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Discurso de recepção

Discurso de recepção por Clóvis Beviláqua

RESPOSTA DO SR. CLÓVIS BEVILÁQUA

Para dizer-vos, numa sincera efusão de simpatia, que a vossa ausência era sentida nesta Casa, e que a vossa presença nos desvanece, teria qualquer outro mais louçania na frase, maior elevação nos conceitos; nenhum, entretanto, poria mais forte vibração de sentimentos não no dizer, porque a palavra reflete a feição mental de cada um, mas no simples gesto de vos abrir a porta, porque todos desta família vos estimam com igual afeto.

E a oração, que acabamos de ouvir, carinhosa evocação de uma fecunda e nobre existência, que se afirmou na sociedade, com distinção e brilho, excelentemente corresponde a esse estado d’alma, em que nos acha¬mos para convosco.

A arte superior, com que desenhastes a figura inolvidável de Lúcio de Mendonça, porque a recebestes do sentimento afetivo e da sinceridade benévola, avultou, na memória do nosso coração, a saudade do morto e, ao mesmo tempo, nos fez sentir quanto andamos bem inspirados, colocando-vos na cadeira, que ele ilustrou, sob o patrocínio do vate iluminado, em cujo estro passaram doloridas as tristezas íntimas da alma nacional.

Entre vós e o confrade, que substituís, há irrecusáveis analogias. Será puro acidente ter ele pertencido ao elevado Tribunal de que sois um dos mais puros ornamentos; mas, viesse de combinações inaveriguadas de hereditariedade, ou fosse que o feitio de ¬vossas almas recebesse a impressão de um modo semelhante ao se individualizarem, o certo é que eu vos sinto irmãos, no modo grave e simples de encarar a vida, no desassombro em face das dificuldades de toda ordem, sociais ou intelectuais, e nas aspirações de liberdade, em que o espírito se alça para regiões superiores e mais dilatados horizontes.

Destacastes, com muito critério, a característica primacial do nosso confrade extinto, como homem social, como elemento ativo do organismo político, a que pertencia: “a inalterada coerência e a perfeita unidade nos princípios, nos sentimentos e no caráter”. Mas essas prendas morais são igualmente vossas!

Se Euken é um idealista, que lembra Plotino, pelas concepções fantasiosas, não é simples miragem de sonho a sua idéia de que vida é um animado drama cósmico, em que se desdobram as faculdades concriadoras da natureza e do homem, esforçando-se o espírito por quebrar os grilhões, que o prendem à matéria, forjando esta as cadeias com que intenta subjugá-lo e impedi-lo de sereno librar-se no azul.
Não vos arreceeis deste dualismo oposto às idéias de vossa predileção, e da minha também, seja-me permitido recordá-lo, pois, se a vossa visão de mundo não coincide com a minha, em todos os seus pontes, como dois círculos de raio igual, são comuns os fundamentos das nossas convicções filosóficas.
Aceitemos, da concepção de Euken, apenas o que sobrenada à flor do pensamento, e não nos aventuremos pelo mar sem fundo e sem margens da sua metafísica. Para afirmarmos que o espírito atua sobre a natureza, não e preciso adotar o credo idealista do filósofo alemão. Basta olhar para a história das civilizações. É suficiente considerar as maravilhosas transformações operadas pela indústria, pelas artes, pela ciência.

Vós mesmo dissestes:

“Nem os grandes homens podem tudo, nem deixam de poder alguma coisa, para o bem ou para o mal. Sem o poder mental de Sócrates, de Platão e de Aristóteles, provavelmente não teríamos tido aquelas profundas concepções filosóficas que, ainda hoje, os cérebros mais potentes nada mais fazem do que desenvolver.”

E não é somente como inteligência que o homem revela as suas faculdades concriadoras, ao lado da natureza. Força produtora considerável lhe é também a vontade, quando é o expoente de um caráter enérgico, ou, como diria Maudslay, de um eu fortemente constituído. Em Lúcio de Mendonça, a atividade intelectual era dirigida pela integridade do caráter; de modo que a sua influência no meio social, em que viveu, foi um assinalado impulso para o progresso de sua pátria, não simplesmente pelo aspecto literário, mas, ainda, pelo moral e político. As idealidades sociais, como a escola de Ardigò costuma designar as belas aspirações que iluminam, dirigem e consolam a porção mais elevada da alma humana, tinham para ele uma sedução incontrastável, e multiplicavam-lhe as capacidades de resistência e combate. Variando os modos e os processos, tendes muito de semelhante a essa organização moral e, com fervor correspondente, prosseguis um ideal de liberdade organizada pela justiça, que imprimirá, naturalmente, aos resultados de vossa ação sobre os vossos patrícios, uma fisionomia, que não há de diferir muito do precipitado moral da influência de Lúcio de Mendonça na sociedade brasileira.

Compreende-se que as palavras – justiça e liberdade – não foram aqui empregadas para um simples efeito literário de momento. Falo da liberdade externa de agir na vida social, conquista do indivíduo, que consegue, sem sair do meio que o circunda, destacar-se da massa homogênea da coletividade, por esse mesmo processo de diferenciação, que suscita, no universo, o aparecimento indefinido das variedades fenomênicas, para, aceitando as normas, que lhe são impostas pelas necessidades da vida em comum, ser uma força cons¬ciente a impulsar a máquina poderosa e vasta do mundo social, ainda que numa quantidade mínima, desaparecendo rápida no eterno volver dos tempos.

Olhada por este ângulo, a história se nos apresenta como um longo e penoso, mas confortante processo de emancipação; podemos dizer, ampliando um pensamento de Berolzeimer: emancipação do escravo, do poder do senhor; emancipação da plebe, da dominação patrícia; emancipação do Estado, da autoridade da Igreja; emancipação da inteligência, das malhas da superstição; emancipação política; emancipação doméstica, jurídica e espiritual da mulher. Mas emancipação não quer dizer eliminação das leis, subversão da normalidade. Se o indivíduo consegue destacar-se da confusão coletiva, não é para viver soberano e estranho à comunhão. Tal não pode ser. Como os corpos físicos se acham, necessariamente, dentro do éter que os envolve, domina, penetra e movimenta, o indivíduo tem de viver no meio social, onde se move, para o qual coopera, e sobre o qual reage, partícula infinitesimal das energias que trabalham o universo.

Para que, portanto, seja possível a liberdade, como expressão do valor do indivíduo perante a comunhão, necessário se faz, igualmente, que esta seja contida por um princípio superior, a cujo imperativo não lhe seja permitido desobedecer. A sociedade não pode viver sem o equilíbrio dos elementos que a compõem. Para manter esse equilíbrio foi criado o Direito; e o ideal deste é estabelecê-lo, sem prejudicar o desenvolvimento íntegro e harmônico das energias sociais. Nisto consiste a justiça, que pode achar-se em desarmonia com a lei política, porém nunca em antítese com as necessidades fundamentais da vida social, que as consciências de escol retratam. A liberdade organizada pela justiça é, pois, a expansão da atividade normal de cada indivíduo ou agrupamento de indivíduos, tão ampla e tão intensa quanto for possível, sem perturbação da atividade lícita dos outros, e sem oposição aos interesses vitais da sociedade.

Mas, se a vossa organização moral apresenta pontos de notável semelhança com a de Lúcio de Mendonça, a fisionomia intelectual é bem diversa. Poeta, jornalista, político militante, predominavam, no autor das Visões do Abismo, a emoção estética e a emoção social, e, muitas vezes, os entusiasmos como as irritações desta afogavam, numa quente labareda de vulcão, as suavidades líricas, em que a primeira começara a florir. Formado em Direito e, mais tarde exercendo, muito distintamente, alta função na magistratura, as abstrações do Direito não lhe atraíam, preferentemente, a inteligência límpida e vivaz.

As cogitações filosóficas também não lhe despertavam o mesmo interesse que em vós despertam. Ele era um fino literato a perlustrar os domínios do direito, tendo por guias o sentimento de justiça, que era nele claro e forte, e os princípios políticos, bem cimentados pela consonância da educação com o temperamento. Vós prezais, em muito, as boas letras, mas ao estudo do Direito e da Filosofia tivestes de consagrar mais demoradas horas, casando as tendências do espírito com as exigências da vida.

Em Filosofia sois evolucionista com Spencer e, através dessa doutrina filosófica, olhais o evolver da sociedade, as prescrições do Direito e as lutas em que se debate a alma humana, presa no tórculo das solicitações divergentes. Certo não fazeis dos livros do filósofo inglês um Alcorão intangível; o espírito vos fica livre, não somente para recusardes algumas das conclusões do mestre, como, ainda, para tentardes as vossas próprias induções ou aceitardes as que, encontradas por outros, vos parecerem dignas de ser incorporadas à sistematização da experiência; mas o encadeamento dos fenômenos se vos afigura, como ao pensador britânico, um natural desdobrar de forças, que se transformam indefinidamente, idênticas na sua substancialidade, apesar da variedade dos modos, pelos quais no-las revela o nosso aparelho perceptivo.

Tem-se exprobrado, ao evolucionismo, sua feição materialista, pela qual, se acaso se prende aos grandes espíritos da antiguidade grega, à escola científica de Alexandria, e aos admiráveis sistematizadores do século XVIII, tornou-se impróprio, sentenciam, a permitir desafogado surto a certas qualidades, sem as quais o homem é um ser mutilado.

Esses predicamentos, que se supõem sacrificados pela filosofia empirista, são os impulsos generosos da alma, que atenuam as asperezas da vida, espargindo sobre elas a unção da bondade, quer sob a forma passiva da tolerância, quer sob a modalidade ativa da beneficência; ou fazem menores as dores do presente, anestesiando-as com as esperanças de reparação no futuro; ou colocam, ao lado da lei austera, a mansuetude da eqüidade, que desvenda os olhos à justiça, para que não vá ferir a quem devera amparar.

Seria inoportuno desenvolver a defesa do materialismo, quando esta resulta das investigações severas de idealistas sinceros, como Lange, e a do evolucionismo, quando a temos completa e brilhante em Sílvio Romero.
Inoportuno seria, também, reconsiderar as objeções levantadas contra a doutrina da evolução, porque há quem não compreenda a vida psíquica e a organização social, como estados diferentes da mesma força, que elaborou a nebulosa primitiva, dela arrancou os astros, e fez surgir a vida, na terra resfriada; e porque alguns entendem que a relatividade objetiva e subjetiva dos conhecimentos humanos, princípio, aliás, comum a várias formas da Filosofia moderna, outra coisa não é senão o ceticismo, que a mente enferma produz.

Faz-se a primeira destas objeções em nome do empirismo pluralista, segundo a denominação de um dos seus próceres, William James; faz-se a segunda, em nome desse estado de consciência, que o Fausto, na tradução de Castilho, chama

ânsia inata,
que nos ala a querer no infinito escuro val
as altas regiões, onde a alma se dilata,
em comunicação com o sobrenatural.

Esse amor ao que transcende a esfera da experiência, é tão imperioso que, às vezes, irrompe, inopinadamente, para coroar de fantasias um sistema, que declarara afastar todo método que não fosse o experimental. Mas... não disputemos. Antes, voltando-nos para os que podem ter voto neste pleito, digamos como o poeta soberano:

O voi ch’avete l’intelletti sani,
Miratte la dottrina che s’asconde
Sott’il velame degli versi strani.

Na Alemanha, o evolucionismo jurídico, depois de ter, com os domínios das minhas pesquisas mais freqüentes, que também são as vossas, encontro, sempre, confirmações da doutrina evolucionista.
Na Alemanha, o evolucionismo jurídico, depois de ter, com os princípios do interesse, alcançado as generalizações tão profundas quanto luminosas de Ihering, depois das assombrosas condensações da jurisprudência etnológica de Hermann Post, aproxima-se agora de Hegel, e o mais estimado representante da Filosofia jurídica de hoje, naquele país de intensa cultura, Joseph Köhler, é neo-hegeliano.

Os desta escola repelem o apriorismo racionalista de Stammler, que pretende ressuscitar o finado Direito natural, aceitando o método empírico dos novos tempos e vêem, no Direito, um resultado da cultura, que lhe reflete os vários componentes ideais e materiais. De Hegel lhes ficaram a razão imanente do Direito e a relativa justificação dos vários estádios de seu desenvolvimento. Não estaríamos longe da verdade, insinuando que, apesar do nome e de algumas fórmulas do sistema, o neo-hegelianismo, tal como o adotam os luminares da ciência jurídica alemã, é um empirismo, que procura destacar dos fatos as uniformidades de existência e sucessão, e a razão de ser das transformações, que se operam na história. Apenas, para que as explicações não fiquem a meio caminho, permite-se que o resto da jornada seja feito à luz da Metafísica.

Na Itália, mercê da influência de Spencer e Ardigo sobre um considerável grupo de juristas egrégios, como D’Aguano, Vanni, Brugi, Miceli, Groppali, o evolucionismo jurídico é de feitio mais positivo.
Em ambos os países, e preteri falar daqueles em que mais se têm aprofundado, em nossos dias, os estudos de Filosofia Jurídica, aceito o ponto de vista evolucionista, o Direito se compreende como um fenômeno social, que se revela na História. O observador apenas o vê atravessar as épocas e os povo em constante remodelação, e o teorista indica-lhe as curvas da marcha para assinalar como reflete a cultura dominante e como realiza a justiça. Outros dirão que o Direito é necessidade ética e não existência de fato; o evolucionista quer remontar às categorias, pela observação de que existe ou se realizou na História.

Entre estas duas poderosas correntes, eu, como vós, inclino-me para o empirismo evolucionista, ainda que veja o novo idealismo puro. Para instilar no Direito as idéias da ética, as expansões do liberalismo, as solicitações da eqüidade e do humanismo, basta não procurar segregá-lo do conjunto social, não desconhecer as relações de mútua penetração entre ele e as diversas formas da atividade humana, não turvar as soluções da razão esclarecida pelo saber com as considerações de origem menos pura.

Com apoio no evolucionismo, expusestes a doutrina jurídica, em toda a sua amplitude e complexidade, quando lente na Faculdade de S. Paulo, cujas gloriosas tradições soubestes honrar, a cujos fastos acrescentastes uma página animada, que se não apagará. Ensinastes, ali, que o Direito não é a disciplina obscura e rígida que muitos suspeitam, e escrevestes essa erudita e bem deduzida dissertação de Psicologia aplicada ao Direito Penal, que vos sagraria mestre, se já não tivésseis conquistado o título por outros feitos.

Estes resultados vos devem deixar tranqüilo, quanto à orientação que destes ao vosso pensamento, e vos dirão que ainda não soou a hora de mudá-la.
Fora do domínio do Direito, mas, ainda dentro das raias das investigações filosóficas, debatestes a questão da classificação da História entre as ciências. Tratava-se de publicar uma tradução da obra magnífica de Buckle, História da Civilização na Inglaterra, e, chamado a prefaciá-la, examinastes, uma por uma, todas as doutrinas sobre o valor e a categoria da História, pesastes todas as idéias, discutistes todos os autores, que se externaram sobre o assunto, e, depois dessa paciente inquirição, concluístes recusando a essa disciplina o caráter de ciência.

Vosso trabalho é de 1900. Em dez anos, as idéias, que se não petrificam na intransigência do sectarismo, podem sofrer modificações, e vós fechastes o trabalho de então, como quem não considera o caso irrevogavelmente julgado, despedindo-vos do leitor com a célebre frase de Shakespeare, que escarnece das pretensões da pobre filosofia humana a desvendar o mistérios do mundo. Esse tom dubitativo de vossa conclusão leva-me a crer (esta crença pode ser uma forma do desejo) que a vossa inteligência ávida de verdade, pronta a perceber a ordem natural dos fatos e a correlação das idéias, tenha reconhecido que ao lado da sociologia, ciência abstrata, que procura determinar as leis referentes aos fenômenos sociais, e de cujo valor estáveis convencido, é possível a História, ciência concreta que apresenta a sociedade em marcha para o seus destinos, crescendo e desenvolvendo-se, de acordo com as leis que a Sociologia tenta extrair do confuso enovelamento dos fatos.

Dissestes que “a História coleciona e dispõe, metodicamente, os materiais, em cuja observação e comparação haurem suas induções ciências diversas. O método descritivo, aplicado pelo historiador, é um excelente instrumento, acrescentastes, para a aquisição de verdades gerais da Sociologia e seus ramos especiais”.

Este pensamento é justo e corresponde ao que, não há muito, externava Samló, reclamando a criação de uma Sociologia rigorosa¬mente descritiva, para tornar possível à Sociologia abstrata encontrar as suas induções na floresta inextricável dos acontecimentos. Mas, se assim é, forçoso se faz reconhecer que o historiador, para apanhar a verdadeira expressão dos fatos e a sua natural filiação, tem de penetrar-lhes o âmago e descobrir as influências físicas, econômicas, étnicas, morais e até individuais, de cujo concurso resultaram. Não será um simples narrador; há de ser um psicólogo da sociedade, porque é a alma social, o homem no seu aspecto geral de ser talhado para a existência coletiva e não incompleto pela desagregação individual, que lhe cumpre apanhar em ação constante, no trabalho intérmino e grandioso da civilização.

E nessa tarefa, sem dúvida escabrosíssima, há os elementos de uma ciência, não de leis ou de noções, mas de fenômenos, que se expõem metodicamente, coordenados, segundo a relação da casualidade.
Perdoai-me, se não compreendi bem o vosso pensamento neste particular. Isto, aliás, pouco importa. O que mais do que essa possível divergência me interessa, é poder afirmar, como síntese da apreciação de quanto de vós conheço, que possuís, bem acentuadamente, isso que Renan chamou boa saúde intelectual, exemplificando com as mentalidades tão diversas nos seus produtos, mas tão semelhantes na sua constituição e na sua força, de Luciano, Montaigne e Voltaire. Não pretendo comparar-vos com qualquer desses escritores de ceticismo jovial ou áspero, panfletários de gênio, que dispersaram, numa congérie de ensaios multifários, ditos picantes, observações sagazes, pinturas de surpreendente verdade.

Vosso feitio é outro. Mas se a saúde mental é o equilíbrio das faculdades do espírito, que dá o bom senso, a visão clara das coisas e o poder de transmiti-la aos outros, com sinceridade e sem os arrebatamentos, que desviam o juízo da trilha da retidão, vós a tendes, sem dúvida. E, de par com a saúde intelectual, tendes a saúde moral, quero dizer, essa inteireza de caráter e amor da justiça, sobre que tão adequadamente assenta a vossa toga de magistrado, e que tanto vos eleva na estima dos contemporâneos.