar, pregar, e todo o exercício de suas ordens na diocese de Mariana. Esta fineza de quem ainda não os conhecia, assaz os consolou, e mais penhorados ficaram com semelhante demonstração da autoridade eclesiástica, por descobrirem nela a mão do Sr. D. José da SS. Trindade, que os meteu tão dentro no coração desde que os viu no Rio de Janeiro.

No Ouro Branco houveram de estanciar de falha muitos dias, e porventura mais de um mês, à espera das canastras onde vinha a provisão régia para o general mandar-lhes dar posse do Caraça, como deixamos referido. Trazia o padre Leandro esta carta consigo mesmo para maior segurança; mas parecendo ao padre Antônio que a devia resguardar com maior recado, pois, perdida ela, haviam de passar por muitos cuidados, e trabalhos, sobre os muitos que talvez ficassem baldados, acabou com ele que a fechasse em uma das arcas. Esta diligência, que ninguém negará ser de homem atentado e prudente, quase foi ocasião de perderem o que buscavam resguardar. Porquanto a azêmola, não sei por que descuido do almocreve, extraviou-se no caminho e morreu atolada com a cangalha e canastras sobre as costas. Sem saber do acontecido vieram os padres seguindo para diante; o tropeiro, como não achou o animal, corrido de sua negligência, e sem poder dar boa conta de si, sumiu-se, e nunca mais apareceu. Sucedeu isto no lugar denominado Borda do Campo, uma légua distante de Barbacena, vindo do Rio de Janeiro. Passados dias encontraram os moradores os restos do animal e a carga; mandaram abrir as arcas, cuidaram de enxugar os objetos maltratados pela chuva; e depois de muitas indagações, vindo a saber quais eram seus donos, cuidadosamente lhos remeteram.

Todo esse tempo estiveram os missionários de falha no Ouro Branco em casa de um cônego distinto por nome José da Costa, que os tratou com delicadeza, e ótimo gasalhado, sem ser com tudo ociosa a demora, porque estiveram prestando bons serviços nas confissões, que eram frequentes, por ser tempo da Quaresma. Aproveitaram-se também dessa detença para visitar o Santuário do Bom Jesus de Matosinhos de Congonhas do Campo, já então célebre pela devoção e romaria dos fiéis, e mais ainda pelas graças que era o Senhor servido de conceder aos que o visitavam de perto, ou de longe acudiam à sua misericórdia. Passada a Páscoa e os dias santos que ainda então a seguiam, despediram-se de seus hóspedes com muitas demonstrações de agradecimentos e continuaram a jornada. Chegados em Ouro Preto apresentaram ao general D. Manuel de Portugal e Castro as letras régias, para serem empossados nos bens do Caraça; e sendo sem demora despachados com mandado ao ouvidor de Sabará, a efeito de dar-lhes posse com as formalidades do estilo, não houveram mister fazer noite em Ouro Preto, e vieram pousar em Mariana.

Acolheu-os aqui o Governador com a boa sombra correspondente aos penhores, com que já em caminho os havia prevenido, e atrás deixamos relatado. Hospedou-os em palácio, acabou com eles para se ficarem aí o dia seguinte, e ao outro os fez acompanhar pelo padre José Alves até Catas Altas; comissão que executou com muito gosto seu, e não menor gratidão e rendimento dos missionários. Em uma jornada avançaram a Catas Altas, onde os hospedou o guarda-mor Inocêncio, homem rico em fazenda, e muito mais em virtudes, o qual depois por vezes acudiu aos padres em seus apertos, franqueando-lhes a bolsa, para pagarem quanto muito pudessem.

Do sítio chamado Pitangui, em que residia o guarda-mor, ao Caraça são três léguas de caminho nesse tempo aspérrimo, difícil e perigoso, por haverem-se de atravessar despenhadeiros, onde o menor tropeço precipitava em profundos abismos cavaleiros e cavalgaduras. Venceram contudo estas dificuldades sem apear, e foram montados até as escadas do Caraça.

É o Caraça um dos mais venerados santuários da Província de Minas; fundado pelo Irmão Lourenço, o qual fugindo da perseguição que o ímpio Marquês de Pombal movia a quanto era bem, veio sepultar-se nessas solidões, e consagrara a Deus o restante de seus dias. Seu testamento feito em Mariana a 20 de março de 1806 não abona a opinião dos que o dão por homem de alta fidalguia portuguesa; assim como é de todo falso o que dele se tem dito e escrito, que veio fazer penitência por crimes de morte. E ainda que seja verdade o que a fama espalha de sua nobreza, o que nem afirmamos, nem ousamos negar, não o é que abraçara a penitência por homicídios ou outros crimes cometidos, senão por pura virtude e devoção. Este sítio é, ao que parece, criado de indústria para esquecer o mundo e em doce contemplação arrebatar as almas da terra às alturas do céu. Jaz o santuário dentro de uma bacia, que pode ter uma légua, ou menos, de diâmetro na maior extensão. Guarnecem-na grossas montanhas, e tão empinadas, que ameaçam topetar no céu, cheias de penhascos, que por sua forma e pela mesma irregularidade compõem uma vista rica de encantos. Povoam esta bacia matas de arvoredo corpulento e secular, intercaladas a espaços de belas campinas, onde as flores e boninas recreiam os olhos com sua formosura, e com sua fragrância regalam o olfato. Do alto das penedias se desprendem vários regatos, formando algumas catadupas de tanto primor, que excedem quanto podemos encarecer com palavras; e depois de passearem pausadamente pelo vale, vão engrossar ribeirões, e dar nome a rios. Na encosta da parede esquerda de quem entra, e quase no fundo da bacia está o santuário dominando, autorizando, e, permitam-nos dizer, santificando este mimoso sítio, donde as misericórdias do Senhor haviam determinado derramar tantos benefícios sobre a Província de Minas e sobre todo o Brasil. Afora os acréscimos que o tempo obrigou a fazer-lhe, conserva-se a capela e casa qual a deixou o irmão Lourenço, um templo pequeno, e devoto, no meio de dois lanços de edifício sobradado, que ombreiam com ele à direita e à esquerda.

Aqui chegaram os nossos peregrinos dia em que rezavam o ofício de S. Vicente Ferreira, e foi 15 de abril desse ano de 1820. Dirigiram-se, como era razão, primeiro à capela, onde prostrados com os joelhos em terra, e o coração derretido em afetos, renderam ao Senhor as devidas graças por havê-los trazido ao cabo da jornada, e a salvamento por tantos perigos: aqui de novo lhe fizeram entrega de si, e pediram-lhe aprouvesse confirmá-los em seu serviço, e abençoar a empresa, a que por sua glória puseram mãos.

Logo no dia seguinte o padre Antônio, tomando por descanso de um trabalho outro trabalho, partiu para Sabará apresentar ao ouvidor da comarca as letras por que o general lhe ordenava dar aos padres posse da herança deixada pelo Irmão Lourenço a S. M. El-Rei D. João VI. Estava então este cargo em mãos do Dr. José Teixeira, o qual não se fez esperar muitos dias; presto se pôs no Caraça com o séquito da gente de justiça, que então se usava, e com todas as formalidades do direito meteu os missionários na posse da casa, bens e todas as dependências, do que se lavrou o competente auto.

(Vida de D. Antônio Ferreira Viçoso, bispo de Mariana e conde da Conceição, capítulo V, 2ª edição, 1892)