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Discurso de recepção

Discurso de recepção por Osório Duque-Estrada

RESPOSTA DO SR. OSÓRIO DUQUE-ESTRADA

SR. LUÍS CARLOS:

“Rien ne manque à sa gloire; il manquait à la nôtre.”

Foi com tal inscrição que a Academia Francesa, curvando-se, um dia, diante da glória de Molière, mandou colocar na sala das suas sessões o busto do grande poeta, penitenciando-se assim do erro, que cometera, de não haver querido recebê-lo no grêmio dos imortais.

Certo não sois Molière, nem a nossa modesta Companhia pretende ser a filha de Richelieu; mas é bem possível que à Academia Brasileira de Letras fosse dado repetir um dia a confissão contida naquele verso, se persistisse por mais tempo no propósito de não abrir as portas à glória do poeta ilustre que é o consagrado autor das Colunas e dos Astros e Abismos; com a agravante de que aqui nada impedia o ingresso do candidato há muito apontado pela opinião de todo o país, ao passo que para justificar o escrúpulo da nossa mãe espiritual militou a forte e poderosa razão de que o autor do Tartufo era comediante – condição social que privou igualmente Roscius (não obstante toda a eloqüência de Cícero) de poder aspirar à alta dignidade de senador da República Romana.

A nossa Academia, porém, retrocedeu do primitivo propósito, e em boa hora se decidiu a eleger-vos, porque a verdade é que, além de serdes um grande nome das nossas letras, éreis já, desde muito, um espírito fundamentalmente acadêmico, não pelos moldes ineptamente apontados por certa crítica de escada abaixo, mas em virtude de hábitos e processos literários por vós observados no convívio quase diurno com alguns dos nossos companheiros de jornada.

Quem quer que tenha lido a história da Academia Francesa, tomada para modelo da nossa, não ignora que, quatro ou cinco anos antes da sua instalação oficial, já ela existia de fato, em modesto embrião, que germinou, ramificou, floresceu e frutificou, pouco tempo depois.

Em 1629 (contam Pellison e D’Olivet), alguns particulares, residentes em diversos recantos de Paris, achando que nada lhes poderia ser mais desagradável do que irem freqüentemente em procura uns dos outros, sem se encontrarem, resolveram reunir-se uma vez por semana em casa de um deles. Eram apenas nove (que bela Academia!), todos literatos de polpa e homens de espírito muito acima do vulgar.
Efetuavam-se as sessões na residência de Conrart, que, de todos, era o melhor instalado. Nelas ventilavam-se questões de política, de negócios, de ciência e de literatura, manifestando-se os membros da Companhia acerca do merecimento das obras que qualquer deles pretendesse publicar. As reuniões eram seguidas de passeios ou de jantares.

Foi essa a primeira idade da Academia – “verdadeira idade de ouro durante a qual com toda a singeleza e toda a liberdade dos primeiros séculos, sem ruído, sem pompa e sem outras leis mais que as da amizade, saboreavam em conjunto tudo quanto a comunhão dos espíritos e a vida do raciocínio possuem de mais doce e mais encantador”.

Boisrobert, recebido um dia no pequeno cenáculo, afeiçoou-se a ele e recomendou-o às boas graças do cardeal de Richelieu. Pouco tempo depois, em 1634, surgiu oficialmente a Academia Francesa, nascida daquele pequeno rudimento, mais modesto, sem dúvida, mas no qual havia seguramente mais ordem, mais labor, mais solicitude, mais disciplina e mais sinceridade.

Quando surgistes para as letras, a nossa Companhia estava já, desde muito, incorporada; mas o vosso espírito, visceralmente acadêmico, já se afeiçoara à existência e à vida de um pequenino cenáculo de poetas, em que, a par do vosso, cintilam igualmente os belos talentos de Hermes Fontes e Pereira da Silva, preeminentes figuras do nosso Parnaso.

Como Conrart, como Chapelain, como Cerisy, como Malleville e como Boisrobert, fostes verdadeiramente acadêmico antes da investidura oficial. Viestes agora para este templo, que é apenas maior e mais iluminado, e onde (com grande ingenuidade se afirma) é definitivamente realizada a conquista da imortalidade. Vossos companheiros virão também, e em boa hora, para eles e, sobretudo, para a Academia, que já está tardando em fazer obra de reparação e de justiça, recebendo no seu seio alguns dos maiores e mais gloriosos representantes da vossa geração.

Vinde ajudar-nos, ilustre confrade, na realização dessa obra benemérita, enviando a outros candidatos, que freqüentemente nos batem às portas, o copo cheio d’água a que há pouco vos referistes (ainda que seja de água com açúcar...)
Que sois um dos mais belos astros daquela plêiade, todo o Brasil o sabe; e para enumerar os predicados excelentes e os altos títulos que justificam a galharda conquista dessa Cadeira, basta-me reproduzir o que me foi dado dizer da vossa obra e do vosso espírito quando tive de manifestar o que pensava acerca do vosso primeiro livro: Colunas.

Posso afirmar que por esse tempo nem vos conhecia: uma simples apresentação e alguns minutos de palestra, quatro ou cinco anos antes do aparecimento daquele trabalho, haviam-me deixado apenas uma ligeira recordação, e esta mais do cavalheiro fino e gentil do que propriamente do poeta, ainda tímido e retraído.
A amizade, que hoje nos liga, veio, é bem de ver, depois da crítica e como conseqüência dela; não a ditou, portanto, nem influiu como inspiradora do julgamento.

Forro-me, pois, à tarefa de traçar novamente o vosso elogio, pois que ele já está definitivamente feito nas colunas do Registro Literário, de 30 de agosto de 1922. Eis algumas das minhas palavras de então:

Só agora me chegou às mãos este volume de versos dado à estampa em 1920 e cujo aparecimento não foi, em tempo, devidamente saudado, como de obra verdadeiramente bela e notável entre as melhores que se têm ultimamente publicado no Brasil.

Luís Carlos é, com efeito, um grande e inspiradíssimo criador de beleza, que alia a arte pagã e escultural da Grécia às concepções sugeridas pelo sentimento cristão, filiando-se assim à nobre estirpe dos incomparáveis artistas do Renascimento, entre os quais fulguravam os gênios de Da Vinci, Miguel Ângelo, Rafael e Ticiano, a par dos de Erasmo, Camões, Shakespeare e Cervantes.
Quanto à correção e ao valor do seu admirável trabalho, basta dizer que, de 152 composições, contidas em volume de 254 páginas de texto poético, nenhuma é medíocre; e que, em 3.088 versos, só encontrei 4 que me pareceram forçados ou duros, além de uma única estrofe com rimas homófonas.
Em toda essa copiosa messe de poesia, nem num erro de linguagem!

Dou-lhe, por isso, as honras de um Registro inteiro.
Admire-se, antes do mais, a limpidez destes versos:

Tempo – essência do Espaço eterno. Tempo – fio
Da vida, mas que enleia a vida e a morte agoura,
Ligando o que hoje cria à destruição vindoura,
Cada berço nascente a um túmulo vazio!

Ilude, se é veloz; engana, se é tardio,
Porque só se lhe altera a força imorredoura
Quando encanece o campo ou quando o campo aloura,
Causando o outono, o inverno, a primavera e o estio.

Transforma as cousas: cerra um astro e outro descerra;
Mas, sem que a vida enerve e sem que a morte afoite,
Mantém a coexistência orgânica da Terra;

Desvenda, aos poucos, tudo o que o mistério açoite,
E ao Sol sempre cingindo o mundo, o mundo encerra
No eterno ciclo – a aurora, o dia, a tarde, a noite.

Dessa quase impassibilidade passa facilmente o Autor para a poesia de sentimento e de emoção, sem os quais não existe a verdadeira arte. Luís Carlos penetra a fundo nos mais íntimos recessos da alma humana e traz de lá o calor e a vida para as suas mais belas criações espirituais.
Com o título “A ruga da minha fronte”, encontrará o leitor um dos melhores sonetos do livro:

Quanta gente me diz, ao ver-me o rosto:
– Que dor escondes, ou que mal fizeste,
Para que tragas em teu cenho exposto
Novo sinal da cólera celeste?

Se estás na vida longe do Sol-posto,
E se achas rosas num caminho agreste,
Por que hás de ir caminhando com o desgosto,
Vendo em cada roseira o teu cipreste?

– É que formam minh’alma incompreendida
(Alma de pensativo caminheiro)
Um sorriso, uma lágrima e uma trova;

E, enquanto vou pensando em minha vida,
O pensamento, que é o melhor coveiro,
Vai-me na fronte desenhando a cova.

É uma pequenina e belíssima jóia, formada de quatorze pérolas iguais e sem jaça. Não as fazem mais rútilas, nem mais puras, os melhores e mais aplaudidos cultores do verso na nossa terra.
Leia-se agora o esplêndido soneto “O Poeta”:

Ninguém saiba quem sou. Quero viver sepulto
Na minha solidão grandíloqua de asceta,
Preferindo aos clarões do mundo a luz secreta
Que aclara, quando é sonho, e abrasa quando é culto.
Perpasse eu pela vida aparentando um vulto
Envolto no pudor, como visão discreta;
Mas que surja, por fim, transfigurado em poeta,
Da crisálida azul em que o meu ser oculto.

E, através da efusão fecundante do dia,
Suba àquelas regiões, de onde os sóis não se somem
No equilíbrio imortal da suprema harmonia;

E fique, no esplendor que as eras não consomem,
Provando, pela glória estranha da poesia,
Como pode caber um deus dentro de um homem!

Vê-se, por aí, quanto preza o Autor a sua arte, e a conta elevada em que tem a poesia.
Leia-se, porém, ao lado desse soneto de pensador, a seguinte composição, que nasceu toda do sentimento:

Minha filha!... Que magia
Tem a sua natureza,
Que acorda tanta alegria
Na minha tanta tristeza!

Minha filha... Minha glória...
Mais que glória, meu amor:
– Vitória estranha, vitória
Do meu prazer contra a dor.

Minha filha... Céu na Terra,
Sonho, aroma, estrela, aurora;
Bem que os bens todos encerra;
Bem que os bens todos melhora.
Minha filha... Meu tesouro;
Minha musa rosicler.
Botão que, em tempo vindouro,
Não será flor, mas mulher!

Minha filha... Não me cansa
Ir-lhe assim contando a idade:
O dia de hoje – esperança;
O dia de ontem – saudade.

Minha filha... Minha palma...
Meu sobressalto... ai de mim!
Filha, filha da minh’alma!
Não sei de outra filha assim.

Não resistirei, porém, ao prazer de transportar para este Registro as seguintes estrofes:

Já não ouço cantar na minha vida
A fonte do meu ser! Era tão pura
Que não teve a existência merecida,
Sob a forma de humana criatura.

Quem a visse, pensava: “Não a visse
E antes julgá-la-ia uma quimera.”
Se era menos que santa na velhice,
Era mais do que Mãe. Não sei o que era.

Sei apenas que, moço, e ela velhinha,
Quando juntos ficávamos a sós,
Uma nuvem de estrelas nos continha:
Era a Virgem-Santíssima entre nós.
Trocávamos os seres por magia
Numa tão funda reciprocidade
Que, às vezes, ela moça parecia
E eu parecia ter a sua idade.

Mas se ela esta ilusão tinha ao meu lado,
Numa sinceridade de evangelho,
Em vez de rir, tomava um ar magoado,
Que lhe doía imaginar-me velho.

Não se pertence mais à espécie humana
Depois de tão seráfico esplendor;
Morreu para apurar-me a alma profana
No silêncio lustral da minha dor.

Lá se foi para Deus na glória infinda...
Mas não me abandonou! Era tão boa!
Quanta vez vem do céu, mais doce ainda,
Dá-me a indulgência do Ângelus e voa!

Ao irmão, que foi o poeta Francisco de Paula Monteiro de Barros, dedica o Autor o seguinte Epicédio, que, além de inspirado pela mesma doçura e delicadeza de sentimentos, é um dos melhores sonetos que se tem publicado nos últimos tempos:

Por ti, que foste o meu primeiro mestre,
Por ti, que foste a graça, a glória, o orgulho
Do nosso antigo lar cheio do arrulho
E da poesia de um pompal campestre;

Por ti, que eu busco em vão, por mais que adestre
O cego olhar, no surto ou no mergulho,
Sondando, ora o céu calmo, ora o marulho
Do mar, trincando o seu grilhão terrestre;
Por ti, noite estrelada em minha vida,
Silêncio vivo, sombra estremecida,
Doce fantasma das desertas horas;

Por ti, meu pobre irmão – extinta palma –
Chora minha arte, pelos olhos da alma,
Estas quatorze lágrimas sonoras...

Fora preciso transcrever todo o volume, para dar idéia das inúmeras belezas contidas nos versos deste grande poeta, que honra o Brasil e a sua geração. Não disponho, porém, de espaço para tanto, e é preciso deixar ainda muita cousa que possa despertar a curiosidade do leitor, de cuja biblioteca, por mais medíocre e modesta que seja, não pode deixar de fazer parte, em bela encadernação, o precioso escrínio poético intitulado Colunas.

Eis o que eu disse então, eis o que eu subscreveria agora, acerca das Colunas. Mas vieram ainda os Astros e Abismos, e, para mostrar que estes são também escrínios de lindíssimas pérolas, basta o soneto intitulado “Aos meus amigos”:
 
A tímida alegria que me resta
Depois de tão recônditos castigos,
Vem de vós, meus dulcíssimos Amigos,
Que ainda me dais uma ilusão de festa.

Dentro da minha solitude honesta,
Que só me tem valido desabrigos,
Sois vós que me sorrides nos perigos,
Como se abrem clareiras na floresta.

– Sonâmbula visão de ermo profundo,
Eu sou, por minhas lágrimas, no mundo,
Entre vós, por quem gozo em merecê-las,
Como os rios, à noite, cujas águas,
Por prêmio de cantar as suas mágoas,
Lá vão cantando e recolhendo estrelas...

É com essas credenciais que sucedeis a Alberto Faria – espírito revolucionário, irreverente e em tudo antitético do vosso.
Já lhe traçastes as linhas do perfil, forrando-me à tarefa de uma análise exaustiva.
Não é muito vasta a obra do nosso saudoso companheiro; mas através de todas as suas páginas transparece o espírito arguto de folclorista, a preocupação da vernaculidade, o amor da terra natal.
Eram diversos os vossos temperamentos, diversas as vossas inclinações, o que não quer dizer que ele não soubesse também compreender a Beleza.

A vós, porque a ela rendeis um culto de verdadeiro esteta, chamam-vos, como à Academia, guarda fiel e emperrado do Parnasianismo...
O Parnasianismo!
Entre nós ele foi apenas à distinção elegante e abotoada dos que sucederam à negligência da geração anterior. Mas quando assim não fosse, não é verdade que à Academia caiba a tarefa de defender esta ou aquela seita, este ou aquele credo literário.1 Cabe-lhe tão-somente a defesa do que é já um patrimônio sagrado da humanidade e que a horda amotinada e ululante dos novos bárbaros pretende enodoar e destruir, como que para quebrar o padrão da eterna Beleza, que eles não sabem ver, nem são capazes de interpretar.

O que a Academia não pode fazer é, revolucionária e criminosamente, proscrever os eternos preceitos e as normas imperecíveis da harmonia, da ordem, da proporção e da elegância, só porque pretendem alguns profanadores substituí-las por uma andrajosa indigência de idéias, vestida grotescamente, e sarabandeando lúbrica e sem pudor, em descompostas e desopilantes arlequinadas de carnaval.
Se é, pois, no sentido de poeta escorreito e asseado, de forma e de linguagem que se há de tomar o epíteto de parnasiano, com que pretendem menosprezar o vosso culto de ateniense pela beleza do Parthenon, fio que só vos sobejem motivos para vos orgulhardes da invectiva, que vos sagra definitivamente um dos mais solícitos e mais brilhantes entre os maiores sacrificadores de Apolo.

Orgulhai-vos desse nobre e elevado título, senhor Luís Carlos; e, poeta das Colunas, no momento de penetrardes os umbrais deste cenáculo das letras, tanto mais radioso e triunfante quanto mais apedrejado, vinde murmurar comigo a “Oração na Acrópole”, despolida mas religiosamente transplantada da língua de Voltaire, de Racine, de Saint-Victor, de Flaubert, de Anatole France e de Renan, para o nosso vernáculo, pela incapacidade do vosso modesto, mas esforçado paraninfo, que só alardeia a glória, ou a vanglória, do único título até hoje por ele conquistado: o de guarda noturno da literatura brasileira!

ORAÇÃO NA ACRÓPOLE

“Ó nobreza! ó beleza simples e verdadeira! deusa cujo culto traduz razão e sabedoria, e cujo templo é uma lição eterna de consciência e de sinceridade! Chego tarde demais ao pórtico dos teus mistérios; é carregado de remorsos que me acerco do teu altar; para encontrar-te, consumi-me em pesquisas sem conto.

A iniciação, que, por meio de um simples sorriso, conferias outrora ao Ateniense apenas recém-nado, tive de conquistar à força de meditações e à custa de longos sacrifícios.

Nasci, ó deusa de olhos cerúleos, de ascendentes bárbaros, entre os Cimérios bons e virtuosos, que habitam a orla de um mar caliginoso, eriçado de escolhos e sempre açoutado pelos vendavais. Ali mal se conhece o sol; flores são os musgos marinhos, as algas e as conchas variegadas, que se encontram no fundo das baías solitárias. As nuvens parecem desbotadas, e a própria alegria chega a ser um pouco melancólica; mas há nascentes de água fria que borbotam dos rochedos, e os olhos das raparigas são como essas fontes verdes, nas quais, em fundos de ervas onduladas, espelha-se o azul do céu.

Meus mais remotos antepassados aventuravam-se a longínquas navegações, cruzando mares que os Argonautas não conheceram. Ouvi, na minha juventude, as canções das viagens polares; fui embalado ao som da recordação dos gelos flutuantes, dos mares brumosos e cor de leite, de ilhas povoadas de pássaros que cantam a horas certas e, que, quando levantam o vôo, todos juntos, velam a face do céu.
Sacerdotes de um culto estranho, vindo dos Sírios da Palestina, encarregaram-se da minha educação. Eram sábios e santos; ensinaram-me longas histórias de Cronos, criador do mundo, e de seu filho que, segundo a tradição, empreendeu uma viagem pela terra.

Seus templos, ó Euritmia, medem três vezes a altura do teu, e assemelham-se a florestas. Falta-lhes apenas solidez; esboroam-se ao cabo de quinhentos ou seiscentos anos; são fantasias de bárbaros, que supõem ser possível fazer alguma cousa duradoura e perfeita fora das regras que traçaste aos teus inspirados, ó Razão!  

Mas esses templos me agradavam; eu não havia ainda estudado a tua arte divina, e encontrava neles a divindade.
Lembra-me bem dos cânticos que neles ouvia, então: – “Salve, estrela dos mares, rainha dos que vivem gemendo neste vale de lágrimas...” Ou então: – “Rosa mística, Torre de marfim, Casa de ouro, Estrela da manhã ...”
Ah! deusa! quando esses cantos me acodem à memória, meu coração se confrange, e quase me torno apóstata!

Perdoa-me um tal ridículo: não podes imaginar o encanto que os mágicos bárbaros puseram nesses versos, e quanto me custa seguir a pura e fria razão. Ainda mais: se soubesses quanto se tornou difícil o teu serviço! Toda a nobreza desapareceu. Os Citas realizaram a conquista do mundo. Não há mais república de homens livres; só há reis oriundos de um sangue espúrio, majestades que te fariam sorrir!
Pesados Hiperbóreos acusam de levianos os que te servem. Uma pambeocia formidável, uma coligação de todas as parvoíces, desdobra sobre o mundo uma cobertura de chumbo, que não deixa respirar. Até mesmo os que te cultuam hão de inspirar-te piedade!

Recordas-te daquele Caledônio que, há cinqüenta anos, quebrou o teu templo a marteladas, com o intuito de transportá-lo para Tule?
Fazem todos o mesmo...
Escrevi, segundo algumas das regras que mais estimas, ó Teoné, a vida do moço deus a quem servi na minha meninice; pois eles me tratam como um Evêmero; escrevem-me, perguntando qual o escopo que visei; não estimam senão o que concorre para dar rendimento às suas mesas de trapezitos.
E para que é que se escreve a vida dos deuses, ó céus, senão para fazer amar o que houve neles de divino, e para mostrar que essa divina essência vive ainda e viverá para sempre no coração da humanidade?

Não te recordas de um dia em que, no arcontado de Dionisodoro, um feio e pequenino Judeu, que falava o grego dos Sírios, chegou aqui, percorreu o teu átrio sem te compreender, leu as tuas inscrições às avessas e julgou ter encontrado no teu asilo um altar dedicado a um deus, que seria o Deus desconhecido? Pois bem: esse Judeuzinho venceu: durante mil anos consideraram-te um ídolo, ó Verdade; durante mil anos o mundo foi um deserto onde, não medrou sequer uma flor!
Durante esse tempo, emudeceste, ó Salpinx, tuba sonora do pensamento!

Deusa da ordem, imagem da estabilidade celeste, eram culpados os que te amavam; e, ainda hoje, depois que à custa de ingentes esforços conseguimos aproximarmo-nos de ti, imputam-nos ainda a prática de um crime contra o espírito humano: o de havermos quebrado cadeias que não serviam de obstáculo a Platão.

Só tu és jovem, ó Cora! Só tu és pura, ó Virgem! Só tu és sadia, ó Higia! Só tu és forte, ó Vitória! Guardas as cidades, ó Prómacos! Tens os predicados de Marte, ó Aréa; teu ideal é a paz, ó Pacífica!
Legisladora, fonte das constituições ditadas pela justiça; Democracia, tu, cujo dogma fundamental é que todo bem promana do povo, e que onde não há povo para nutrir e inspirar o gênio, nada existe; ensina-nos a extrair o diamante das multidões corrompidas!

Providência de Júpiter, divina operária, mãe de todas as indústrias, protetora do trabalho, ó Erganéa, tu que fazes a nobreza do obreiro civilizado e o colocas em fortaleza tão acima do Cita preguiçoso; Sabedoria, tu, que Zeus fez sair das próprias entranhas, depois de haver respirado profundamente; tu que vives dentro de teu pai, completamente unida à sua essência; tu, que és sua companheira e sua consciência; Energia de Zeus, centelha que acendes e que conservas o fogo no cérebro dos heróis e dos homens de gênio; converte-nos em espiritualistas consumados.

No dia em que os Atenienses e os Ródios lutaram pelo sacrifício, preferiste habitar entre os Atenienses, porque estes eram mais sábios. Entretanto, teu pai fez descer Plutus, envolto numa nuvem de ouro, à cidade dos Ródios, porque eles haviam também tributado honras à sua filha. Os Ródios foram ricos, mas aos Atenienses coube em partilha o dom do espírito, isto é, o verdadeiro enlevo, a eterna alegria, a divina juventude do coração.

O mundo só se salvará se voltar para ti, repudiando os vínculos bárbaros. Corramos, venhamos todos em tropel!
Esplendoroso será o dia em que todas as cidades que se apoderaram de alguns destroços do teu templo (Veneza, Paris, Londres, Copenhague) repararem os furtos praticados, formando teorias sagradas para reconduzirem as relíquias usurpadas, e dizendo: “Perdoa-nos, ó deusa! foi para salvá-las dos maus gênios da noite!”; e reconstruírem as paredes ao som da flauta, para expiarem o crime do mísero Lisandro!

Irão depois a Esparta, para amaldiçoar o solo em que medrou essa alimentadora de erros tenebrosos, e insultá-la, porque deixou de existir.
Firme na tua fé, resistirei às minhas fatais conselheiras; ao meu cepticismo, que me faz descrer do povo; à minha inquietação de espírito, que, mesmo depois de encontrada a verdade, faz que eu corra ainda ao seu encalço; à minha fantasia, que, ainda depois de se haver pronunciado a Razão, não me permite permanecer sossegado.

Ó Arquegeta, ideal que o homem de gênio encarna em suas obras-primas, prefiro ser o último nos teus domínios do que o primeiro em outra parte. Agarrar-me-ei ao estilóbato do teu templo; esquecerei todas as disciplinas que não forem a tua, far-me-ei estilita sobre tuas colunas, colocarei a minha célula em cima da tua arquitrave.

Irei ainda mais longe: por ti, se me for possível, tornar-me-ei até intolerante e parcial. Serás o meu único afeto. Aprenderei a tua língua, desaprendendo tudo o mais. Serei injusto com tudo quanto não te diga respeito; servo serei do último de teus filhos. Exaltarei, lisonjearei os atuais habitantes da terra que deste a Erecteu; procurarei admirar-lhes os próprios defeitos; convencer-me-ei, ó Hípia, de que eles descendem dos cavaleiros que, bem lá no alto, em cima do mármore da tua frisa, celebravam a sua festa perene. Extirparei do meu coração toda fibra que não estiver imbuída de raciocínio e de arte pura. Cessarei de estimar as minhas doenças, de folgar com a minha febre.

Mantém o meu firme propósito, ó Salutífera, ajuda-me, ó Salvadora!
Quantas dificuldades estou prevendo! Quantos hábitos espirituais terei de mudar! Quantas recordações encantadoras terei de arrancar do coração! Tudo pretendo tentar, mas falta-me confiança em mim próprio. Foi demasiado tarde que te conheci, ó beleza perfeita!

Serei, talvez, inconstante; praticarei fraquezas. Uma filosofia, bastante perversa, levou-me a acreditar que o bem e o mal, o prazer e a dor, o belo e o feio, a razão e a loucura, se transmutam uns nos outros insensivelmente, por meio de gradações tão imperceptíveis como as do pescoço de uma pomba.
Assim, nada amar, nada odiar, absolutamente, deve ser a verdadeira sabedoria. Se uma sociedade, uma filosofia, ou uma religião, houvesse possuído a verdade absoluta, tal sociedade, tal filosofia, ou tal religião, teria vencido todas as outras e seria a única a viver na hora presente.
Todos quantos até aqui julgaram estar com a razão, enganaram-se completamente. Poderemos, por ventura, sem desmedida ousadia, acreditar que o futuro não nos julgará também a nós do mesmo modo que julgamos o passado?

Eis as blasfêmias que me sugere o meu espírito profundamente arruinado.
Uma literatura absolutamente sadia como a tua, só conseguiria hoje despertar o fastio.
Ris-te da minha ingenuidade... O fastio, sim... Estamos, corrompidos: que fazer? Irei mais longe, deusa ortodoxa, e contar-te-ei a íntima depravação da minha alma.

Não bastam razão e bom senso. Há poesia no Strimão gelado e na embriaguez do Trácio. Tempo virá em que os teus discípulos serão tidos também como discípulos do tédio. O mundo é muito maior do que supões. Se tivesses visto as neves do pólo e os mistérios do céu astral, tua fronte, ó deusa sempre calma, não seria tão serena; tua cabeça, mais ampla, abrangeria diversos gêneros de beleza.
És verdadeira, pura, perfeita; teu mármore é sem mácula, mas o templo de Hagia-Sofia, em Bizâncio, produz também um efeito divino com os seus tijolos e a sua caliça. É a imagem da abóbada celeste. Ruirá por terra; mas ainda mesmo que o teu santuário fosse bastante amplo para conter uma multidão, ainda assim, ruiria também.

Um imenso rio de esquecimento conduz-nos para um báratro sem nome. Ó abismo, és o único Deus! As lágrimas de todos os povos são lágrimas verdadeiras; os sonhos de todos os sábios encerram apenas uma parcela de verdade.
Tudo, no mundo, é símbolo e sonho.

Os deuses passam como os homens, e não conviria mesmo que fossem eternos.
A fé que alimentamos um dia não deve servir-nos de cadeia: nada mais lhe ficamos a dever desde o momento em que solicitamente a enrolamos na mortalha de púrpura em que dormem os deuses mortos.”

*  *  *

Sr. Luís Carlos:
A vossa atitude de recolhimento, de unção, de êxtase, de embevecimento e de sonho diante da invocação dirigida à suprema Beleza por um dos maiores sacerdotes da Arte, mostrou bem claramente que vós sabeis rezar muito melhor do que eu. Aqui é, pois, o vosso lugar.

Para aqui entrastes, não como pseudo-expoente de alguma suposta ou hipotética preeminência, mas como expressão real e verdadeira da única cousa de que precisa alguém ser expoente para penetrar ufano e de cabeça erguida numa academia de letras: a literatura nacional e a arte de bem dizer, ou escrever.

Em nome da nossa Companhia, eu vos saúdo: sede bem-vindo!