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Discurso de recepção

Discurso de recepção por Cassiano Ricardo

Sr. Menotti Del Picchia,

Em certa época de nativismo houve muitos patrícios nossos que, desejosos de exprimir mais ostensivamente o seu apego à terra, juntavam ao nome português um sobrenome indígena.

Quem não se chamasse Buriti, Muriti, Jutaí, Aimoré, Araripe não seria bem brasileiro. Cita-se, até, a resolução do Visconde de Jequitinhonha, que foi logo às do cabo: de Francisco Gomes Brandão passou a chamar-se Francisco Gê Acaiaba Montezuma.

O vosso caso é bem outro, e não menos interessante. Tendes um nome enormemente ítalo-colorido. Mais ítalo-colorido que os de Agripino Grieco e Sud Mennuci. Não recorrestes ao expediente – o que vos teria sido facílimo – do Visconde de Jequitinhonha. No entanto, de que ventura intelectual é tecida a vossa brasilidade!

É que não sois brasileiro apenas de nome, senão de espírito e sentimento. E o fato de vos chamardes Menotti Del Picchia, e serdes louro, não impediu que escrevêsseis um poema chamado “Juca Mulato”...

A mescla ítalo-brasileira

Menos por esse contraste entre Menotti e Juca Mulato do que pela audácia com que valorizastes o mestiço, Jackson de Figueiredo perguntava:

“Há alguns anos atrás, quem teria coragem de publicar um poema com esse título?”

Já João Ribeiro, encarando a questão sob outro aspecto, dizia: “O Sr. Menotti Del Picchia é um ítalo-brasileiro; mas é um ítalo-brasileiro que toma para epígrafe do seu poema (referia-se ao “Moisés”) quatro ou cinco versos do portuguesíssimo Castilho...”

Sabe-se, hoje, que na sociedade bandeirante entra o elemento italiano, em larga dose. A própria sintaxe lusa – já não direi o vocabulário – sofre muito com isso, pois está sendo substituída por uma sintaxe ítalo-brasileira digna de melhor estudo por parte desta Academia.

É comum ouvir-se por lá – a observação parte ainda de João Ribeiro – os ítalo-brasileiros dizerem: “Viajarei com o trem das sete.” Ora, adverte o mestre, o trem pode ser brasileiro, mas “com o trem” é italiano.
Contudo, Sr. Menotti Del Picchia, já nascestes viajando de trem; e não com o trem.

Brasileiro há 51 anos

Sois, portanto, brasileiro do melhor quilate.

Não tendes – parece evidente – quatrocentos anos; tendes apenas 51. Que importa? Sem os quatrocentos, e mesmo sem um sobrenome indígena, sois tão brasileiro como o nosso inesquecível Alcântara Machado e – possivelmente – mais brasileiro do que o Sr. Acaiaba Montezuma.

Pelo menos, já era esse o vosso sentimento quando, ainda aos vinte e poucos anos de idade, vos opusestes tenazmente (1923) à criação, em São Paulo, de uma “Sociedade de Filhos de Italianos”, nascidos no Brasil. Verberastes a iniciativa como “infeliz, anfíbia e monstruosa”. E dissestes:

Penso que os espíritos que engendraram tão singular programa, destinado a recolorir de vários matizes os já fundidos elementos étnicos que formam a nossa nacionalidade, devem mudar de rota. Amanhã, um Brasil composto de filhos de italianos, filhos de portugueses, filhos de sírios, filhos de alemães, filhos de espanhóis, não passaria de uma colcha de retalhos ridiculamente estendida na região mais fecunda do continente. É aos moços de minha geração – dizíeis, inflamado pela vossa brasilidade – que dirijo estas palavras. Não hesito em afirmar que nenhum filho de italiano, nascido no Brasil, aderirá a tão absurda instituição.

Ali por volta de 87

Tínheis razão em vosso protesto, tão oportuno ontem quanto hoje.

Que dizer, porém, dos erros de nossa política imigratória então vigente?

Não há muito, Oliveira Viana aludia, num dos seus magistrais estudos, a certa lei nacional que premiava – satisfeitas algumas condições – o imigrante bem-comportado com uma viagem de recreio ao país de onde viera. A recompensa ao bom imigrante – dizia o autor das Populações Meridionais – “não seria uma data de terra, nem um crédito para ampliar seus negócios”; seria a sua desvinculação do solo, para que ele não esquecesse, jamais, a pátria de origem. Esse outro caso, como vedes, não destoa muito do que combatestes com rara insuspeição e denodo. A verdade, porém, é uma só: entre os filhos de italianos, que pretenderam fundar a tal “sociedade anfíbia e monstruosa”, um, pelo menos, jamais poderia figurar – o autor de “Juca Mulato”; e dado que tenha existido algum imigrante com um prêmio de retorno à Europa, não foi, seguramente, aquele que desembarcou em Santos, “com a timidez do meteco nos olhos”, ali por volta de 1887... Ao contrário, o pai Del Picchia viera para o Brasil, a fim de aqui “nascer de novo”, como na linguagem bíblica. E o seu prêmio não foi o do regresso oferecido ao expatriado; foi o de criar raízes, na terra amorosa. Direi melhor se disser que o seu verdadeiro prêmio foi o filho ilustre, que hoje lhe exalta o nome e a memória. Prêmio que, afinal, teria sido bem maior se a estas horas – velhinho, as mãos calejadas pelo trabalho – aqui estivesse, tomado de santo orgulho por ver o filho metido no “fardão acadêmico”, só alcançado por poucos mas ambicionado secretamente por todos os escritores, inclusive pelos que mais o ironizam.

Se ele não está aqui, em pessoa, presente à vossa alegria, é certo, porém, que o estará em espírito.

E se não chegou a ver o filho fardado de acadêmico, chegou a vê-lo triunfar muitas vezes, nos vários ramos de atividade a que vos dedicastes. Porque – e agora é que passo ao assunto desta recepção – bem poucos escritores brasileiros terão triunfado tão numerosamente como vós. E tão merecidamente.

Um poeta por vários caminhos

As várias modalidades de ação intelectual e profissional, nas quais afirmastes os vossos méritos, indicam bem os caminhos por onde andastes até hoje, em vosso bandeirismo pessoal, perquiridor e revelador.

Assim, nascido na própria capital de São Paulo, desde muito cedo, ainda menino, conhecestes a vida rural – em Itapira – e respirastes o ar da terra cabocla. Este contato direto com a faina agrícola é que explica muita coisa em vossa poesia, em vossos romances, em vossos estudos nacionais. Moço, em idade de curso superior, voltastes do sítio e resolvestes ser bacharel – que ser bacharel é o destino dos poetas. Conquistastes o vosso diploma, na Faculdade de Direito por onde haviam passado Castro Alves, Fagundes Varela, Álvares de Azevedo. Era o banho lustral da Poesia e do Direito; o casamento dos vossos primeiros poemas com as primeiras leis dos Códigos.

Como escritor – pois a pena é a principal arma com que vencestes na vida – tendes sido tudo: jornalista, poeta, romancista, novelista, cronista, contista, teatrólogo, polemista.

E assim como o vosso nome é terrivelmente italiano e sois terrivelmente brasileiro, essa aparente dispersão literária é o elemento vital de vossa coerência.

Ia-me esquecendo de que sois ainda escultor e musicista. Marginalmente, mas sois.

Escultor, realizastes uma admirável contradição; uma cabeça de Antonieta Rudge e outra, de D. Quixote. Musicista, não me interessa saber que instrumento tocais – embora ouça dizer que sois devoto de Kubilick. Musicólogo, gostais tanto de um Stravinski, isto é, gostais tanto da música construída pelos dados da razão – onde o artista não teve a preocupação de localizar a sua autobiografia sonora – como gostais de um Beethoven, colorido e humano.

Juca Mulato e a estatística

Longe de mim o desejo de ser indiscreto. Já que me lembrei, porém, do escultor e do musicista, não posso esquecer o industrial, o pintor, o deputado, o editor.

Industrial – embora em pequena escala – não sei se fostes bem-sucedido em vossa aventura. Sei que fostes fiel ao destino de poeta, e ensinastes hora certa e pontualidade a muita gente. Pintor, vossos quadros são uma verdadeira festa para os olhos. Não sei julgá-los; só sei que um deles me agrada muito: Helena entre os sete anões. Deputado pelo PRP, e apesar do PRP, pronunciastes vários discursos “inconvenientes”. Tabelião, reconheceis firmas e passais escrituras; ou melhor, ouvis pedidos de autógrafos toda vez que reconheceis uma firma, e de romances, toda vez que assinais uma escritura... Editor de livros literários, os livros que editastes foram sempre por conta do autor. Autor, correis agora por conta do editor, e com que vantagem para este! O exemplo do Juca Mulato é típico. Em 1917, 500 exemplares apenas; logo em seguida, já duas edições de três mil exemplares cada uma. Depois o “moto contínuo” que chega até hoje: catorze edições consecutivas. Cento e vinte e oito mil exemplares em caminho de novas tiragens, cada vez mais vultosas.

Com os vossos outros livros, a mesma coisa.

Ao todo, contando-se poesia, romance e ensaios, a vossa obra já anda por um milhão de exemplares.

Mas só o Juca Mulato e As Máscaras terão rendido, em bruto – em favor do editor, é claro –, um milhão e setenta mil cruzeiros.

Não sois, como se vê, um caso apenas de poesia; sois, também, um caso de estatística...

A má fama futurista

Em torno desses aspectos tão sugestivos de vossa personalidade é que gostarei de orientar – no decorrer desta saudação, de que me incumbiu a Academia – as reflexões que me despertais.

Vou, portanto, procurar demonstrar, a meu modo – despretensiosamente –, que sois múltiplo, numeroso, onímodo, colorido, para serdes quem sois, isto é, uno e sincero; e que sois instantâneo, ágil, porque a vossa instantaneidade prodigiosa é o segredo provável de vossa profundidade toda vez que chegais a ser profundo.

Já na Semana de Arte Moderna, documentastes bem a riqueza de tais atributos, só aparentemente contraditórios.

A história é recente, os seus heróis ainda estão vivos – com exceção de Graça Aranha, Paulo Prado e Ronald de Carvalho – e não há nada mais discutido do que histórias de gente viva.

Mas, entre várias coisas controvertidas, uma já está assentada como certa.

É a de que fostes – e esse o Menotti que conheci no auge da inquietação e da notoriedade – um dos demônios iniciadores do Movimento Modernista, em 1922.

Brecheret havia chegado da Europa trazendo uma carga de alto poder explosivo: os seus geniais aleijões expressionistas. Anita Malfatti havia, também, trazido de lá uns terríveis quadros cubistas. E foi a conta. Surgiram os Inconfidentes da Arte Nova, em torno do escultor e da pintora. Éreis um deles, e dos de capa preta. E logo na primeira noitada do Teatro Municipal de São Paulo – onde se proclamou a rebelião – coube-vos o encargo de orador oficial. Nada menos que orador oficial no maior bate-boca literário de que há notícia neste País.

Júpiter poderá entrar em nossa Arte – vou ler um pequeno trecho do vosso discurso, então pronunciado –, mas não o admitiremos nu, inatual, cabeludo, como o querem os parnasianos. Não queremos saber de escândalos, nem de ter que ajustar contas com a polícia. O pai dos deuses, para transitar em nossas ruas, é mister que vá, antes, ao barbeiro, vista um paletó-saco, deixe em casa o perigoso revólver olímpico, que é a caixinha dos raios, e burguês, e pacífico, tal como o pintou André Gide, se anule na vida comum, na tragédia comum dos outros homens. Basta de se exaltar artimanhas de Ulisses, num século em que o conto do vigário atingiu a perfeição de uma obra-prima. Basta de se descrever a carreira dos sátiros atrás das ninfas; a Babilônia paulista está cheia de faunos urbanos e as ninfas modernas dançam maxixe ao som do jazz, sem temer mais os egipãs da República.

Morra a Hélade! Organizemos um zé-pereira canalha para dar uma vaia definitiva e formidável nos deuses do Parnaso.

O feitiço contra o feiticeiro

Não obstante o ardor com que falastes – nessa ocasião – em “vaia definitiva nos deuses do Parnaso” – o vaiado fostes vós.

E como o movimento era de Independência mas, ao começo, foi de pura importação, as próprias vaias do Municipal, inclusive a que recebestes, haviam vindo da Europa.

Não podia a Semana de Arte Moderna escapar a tal signo. Ao lado de outros escritores, auferistes o vosso quinhão de vaia. Fostes vaiado, apupado; quase não pudestes pronunciar o vosso discurso (que hoje vemos ter sido quase inocente) e aí está a prova de que cumpristes a vossa missão com galhardia.

Tão grande a vaia que, no dia seguinte, Mário de Andrade vos escreveu uma carta particular...

“Carta muito particular, dizia o autor da Paulicéia Desvairada. Que tal? Conseguimos, enfim, o que desejávamos: celebridade. Outro meio não havia de a conseguirmos. Era só assim, aproveitando a cólera dos araras.” Mas – a História não se faz sem justiça – esclarecestes a vossa posição, numa fulminante réplica a Oscar Guanabarino. Nada de futurismo. O que a Semana de Arte Moderna queria era outra coisa. Era que fôssemos mais do nosso País e do nosso tempo. “Modernos e brasileiros. Livres e espontâneos. Individuais e sinceros.”

E o curioso é que, mais tarde, quando Marinetti veio ao Brasil – em 1927, se não me engano – precedido da má fama que lhe valeram as vaias européias, a maior parte dos que foram ouvi-lo não tinha outro intuito senão vaiá-lo.

Ai, Marinetti,
se eu fora como tu,
fazia conferências
montado num bambu.

– Dizem que nós, futuristas, gostamos de ser vaiados (sifflés), mas não é verdade; nós só gostamos da vaia (sifflement).

Conferência futurista, sem vaia, não seria conferência.

O modernismo e D. João VI

A essa altura – vale a pena fixar este ponto – escrevestes aquele famoso artigo saudando o Grande Passadista. Explicastes que já éramos o País do futuro.

No Brasil, não havia razão lógica e social para o futurismo ortodoxo, porque o prestígio do nosso passado não era de molde a tolher a liberdade de nossa maneira de ser futura. Aliás, ao nosso individualismo estético repugnava a jaula de uma escola. Procurávamos, cada um, atuar de acordo com o nosso temperamento, dentro da mais arrojada sinceridade.

Se o Modernismo fosse uma nova importação, seria de liberdade. Já que vivíamos de reflexos literários, ao menos esse seria útil. Sendo destruição na Europa, nada teria que destruir, no Brasil, a não ser outras fórmulas anteriores, igualmente importadas. Mesmo no domínio das idéias políticas não era a primeira vez que assim procedíamos. O indianismo de torna-viagem é um exemplo, tanto que Capistrano havia identificado um indianismo nosso, de tradição popular, antes que nos viesse o da Europa, via Cooper, Chateaubriand ou Montaigne. No domínio ideológico, o mito do “bom selvagem” é outro exemplo (já que estamos falando de indianismo) e esse, provavelmente, mais grave. Pois não fora ele o inspirador das idéias que motivaram a Revolução Francesa – um dos movimentos cardeais da História humana? As matérias-primas – disse-o admiravelmente Afonso Arinos de Melo Franco – com que se fabricavam as doutrinas futuras, “daqui saíam para a Europa e de lá nos regressavam transformadas, para o nosso gasto, sob a forma de artigos importados”... Daí certos paradoxos, que eram futuristas a seu tempo, e entre os quais já uma vez tive ocasião de citar o de D. João VI. Veio ele, segundo reza a História, perseguido pelas idéias francesas; mas o certo – o que a História não explicou – é que ele veio perseguido pelo mito do bom selvagem, isto é, muito mais pelo índio brasileiro do que pelo General Junot.

O Grupo Verdamarelo e a Anta

E que esse era, por ocasião do Futurismo importado, o vosso pensamento, provam-no os fatos.

Provam-no os fatos, mais do que o artigo que escrevestes em réplica a Oscar Guanabarino, ou a saudação que dirigistes a Marinetti, o Grande Passadista. O próprio Mário de Andrade reconhecendo que “o espírito modernista e as suas modas foram importados da Europa”, diz que não se pode, entretanto, esquecer todo o movimento regionalista, aberto justamente em São Paulo e imediatamente antes pela Revista do Brasil; isso seria esquecer todo o movimento editorial de Monteiro Lobato; esquecer a arquitetura e até o urbanismo (Debugras) neocolonial, nascidos em São Paulo. “Desta ética estávamos impregnados, acrescenta ele. Menotti Del Picchia nos dera o Juca Mulato, (estou reproduzindo as palavras de Mário), e estudávamos a arte tradicional brasileira, etc.” Mas os fatos não param aí e um deles bastaria para definir a vossa tendência dentro do Modernismo; é que, quando se formaram grupos, cada qual deitando o seu manifesto, já na transição do período caótico para o da fixação das novas tendências, fostes dos primeiros a reagir contra os excessos em voga. Com outros escritores, fundastes o Grupo Verdamarelo – mais tarde Grupo da Anta, e aí demonstrastes o vosso profundo espírito de brasilidade, já documentado em Juca Mulato. Combatestes, então, a chamada literatura suicida (a que se referia, em magnífico estudo, Alceu Amoroso Lima). Escrevestes numerosíssimos artigos de polêmica, todos no sentido de provar que o Brasil estava em condições – mais do que nas tentativas do Romantismo – de fundar a sua literatura própria, recorrendo ao mistério de sua criação.

Se havia um Modernismo que nasceu nos salões da aristocracia – como nascera a Revista Fantástica iniciadora do Parnasianismo, fundada nos salões dos marqueses de Ricord –, não era esse o Modernismo a que desejastes pertencer.

O Manifesto Verdamarelo é um documento histórico, não só de combate ao Futurismo senão também de condenação à chamada “poesia pau-brasil” então em voga, fundada por Oswald de Andrade mas... – pura contrafação do Dadaísmo francês.

Na impossibilidade de o reproduzir todo, limito-me ao tópico referente à poesia pau-brasil:

1) Pau-brasil é madeira que já não existe; 2) interessou holandeses e portugueses, franceses e chineses, menos os brasileiros que dela só tiveram notícia pelos historiadores; 3) inspirou a colonização, quer dizer: a assimilação da terra e da boa gente empenachada pelo estrangeiro; em síntese: pau nefasto, primitivo, colonial, arcaísmo da flora, expressão do País subserviente, capitania, governo geral, sem consciência definida, balbuciante, etc. Ainda hoje, na acepção tomada por Oswald, pau importuno, xereta, metido a sebo. Aparece prestigiado por franceses e italianos. Mastro absurdo na nossa Festa do Divino, carregado por Oswald, Mário, Cendrars. Mas Cendrars é francês... Isto cheira a Companhia Holandesa de Comércio e Navegação...

Uma arte que tivesse pátria

Fundado o Grupo da Anta, com Raul Bopp, Plínio Salgado, Cândido Motta Filho, Manuel Mendes, Alfredo Elis e notadamente Alarico Silveira – grande brasileiro, cuja obra não é ainda conhecida como merece –, começamos, então, a estudar a contribuição índia em nossa formação política, histórica, social, literária. Começamos a fazer aquilo que Gilberto Freyre reconhece, hoje, como uma afirmativa que pode ser feita: “Que a raiz ameríndia mais profunda de vida, de cultura, de caráter, dá aos povos da América mais enriquecidos pela assimilação de valores indígenas maior autenticidade à sua condição de americanos.” Entretidos com o Poranduba Amazonense de Barbosa Rodrigues, com o O Selvagem de Couto de Magalhães e com as obras etnográficas e antropológicas de Roquette-Pinto, Batista Caetano, Teodoro Sampaio, Plínio Airosa (para citar apenas alguns, entre os muitos autores que nos eram familiares) parece que estávamos ouvindo a voz do Oeste, como dizia Alarico Silveira quando procurava demonstrar que o Brasil teria que ouvir sempre essa voz, não raro esquecida pelo litoral ilustre e cosmopolita.

O outro objetivo do Movimento Verdamarelo e da Anta era o de se dar à arte a função social e política que ela precisava ter.

Queríamos, todos, uma arte que tivesse pátria: ou melhor, uma arte que, para adquirir o seu maior sentido humano e universal, realizasse aquele pensamento de Gide, que Maritain (um católico) reproduz em sua Arte e Escolástica: “Toda obra de arte será tanto mais universal quanto mais refletir o sinal da Pátria.”

Queríamos, ainda, uma arte que espelhasse os anseios da época. Uma arte que aspirasse a alguma coisa acima de si mesma. E não a arte pela arte; não a literatura pela literatura.

Bilingüismo literário

Queríamos uma língua menos açaimada a lusitanismos sintáticos.

Se a própria Academia, num dos artigos do regimento com que foi fundada, instituía o estudo das “diferenciações, já existentes, no falar e escrever dos dois povos”, nada mais natural que a exigência dos modernistas.

A homenagem que prestastes a Castilho foi justa e, por certo, uma imposição de vossa própria brasilidade.

Desejastes, como todos nós, que os vossos livros fossem lidos e entendidos em Portugal. E a prova de que o foram está em Júlio Dantas que, endurecido no ofício de escrever – como ele mesmo confessa –, sentiu os olhos cheios de lágrimas ao ler o vosso Juca Mulato. Todavia, não tendes hoje culpa de que outros escritores lusos já não entendam mais a língua em que escreveis. É o caso, por exemplo, do Sr. Agostinho de Campos, para quem só escreveis em português de vez em quando.

Salomé – disse esse insuspeito professor da Universidade de Coimbra – está escrita numa língua que só é portuguesa de vez em quando. Muitas vezes, até (reproduzo as suas palavras) temos que tirar significados e nem sempre, ou quase nunca, os dicionários respondem às dúvidas, que a leitura do contexto não desfaz.

Para Agostinho de Campos ora escreveis em português, ora em brasileiro...

E, francamente: que mal poderia haver nesse bilingüismo literário? Nenhum, a meu ver. Camões não escreveu em português e espanhol ao mesmo tempo?

Ora em brasileiro, ora em português; mas a verdade é que nunca esqueceis Portugal em vossos poemas:

Saudade cheia de graça,
alegria em dor difusa;
doença de minha raça,
pranto que a guitarra lusa
em seu exílio verteu.
Ai, quem sentir-te não háde
se foi dentro da saudade
que minha Pátria nasceu...

As conquistas do modernismo

Quais terão sido as principais conquistas do Modernismo?

Os modernistas – conta-nos Manuel Bandeira – procuraram exprimir-se numa linguagem despojada da eloqüência parnasiana e do vago simbolista, menos adstrita ao vocabulário e à sintaxe clássica portuguesa, menos presa aos ditames da lógica. Movimento, a princípio destrutivo e bem caracterizado pelas novidades da forma, assumiu mais tarde cor acentuadamente nacional, buscando interpretar artisticamente o presente e o passado brasileiro.

Tínhamos, diz Múcio Leão, o verso chamado livre; mas era

um verso que permanecia condicionado aos ritmos tradicionais da poética de Castilho. Os poetas modernos avançaram à conquista do verso definitivamente livre dando-nos um novo conceito do que seja poesia, um conceito mais alto e resplendente em sua pureza e em sua nudez do que fora o conceito meramente formal das escolas anteriores.

Mas é ainda Mário de Andrade, vosso companheiro de vaia e má fama futurista, quem já aponta três conquistas fundamentais: o direito permanente à pesquisa estética: a atualização da inteligência artística brasileira e a estabilização de uma consciência criadora nacional.

Têm razão esses escritores e a razão deles é, também, a vossa razão.

Menotti, o romancista

Como romancista, realizastes uma obra original, renovadora.

Os vossos personagens são encontradiços na vida social da grande cidade; padecem dos vícios e virtudes da civilização mecânica, dos desajustamentos da personalidade ao meio; ou são tipos da vida rural, que tão a fundo conheceis; ou sofrem de muita ternura lírica; em qualquer hipótese, são humanos, cheios de verdade local para que possam ser universais.

Laís, por exemplo. É um vivo e humorado estudo da vida política do interior. Nesse clima de violência e de ridículo, desdobrais um drama sexual típico das pequenas cidades analisando, com implacável realismo e aguda psicologia, os estados de alma dos protagonistas do romance.

E o mais interessante é que, como técnica, antecipais, em Laís, o processo de contrapontear as cenas, a Aldous Huxley. Já em Dente de Ouro realizais um drama de estilo rural em que aparece o cangaceiro paulista, o “valentão” do tipo do famoso Dioguinho, fixado pela tradição oral. De outro gênero é A Tormenta, uma de vossas obras capitais, na qual fixastes as causas da turbulência nacional que explodiu na Revolução de 24, e de maneira dramática. As figuras, que se agitam nessas atormentadas páginas, saltam à vista. São, todas, de tal modo identificáveis que não podeis dizer, cautelosamente, que as semelhanças constituem puras coincidências com as quais não se deve impressionar o leitor... Políticos, militares, intelectuais ali estão surpreendidos em suas reações diante dos episódios que ensangüentaram o planalto de Piratininga. As alegorias não desfiguram o texto. A descrição, as narrativas empolgam, a todo momento. Aquele personagem, que aconselha “deixemos de realismos e ideologias”, está traçado com uma exatidão que espanta. Mas o caso é que as ideologias continuaram e o vosso romance – como previra João Ribeiro – só equivocado quanto ao prazo – foi o prólogo do drama maior e principal.

Sem preocupação de ordem cronológica, não é possível esquecer o vosso O homem e a Morte – que denominastes “tragédia cerebral”. Este, tão representativo de uma outra modalidade do vosso espírito, é o estudo, através de “símbolos bárbaros e galopantes”, do drama dos artistas incompreendidos pelo meio ainda pouco receptivo e bastante inculto de um Brasil de 1920. Drama individualista, realizado com propósitos estritamente literários, é um romance admirável, estilizado, estuante de poesia. As facetas do romancista são, porém, numerosas – tão numerosas como as do poeta. E a experiência não parou nesses volumes, mais do que suficientes para atestar as vossas qualidades de ficcionista e garantir-vos um lugar de vanguarda, na moderna história do romance brasileiro.

Cummunká é outro exemplo de vossa inquietação e do quanto possuís de numeroso em vossa unidade.

Dos símbolos, da vida rural e lírica, passais aí a uma vasta sátira contra a hipercivilização e contra o espírito totalitário. Pela regressão ao estado da natureza – sem Rousseau – quereis, então, curar a humanidade doente de intelectualismo. Para isso, inventastes uns índios sábios e filósofos cuja missão é reumanizar os brancos que, com a sua petulância técnica, emigraram para uma super-cultura, criando o super-Estado.

O estranho caso de Salomé

Saltastes depois – quase acrobaticamente – de Laís para Salomé – isto é, do quadro em que se movimenta a vida do interior, politiqueira, novidadeira, maliciosa, mas ainda entremeada de inocência, para a vida da cidade grande, complexa, absorvente, intelectualizada, implacavelmente modernizada, deste século de magia mecânica. Salomé é considerado o vosso mais forte trabalho de ficção e a julgar pelas edições, e pela imediata tradução que alcançou, na coleção espanhola dirigida por Ortega y Gasset, a realidade corresponde ao juízo da crítica mais exigente. Nem precisaríamos de outro pormenor, para essa prova, senão o grande prêmio de romance com que esta Academia consagrou a vossa maior criação novelística. A primeira preocupação de Salomé – e que constituía um problema dos mais sérios – foi a demonstração, segundo o pensamento de um dos vossos personagens, de que as várias posições dramáticas se repetem (o drama que se desdobrou no palácio de Herodes, por exemplo) mercê desse largo sopro de fatalidade e predestinação que percorre toda a História, dando-lhe dinamismo, desníveis, mas tornando-a um movimentado friso feito de carne e sangue, de espírito e mistério. As figuras de tal friso, guardado pela memória da tradição, reeditam-se, renovando seus grupos, recompondo suas posturas para que o mesmo conserve um ritmo. A idéia era justa, mas a empreitada era audaciosa, uma vez que – como já tive ensejo de dizer, aqui mesmo – vos propusestes demonstrar como hoje, no século que Freud tentou liberar de todos os recalcamentos, o amor incestuoso de Herodes, a alma sanguinária de uma Herodias, a inconseqüência perversa de uma Salomé poderiam reeditar, numa fazenda paulista, a tragédia bíblica. E tudo realizastes com mestria, Sr. Menotti del Picchia; na exata medida dos vossos propósitos. É o que hoje reconhece a crítica moderna, por uma das suas maiores figuras, o nunca assaz citado Sr. Mário de Andrade:

O valor notável do autor de Salomé foi exatamente conseguir um perfeito equilíbrio entre a sua concepção sintética dos personagens e a escolha destes como formas psicológicas representativas da sociedade que quis descrever. Embora os personagens sejam aprofundados apenas em suas linhas mestras e ilustrados, nessas linhas, durante o encadeamento das pequenas cenas de que o livro se compõe, não são personagens toscamente descritos, incompletos em suas personalidades. O artista soube escolher o traço característico, a situação bem definida, a palavra rigorosa, o tom agudo e direto. Os seus tipos são verdadeiramente heróicos, personagens que vivem exclusivamente do seu drama particular, e vivem como vítimas fáceis da sociedade que os conspurca ou que eles conspurcam. Não há dúvida que sintéticos mas vivos, contundentes, tomando lugar no espaço, impressionantemente reconhecíveis.

Falando da personagem central do romance observa o ilustre crítico:

Salomé, que era a grande dificuldade técnica do livro, por causa da excepcionalidade estranhíssima do seu caráter psicológico, é uma verdadeira vitória do escritor. Dando-a descritivamente, pelos seus atos nítidos, enfim, usando dos seus processos mais idôneos de criação psicológica, Menotti realizou uma figura de carne e sangue, convincente – a sua mais audaciosa e bela invenção romanesca.

Menotti, o poeta

Se não tivésseis escrito Salomé ou O Homem e a Morte diria eu que estaríeis ainda recompensado, já em outro setor da ficção – no de contista e novelista –, por A Outra Perna do Saci – conto regionalista, em que focalizais a criação de abusões familiares pela imaginação dos caboclos – e por Toda Nua, em que figuram três contos vivos, agudos, estudando fatos sociais – ou realizando o exame doloroso do coração humano, como em o Disco e em O  Árbitro.

E se poeta sois, em todos os vossos livros – mesmo nos de prosa – que se dirá dos propriamente de poesia?

Quando vos deixais mais a fundo ser o que sois – poeta – então atingis o íntimo de vossa personalidade numerosa, o ponto central de vossa unidade artística, o que tendes, enfim, de mais permanente em vossa múltipla operosidade de escritor.

Mesmo na poesia, porém, não adotais – a bem dizer – um pouso certo.

Ides do lirismo desprevenido daqueles Poemas do Vício e da Virtude – vosso livro de estréia – ao lirismo galanteador, mundano, de As Máscaras; do lavor rítmico de Moisés até à polirritmia desconcertante da República dos Estados Unidos do Brasil.

A poesia a que aspirais é, como a mulher procurada de um dos vossos poemas, uma soma original de contradições:

A eleita que sonhei enxergo-a, mas que queres?
vive disseminada em todas as mulheres.
Sinto, vendo-a num seio, ou na curva de uns braços
que a mulher que eu adoro é feita de pedaços...

Existe em toda parte, e cada mulher bela
esconde no seu corpo alguma coisa dela.

Tomando de uma a cor, de outra um traço indeciso,
desta o corte do lábio e daquela um sorriso,
eu, fragmento a fragmento, a amada recomponho.
Pois, em cada mulher, há um pouco do meu sonho!

As formas poéticas que experimentais, representam, portanto, pesquisas feitas à antiga e à moderna.

Desde o verso branco ao rimado; desde a rima fácil à difícil; desde o verso medido ao polimétrico; desde o polimétrico ao livre – livre como os modernos o entendem; desde o lírico ao parnasiano, ao simbolista, ao surrealista – isso já quanto às tendências; e desde o soneto, a quadra, a trova, aos poemas complexos e orquestrais – isto quanto aos gêneros de composição que praticastes, em vosso constante exercício de sinceridade; ou que apenas freqüentastes neste ou naquele livro de poesia.

Em meio desse quase terremoto lírico, sois de uma permanência gritante: porque sois poeta.

Que é a poesia, senão o “pequeno momento de plenitude” de que fala Daniel Rops?

A poesia do poeta e a do leitor

E sois poeta, Sr. Menotti Del Picchia – dentro de alguns dos maiores sentidos dessa palavra.

E o ponto de referência mais curioso que despertais, para o julgamento de vossa inquietude, é o da poesia em suas relações com o leitor.

Se há, por aí, alguns príncipes discutíveis, o vosso principado – o de poeta mais lido do Brasil – é o único real.

De fato, do ponto de vista da repercussão que alcançais em outras almas e em outros espíritos, nenhum dos nossos poetas modernos vos levará a palma. Quando penso na popularidade que desfrutais, chego a crer em certa observação segundo a qual o Brasil “é um país onde todos os homens são poetas e todas as mulheres são liras”. Seríeis, então, um “centro de ressonância”, traduzindo a fundo a poesia do homem coletivo. Não quero dizer que seja esse o vosso principal mérito; mas, também, não deixo de pensar em Léger, quando nos lembra que o povo é poeta e que as nossas ações, na maioria das vezes, só se explicam numa atmosfera de povo densamente carregado de poesia.

Outros não levarão em conta esse pormenor. Preferirão até o mérito de só serem compreendidos por uns poucos leitores ou mesmo por um único e espiritual alguém. O poeta que consegue do leitor, de um único leitor, seja mais poeta do que ele está longe de constituir um absurdo. Há momentos e nós todos sabemos disso – em que a poesia depende do poeta, e outros – não menos interessantes – em que ela fica por conta do leitor. E há os desencontros inevitáveis: o leitor lendo o poeta em idade ou em hora em que melhor fora não o lesse.

Onímodo, não desdenhais nenhum desses encontros e desencontros pois o vosso sortilégio vos permite estar presente em toda parte, a qualquer hora de nossa sensibilidade. Gozais, por assim dizer, de trânsito livre no itinerário emotivo que conduz ao território da alma. De vossa própria inconstância resulta, a meu ver, o milagre de tal onipresença, numa paisagem psicológica tão rica de sugestões e de contradições.

Possuis o necessário de argúcia e de inocência para saber que o fenômeno poético é plural e não unilateral.

Sabeis que onde há Poesia, há Deus, porque há criação; e onde há técnica há malícia, sagacidade, intenção oculta, que são “bens” demoníacos. Todo poeta é sócio de Deus, mas... não pode dispensar a colaboração do Demônio: Il n’y a pas d’oeuvre d’art sans collaboration du démon, disse Gide.

Deus estará no mistério de sua criação; o Demônio em sua técnica de expressão. Só quem não tiver lido aquela conferência de Duhamel, sobre “A palavra e seus demônios”, desconhecerá tão pura verdade. A chama lírica é divina; mas é demoníaco o meio de comunicá-la ao leitor.

Já um Maritain – católico, é bom frisar – cita o conceito de Dégas, para quem toda obra de arte requer tanto de rouerie como a perpetração de um delito... Por isso foi que, certa vez, ousei definir o soneto, não como o definiu o nosso admirável Manuel Bandeira, “um coração com os seus dois ventrículos e as suas duas aurículas”, mas apenas como catorze turras do Demônio com Deus. Para evitar dúvidas, adotastes um sistema eclético: acendeis uma vela a Deus e outra ao Demônio...

Em qualquer hipótese, dizeis bem que se somos, de fato, degenerada progênie do anjo decaído, Poesia é um instantâneo vislumbre da linguagem celeste e ancestral de que nossa espessa carnalidade perdeu a chave misteriosa e divina.

Nessa transfusão lírica, porém, o poeta não faz mais do que devolver às palavras as imagens e os mitos com que o povo as animou no instante da criação.

O povo deu ao poeta esse mandato, que é o restituir à sua linguagem o segredo que lhe foi usurpado pelo raciocínio.

O povo também é poeta

A própria rima não é apenas um capricho pessoal do poeta; é uma imposição da língua em que ele escreve. E como o povo é que faz a língua, o rimar ou o não rimar corresponde, até certo ponto, a uma exigência psico-social do povo.

Nem creio que o mundo mecânico venha perturbar tais relações da palavra com a imagem ou do povo com os seus rapsodos. Ícaro saiu de um poema.

E se o símbolo da Poesia é a asa, e se cada vez – por exemplo – que um avião levanta vôo somos, para contemplá-lo, obrigados a olhar para o céu, o avião é a mais perfeita imagem da Poesia no mundo mecânico.

Não é, pois, o mecânico que matou o mágico. O que há, o que me parece incontestável, é a ausência de poesia no coração de alguns homens esquecidos de que o povo é poeta; de que o povo exige poesia como exige pão – porque nem só de pão vive o homem.

E assim como cada um de nós escreve o seu soneto, a sua estrofe, assim o povo escreve o seu poema, ora cheio de claridade, ora cheio de noturnidade...

O que chamamos História nada mais é do que um poema coletivo.

Mas eu quero chegar ao ponto para onde vinha: é o de que escreveis os vossos poemas com sangue lírico brasileiro e sois, portanto, nesse casamento da Poesia com o povo, o poeta de nossa democracia sentimental.

O dom demoníaco, o estado de candura necessária à compreensão total do mundo, a capacidade de transmitir a outros seres humanos o vosso frêmito de emoção e de ternura – que mais contagiosos títulos nos podereis apresentar em vosso primado de poesia? Só não sois – diga-se francamente – um poeta capaz de satisfazer os rafinés, os blasés; sois uma festa, no mundo da imaginação e da sensibilidade. Não lançais mão de recursos tão extralógicos que não sejais compreendido; não fingis de louco, para parecerdes simbólico; não fazeis da Poesia uma linguagem para telegramas cifrados, porque os processos de comunicação com as almas dispensam, para vós, esse apelos da gratuidade ao inconsciente, ao subterrâneo, à treva. Sois, antes, uma torrente de inspiração, envolvente, mágica. Não dependeis tanto do leitor ao ponto de pretenderdes que o leitor decifre o vosso enigma. Não vos divertis à custa do leitor – ao mesmo tempo que não transigis com ele quando é preciso chamá-lo a um ato de contrição lírica.

O erro está em supor que só nós é que somos poetas – porque escrevemos um livro ou vestimos um fardão acadêmico – quando o povo também o é.

Os inimigos da poesia

Mas essa democracia sentimental tem os seus inimigos...

Não. O maior amigo da Poesia pode ter, dentro de si, os piores inimigos dela. Quais são os inimigos da Poesia?

Rilke já pedia ao jovem poeta destinatário de suas famosas cartas que lesse o menos possível as obras de crítica e estética: um dia, é uma opinião que faz a lei; outro dia, é a opinião contrária. Há um ponto, entretanto, que se me afigura o mais grave, em tal desencontro: é a falta de isenção, a falta de liberdade interior de quem, por inimizade pessoal ou política, se arvora em crítico de poesia. Não há pior restrição ao entendimento poético do que isso. Só o amor, la connaissance à Rilke, é que torna claro e justo esse entendimento.

Sem simpatia não há poesia, como sem paladar não há gosto, como sem olfato não há perfume. A delicadeza, a receptividade, a ternura humana são as pedras de toque de qualquer juízo aproximado da “verdade” poética.

Não era sem razão que o poeta antigo já se preocupava com semelhante transfusão lírica:

Só posso dar o que me podes dar.
De nada adianta a água ser pura
se a tua sede de poesia é impura.

E se a poesia é como o trevo
de quatro pétalas
que se esconde a quem mais a procura,
deves a mim o encanto que te devo.
Se fores, pois, meu inimigo,
sê digno de ti mesmo:
não leias o que escrevo.

A Poesia, como diz Tristão, é a “maior afirmação da liberdade humana sobre a terra”. Não há – acrescento – nada que mais se contraponha ao animal lírico do que o animal totalitário.

Há, porém, uma forma de violência que não vem do poder público. Há um fascismo gramatical, como há um fascismo crítico. Tanto é fascista quem prescreve ao poeta uma língua que já não é dele como quem invade o recesso mais puro de sua sensibilidade para obrigá-lo a assinar um “termo de bem sentir”.

Se é o poeta que recria a linguagem não poderá ele submeter-se à linguagem já feita e que lhe seja imposta sob a forma de “terror literário” ou simplesmente sob o terror do pronome mal colocado.

Por isso, nada mais justo que a inclusão, entre os inimigos da poesia, da crítica ortodoxa, catedrática, gramatical ou policial, que não dosa a sua auto-suficiência com um mínimo daquela docta ignorantia de que nos fala, quase silenciosamente, a humildade de Nicolau de Cusa. E que vai cortar os espinhos e arranca as flores; e que reflete “uma das tendências mais sectárias e mais apaixonadas da cultura dos nossos dias”, segundo observa um crítico moderno e agudo como é o Sr. Álvaro Lins; pois faz papel de hiena e impõe, retroativamente, a um Dostoievski o título de comunista ou a um Dante o rótulo de fascista.

Outro inimigo da poesia é o hermetismo levado ao extremo de corromper o mistério. Outro será o “meio de expressão” imposto como finalidade artística. Tanto é limitativo o verso obrigatoriamente medido como o obrigatoriamente livre. E se levarmos mais longe o raciocínio, veremos que, mesmo na velha técnica, já o soneto era um dos piores inimigos da poesia.

Chegastes a dedicar um soneto ao soneto para evitar, naturalmente, quaisquer dúvidas a tal respeito...

Soneto! mal de ti falem perversos
que eu te amo e te ergo no ar como uma taça.
Canta, dentro de ti, a ave da graça
na gaiola dos teus catorze versos.
Quantos sonhos de amor jazem imersos
em ti, que és dor, temor, glória e desgraça?
Foste a expressão sentimental da raça
de um povo que viveu fazendo versos.

Teu lirismo é a nostálgica tristeza
dessa saudade atávica e fagueira
que no fundo da raça nos verteu

a primeira guitarra portuguesa
gemendo numa praia brasileira
naquela noite em que o Brasil nasceu...

“Non impedias musicam”

Houve alguns que condenaram o vosso colorido, a vossa veemência, o brilho excepcional e perigoso do vosso estilo. Pas de couleur, dizia Verlaine; mas a cor é a vida. A guerra de 14 foi chamada de quatro anos sem cor. Por outro lado, o combate ao pitoresco seria tão antibrasileiro agora quanto o foi ao tempo em que – como lembra Gilberto Freyre – se deu a europeização mais intensa do Brasil. “Tudo se foi acinzentando.” Era a invasão dos nossos hábitos, das nossas casas, de nossas roupas e das nossas igrejas, pelo azul cinzento da civilização carbonífera. Ora, a essa cor civilizada, urbana e burguesa tendes o direito de preferir as cores do vosso mundo mágico, do vosso mundo brasileiro.

No entanto, os que vos censuraram por esse defeito – o da cor, o da diurnidade, o da ausência de sutileza – só o fizeram, talvez, por não conhecerem os vossos momentos de noturnidade, de vida interior e de silêncio.

Do ventre fecundo do nada geramo-nos ambos
Ciladas nas sombras, insídias na noite, gargantas de báratros.
Eu era criança e temia... Temia os abismos, o mar crespo e fulvo
acenos de vagos fantasmas...
Pensava que tu me tendias os braços chamando
nas curvas dos ermos caminhos
na espuma irisada das ondas...
Pensava que andavas lá fora, longínqua e esgueirante,
em vez te levava comigo na carne e no sangue...
Tentei alforriar-me ao teu jugo; busquei escapar ao teu íncubo;
no peito arquejante da amada aterrou-me um ruído de passos.
Ouvi que rondavas insone.
Busquei esquecer-te, bebendo
o verde veneno do vício,
e o pálido sono irrequieto lembrou-me teu sono.
Por mais que te fuja me encontras
por mais que te odeie tu me amas!
Eu sou tua presa, Senhora do Manto de Treva.

Sabeis, com Claudel, repetindo o Eclesiastes, que non impedias musicam; há uma música que melhor se escuta quando em silêncio e secretamente. Sabeis, com Wordsworth, que a luz dos sentidos se obnubila toda vez que um relâmpago nos mostra o mundo invisível; e sabeis, com Rimbaud, passear nos jardins ocultos e sentir-lhes o perfume inefável.

Para quem é poeta, nada disso poderá ser difícil. Com a mesma facilidade com que se diz: fecha os olhos e terás a noite, pode-se dizer ao poeta: sê poeta e terás a poesia...

É o que se vê, pela vossa “Predestinação”:

Por que teus olhos são verdes?
Por que teu corpo é tão melodioso?
Por que tuas mãos são tão longas?
Como é que soubeste
que eu amava os olhos verdes
o corpo melodioso
e as mãos longas?

Falastes no “mundo fabuloso que existe dentro de nós mesmos”; e tendes razão porque a Poesia é alguma coisa de superior à prosa e ao próprio verso. A linguagem poética, a sintaxe lírica – como diria Euríalo Canabrava – não depende senão de si mesma. Cada palavra, que vulgarmente – e como material de expressão – é “uma hecatombe de sensações particulares”, adquire um outro sentido; ou melhor, torna-se intensamente carregada de significação. Molhada em seiva lírica, ou mítica, a linguagem do poeta pode ser constituída, até, de vocábulos comuns – pouco importa – mas não se confunde mais com qualquer outra linguagem utilitária ou prosaica. Ocorre uma espécie de semântica divina, dentro da qual, de um átimo, as palavras mudam de alma e até de significado. Aquilo que se chama licença poética define apenas a concessão do bom senso ao mundo da Poesia. Porque a Poesia não precisa de licença. Quem é poeta de verdade, tem o direito de o ser; e porque o é pode fazer principalmente as coisas que o bom senso classificaria como erradíssimas em sua gramática moral.

Nas relações estéticas entre o leitor e o poeta não é, portanto, a apreciação dos valores formais o que mais interessa. Não é o bem-feito, nem o mais que perfeito; é algo que não se sabe como foi feito. Alguma coisa de superior à própria análise. Não é a análise lógica, que não pode explicar o ilógico; é a análise espectral da sensibilidade e da comunicação poética. Não é a sintaxe gramatical; é a sintaxe lírica, de que fala o lúcido autor de Seis Temas do Espírito Moderno.

A naturalização de D. Quixote

Outro ponto, que se me afigura curiosíssimo, em vossa obra, é a espantosa facilidade com que abrasileirais o universal e universalizais o brasileiro.

Em Salomé, com o transporte do drama bíblico a uma fazenda paulista, está um exemplo bastante sugestivo, em tal sentido. Na poesia, fazeis o mesmo. As verdades universais de As Máscaras, de A Angústia de D. João, do Fausto e de D. Quixote com a sua Dulcinéia são, nesses poemas, estilizadas ao sabor brasileiro. Não fostes apenas feliz por haver, “com idéias velhas, feito frases novas”. Se As Máscaras foram escritas para serem lidas “em qualquer terra, onde os homens amem, ou em qualquer tempo onde os homens sonhem” não é menos certo que, para vós, há uma forma de amar e sonhar mais brasileira que as outras.

Olha: penso, Pierrot, que não existe, em suma,
entre a viola e a mulher diferença nenhuma.
Questão de dedilhar com certa audácia e calma,
numa, estas cordas de aço, e na outra... as cordas da alma.

O D. Quixote e o Sancho Pança que descobristes “vivem, também, seu instante nacional no solo brasileiro”.

E com uma séria diferença: fizestes um D. Quixote sonhando com caçarolas; e um Sancho que aconselha o Cavaleiro Andante a “comer pólen no prato das corolas”. Passastes certidão de brasileiros naturalizados a ambos, principalmente quando na estalagem de Tolosa.

D. Quixote, com a cabeça entre os braços, reclinado sobre a mesa, chega a sonhar. “Beijo-te as mãos, minha Dulcinéia.” Nisto entra Dulcinéa – mas que Dulcinéia –, é a gorda e sardenta filha do taverneiro, munida de uma respeitável vassoura: “Borrachos!”

A agonia de Sancho é, para vós, a agonia do animal lírico.

– Que tens? Falas como uma criança...
– Quem delira é esta pança
mas já vai descansar... Suas carnes dolorosas
vão desfazer-se em poeira e transformar-se em rosas...

D. Quixote compreende, então, a passividade do seu drama.
– Tornaste-me ridículo.
– Não – responde o moribundo. – Dei-te a imortalidade.

Teria sido absurda a vossa aventura naturalizando brasileiro o Cavaleiro Andante? Em absoluto. D. Quixote já era brasileiro, desde que Anhangüera ameaçou os índios de botar fogo na água dos rios.

“Juca Mulato”, o poema da terra

E o vosso “Juca Mulato”? Quem era esse Juca Mulato que vos deu a celebridade?
Muito simples: um capataz de sítio, possuidor de uns alqueires de chão, de um cavalo pigarço e crescido – como se diz – no cabo da enxada. Se havíeis naturalizado D. Quixote brasileiro, fizestes de “Juca Mulato” coisa inteiramente contrária: imprimistes ao filho da terra cabocla um admirável cunho de dor humana, viril, universal, misteriosa. A história de Juca Mulato (como resumi-la depois que o fez Júlio Dantas, magistralmente?) é a de um camarada que vivia integrado na natureza. “Forte como a peroba e livre como o vento.”

Como se sente bem, recostado no chão!
Ele é como uma pedra, é como a correnteza,
uma coisa qualquer dentro da natureza,
amalgamada ao mesmo anseio, ao mesmo amplexo,
a esse desejo de viver, grande, complexo
que tudo abarca em sua força de coesão.

Lá um dia, porém, numa hora de cisma, Juca Mulato descobre, em si mesmo, um alvoroço qualquer. Como se uma vespa lhe houvesse picado a sensibilidade.

Uma coisa mínima – porém tenaz – começa a incutir-lhe no espírito uma nova concepção das coisas que o cercam.

Tudo se altera, então, para ele. O mundo quer contar-lhe um enorme segredo; as estrelas põem-se mais ao alcance de sua mão e uma vaga deformação amorosa lhe envolve os sentidos; como se os olhos vissem mais do que de costume; os ouvidos ouvissem palavras que ainda não tinham ouvido; as mãos sentissem a volúpia de contatos ainda não experimentados; o cheiro da terra o tentasse mais pela violência indefinida.

E se ele cantasse? Poderia contar o seu segredo?

Há certos segredos que, por mais contados que sejam, ficam sempre dentro de nós. O dele era assim; simples, mas inexplicável. A patroa o olhara com certa insistência, e pronto.

Não amar é sofrer: amar é sofrer mais.

Em todo caso, Juca Mulato precisa contar a todos e a tudo o seu drama. Pega da viola, mas a viola tem uma toada diferente. Lembra “um peito esfaqueado” que gritasse de dor.

Vai ouvir um canto de pássaro, e vem-lhe um desejo absurdo de ser pássaro. E se procura uma fonte, um riacho que soluça por um vão de pedra, que acontece? Se a corrente soluça, ele também soluça. Tem uma santa em casa; pois o olhar da patroa é igualzinho ao da santa. Quando reza, nem sabe mais se dirige a sua oração à santa, ou a ela.

Envergonha-se, às vezes, diante de sua própria fraqueza e reconhece que está ficando gira; e então resolve ser insolente:

fingir que não padece e mostrar que não sente,
montar o seu pigarço, atacar a restinga
às foiçadas, beber um cálice de pinga.

Enfim, renunciar a tudo e resistir; ser forte. Mas, qual! O olhar da patroa o persegue; e se tudo ama – passa ele a perquirir –, se as estrelas, os insetos, os batráquios amam, por que só ele não haveria de amar?

Volta, então, a contar o seu segredo ao Pigarço:

Pigarço: a dor me aquebranta...
Quando lembro o olhar que adoro
e que nunca esquecerei,
ai! sinto um nó na garganta,
e choro, pigarço, choro,
eu que até chorar não sei...

Quando, a trote, ela nos via,
debruçada na janela,
nós levávamos, após,
com o pó que do chão se erguia,
o nosso olhar cheio dela,
e o dela cheio de nós...
Então, pouco me importava
que seu olhar nos seguisse...
Galopava-se a valer...
Quando esse olhar eu olhava
era como se não o visse,
tanto o olhava sem o ver!

Hoje pago essa ousadia...
Ela os olhos de mim tolhe.
Queixar-me disso, por quê?
Antes era eu que a não via,
agora, por mais que me olhe,
é ela quem não me vê...

Sou um caboclo do mato
que ronda a luz de uma estrela...
Já viste uma coisa assim?
E o pobre Juca Mulato
morrerá por causa dela
e tu, por causa de mim...

O sofrimento de Juca Mulato chega, então, ao paroxismo.

Está ele, agora, pálido como a cera, em vez de tostado de sol; magro como um vime, em vez de forte como a peroba; submisso como um escravo, em vez de livre como o vento. Ocorre-lhe, então, o último expediente a que um pobre filho da terra poderia recorrer, para contar a alguém o segredo terrível e livrar-se dele: ir, numa sexta-feira, à casa do Roque, negro feiticeiro, que tinha parte com o demônio e que, por artes de Malazarte, talvez lhe curasse a moléstia amorosa de que estava sofrendo, tanto. Lá estava o Roque, magro e sinistro, escuro como a noite, com uma faísca de estrela má nos olhos. Ah! esse Roque era capaz de coisas espantosas. Com as suas figas, ramos de arruda, couro de sapo, cabelo de defunto e infusões de pinga, fazia criar “rabicho” à mulher sem amor, encontrar cavalo roubado, curar mordida de cobra, caiçara virar valentão, fechar corpo, destrançar coisa feita. Só uma coisa ele não podia, como não pôde fazer: curar Juca Mulato.

Só para o mal de amor, nunca encontrei remédio...

– Que me resta fazer?
– Juca Mulato: esquece!

O epipã mestiço da floresta – como lhe chamou Júlio Dantas, em sua notável síntese – só encontra uma solução: abandonar a fazenda, partir sem destino, correr mundo, à procura de uma outra terra; mas aí – e este é o grande símbolo do vosso poema – aí é que ele ouve, como nunca ouvira, a voz das coisas. Filho desnaturado, como nos quereis deixar? E uma árvore o escarnece; “pois não sabes, perverso, que o teu berço foi feito de um galho meu?” E a água do rio lhe grita: “Juca, fui eu quem deu a água do teu batismo.” E uma estrela: “Fui eu que iluminei a tua choça escura no dia em que nasceste.” E toda a floresta: “Fomos nós que te demos o arco do teu bodoque, a lenha para o teu fogo, as grades para a tua arapuca, o cabo para a tua enxada, o varejão para o teu barco.” Não vás, lhe diz o céu: “Em outro céu, as estrelas serão como pontas de espadas, relampejando sobre a tua cabeça.” “Juca Mulato és meu”, lhe exclamou, afinal, a terra amorosa:

Juca Mulato és meu! Não fujas que eu te sigo...
Onde estejam teus pés, eu estarei contigo.
Tudo é nada, ilusão! Por sobre toda a espera
há uma cova que se abre, há meu ventre que espera...
Nesse ventre há uma noite escura e ilimitada,
e nela o mesmo sono e nele o mesmo nada.
Por isso o que te vale ir, fugitivo e a esmo,
buscar a mesma dor que trazes em ti mesmo?
Tu queres esquecer? Não fujas o tormento...
Só por meio da dor se alcança o esquecimento.
Não vás. Aqui serão teus dias mais serenos,
que, na terra natal, a própria dor dói menos...
E fica, que é melhor morrer (ai, bem sei eu!)
no pedaço de chão em que a gente nasceu!

E Juca Mulato ouviu, como nunca ouvira, a voz contagiante das coisas. Estava, já, no alto da serra, para nunca mais voltar.

Desse alto, olhou a redondeza toda; viu, lá embaixo, os cafezais geométricos que se estendiam a perder de vista; viu, na planície, os bois felizes, pastando; viu, numa curva da estrada, a choupana onde havia nascido.

E voltou. E esqueceu.

Instantâneo e múltiplo para ser permanente

Como se vê, não esperais que o leitor vos ensine a ser poeta.

Sois poeta antes que o leitor o seja. Ou melhor, fazeis poesia antes que o leitor a faça em vosso lugar. Não guardais para vosso uso o que deve pertencer a todos. Sois, até aí, humano e razoável – razoável para com os que necessitam de poesia e razoável para com o elementar princípio de que a Arte, além de meio de expressão, é instrumento de comunicação.

Do leitor exigis apenas simpatia, ternura, compreensão e bom gosto.

Por certo que substituís, em vossa obra de ficção, o demorado pelo instantâneo e pelo genial; o acabado pelo impromptu; o longo estudo pela anotação rápida, quase borboleteante.

Não podeis pensar longo tempo porque isso faria mal ao que possuís de mais sério e profundo. De uma coisa passais a outra porque a vossa constância está na afirmação do poeta:

que só em ser variável é constante.

Caçais as realidades como se caçam pássaros; por verdadeiros golpes de mágica. Viveis, aliás, num constante mundo mágico, onde a vossa inteligência viva e inventiva se sente mais à vontade. Amais o imprevisto e a cor, a fábula; porque o imprevisto é o clima de vossa surpresa, porque a cor tem ligação direta com a vossa alma e porque não há mentira na fábula.

De modo que, quando digo que sois múltiplo e instantâneo, não vos nego a vocação para a unidade ou para a permanência; antes o que quero dizer é que sois múltiplo porque é esse o vosso recurso para a unidade; e sois instantâneo, porque é essa a vossa técnica amável para o permanente, para o profundo.

A técnica do contraponto rima bem com o pralapracá do vosso demônio interior.

Tendes uma psicologia terrivelmente contraponteada. Sois um brinquedo muito grave com as coisas do mundo; e há certos brinquedos que assustam, como realidades em ponto pequeno, na mão das crianças. Tendes muito de criança, também, e é isso o que explica a vossa melhor sabedoria. Talvez a melhor definição de tão curioso aspecto de vossa personalidade esteja mesmo neste poema movimentadíssimo:

Eu tenho a alma errante
e vago na terra a sonhar maravilhas.
Não paro um momento!
Eu busco irrequieto o meu sonho inconstante.
Eu sou como as coisas inquietas; o veio
que canta na leira; a fumaça que voa
na espira que sobe das achas; o anseio
dos longos coqueiros esguios;
e sou como as asas, as velas, as quilhas, as nuvens, o vento...
Eu tenho a alma errante.
Boêmio, meu sonho procura a carícia
fugace, procura
a glória mendaz e preclara.
Sou como uma vela fenícia
ao largo, uma vela distante.
Eu tenho a alma. Errante...
Eu sinto uma estranha delícia
em tudo o que passa e não dura,
em tudo o que foge não para...

Modos de pensar

Está certo; mas por que vos fotografais tão inquieto?

É esta explicação que está na unidade de vossa obra ou na filosofia que, tomando-a em conjunto, dela podemos extrair. Se vos demorásseis, seríeis superficial; se arremedásseis o “carão” da fábula – que chorava por não poder mudar de penas –, seríeis falso.

Pensador, dirão, só pode ser quem pára, para poder pensar; ou melhor, é quem não pára de pensar.

Peut-on s’arrêter de penser?, eis o problema do pensamento. A isto eu poderia responder: tendes um pensamento mais oral do que escrito. Quantas vezes, dizeis coisas geniais em vossas conversas, tentando em nós a idéia de um taquígrafo para fixá-las na sua incrível lucidez! Não podeis parar, embora eu conheça um vosso retrato, pintado por De Bono, em que apareceis pensando... pensando. Quase na mesma atitude do Penseur de Rodin. Não sendo pensador, numa forma parada de ser, tendes, entretanto, o vosso modo de pensar; e o vosso modo de pensar não é o que muitos pensam.

Parar de pensar... Parar para pensar. Pois, a verdade é que não aceitastes nenhuma destas fórmulas.

Pensais a vosso modo. Nem parais de pensar; nem parais para pensar.

Ao pensamento linear, esquemático, lúcido e cruel, preferis ser humano pela inteligência, pela intuição, pela imaginação contra a abstração, a comparação, a análise.

De uma forma ou de outra, tendes o vosso seguro modo de pensar sobre todos os problemas em razão dos quais se agita o mundo em que vivemos.

Menotti e as soluções nacionais

Dentro desse modo de pensar é que vindes combatendo, pelo livro, pela tribuna e pelo jornal, todas as formas de violência.

Assim, sempre entendestes que o mundo do fascismo e do comunismo era um mundo diferente do nosso e que seria um crime desnaturar, com o apelo ao exotismo, o Brasil em sua sagrada essência.

A democracia social, dentro do regime presidencialista e federativo – foi o que afirmastes, já em 1936, num dos vossos estudos políticos –, representa a fórmula garantidora das nossas liberdades, sem quebra dos princípios fundamentais da hierarquia e da disciplina. Para realizar esse ideal, que está no instinto do nosso povo, é mister que os brasileiros se unam acima dos partidos, no formidável bloco unânime e coeso da sua vontade de querer que o Brasil continue a ser Brasil.

Fora disso, dentro dos anunciados regimes de força, teremos a luta fratricida. Teremos a fragmentação nacional. Teremos a intervenção ardilosa e “pacificadora” das nações que “sentem fome de terra” e que estimulam, pela direita e pela esquerda, o ódio entre os brasileiros.

Sustentais, portanto, a originalidade de nossa civilização, desde a Semana de Arte Moderna. E que tendes razão clara e suficiente para assim pensar, não pode haver dúvida. Bastaria lembrar o que os próprios escritores estrangeiros dizem de nós.

Aí estão, entre outros, o mexicano José de Vasconcelos, em A Raça Cósmica; o francês Luc Durtain, no pequeno mas sugestivo estudo que fez da civilização brasileira em face da norte-americana; o alemão Kayserling, naquela famosa conferência de Lisboa; e mais um Francisco de Sierra y Mariscal que – isto no começo do século XIX – ficou pateta ao verificar o fenômeno brasileiro da democracia “que é uma ordem desconhecida da Europa”. As condições materiais do Brasil – cito outra observação, esta de Oliveira Martins – permitem realizar formas de instituição civil que nós (na Europa) chamaríamos de socialistas... O norte-americano Roy Nash, na sua A Conquista do Brasil, aponta a igualdade, em nosso País, resultante do amálgama das mais variadas famílias humanas, como sendo a antecipação do sonho de igualdade e fraternidade dos operários e filósofos da França revolucionária. Por isso mesmo, Henry Wallace afirma que a nossa “democracia genética” é a mais bela sugestão do Brasil ao mundo de amanhã.

Mas, p’ra que ir tão longe? Ainda há pouco, era Gilberto Freyre quem, em magnífico estudo, a propósito de Silvio Romero, frisava-lhe o esforço de procurar extrair de nossas raízes a originalidade de um destino que hoje vemos estar principalmente nisto: em nos anteciparmos a outros povos como expressão de uma democracia étnica e social de que tanto José Bonifácio como Silvio Romero tiveram a intuição. O “sentido brasileiro da democracia social (estou relendo as palavras de Gilberto) não nos foi comunicado nem por Leão XIII, nem por Maritain; nem pelo socialismo francês, inglês ou alemão, nem pelo russo. Vem de nossas próprias raízes”. Se essa democracia social e étnica definida por Gilberto Freyre, por Silvio Romero e principalmente por vós, em A Crise Brasileira: Soluções Nacionais, é a essência da civilização brasileira, como poderia alguém – honestamente – dizer que o Brasil não está destinado a criar um novo tipo de civilização?

Com a sua originalidade, é claro, não pretende o Brasil isolar-se do mundo; ao contrário, ele é a mais bela soma das aspirações universais.

Servindo à causa da Cultura em que se empenham todos os povos, na luta contra os inimigos da civilização ocidental, a sua originalidade não será senão uma forma da contribuição para um novo conceito do destino humano.

A voz da terra

Quando Deus quer perder as criaturas, tira-lhes o dom do lirismo; enlouquece-as primeiro. Se o mundo está em guerra, foi por falta de poesia no coração de alguns homens. Fazer com que a poesia volte ao coração dos homens – eis a missão da ordem futura.

Para que o Brasil, entretanto, se faça ouvir, nesta hora de suor, de sangue e de lágrimas, é indispensável que não nos deixemos seduzir por ideologias forasteiras, que nos negam pelo espírito ou pelo sangue.

É indispensável que ouçamos, de novo, a voz da Terra.

Por isso, Sr. Menotti del Picchia, nunca foi mais necessário que hoje o símbolo do vosso poema – o homem chamado pela terra, quando ia abandonar a terra.

“Pois na terra natal a própria dor dói menos!”