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Ivan Junqueira

MORRER

Pois morrer é apenas isto:

cerrar os olhos vazios

e esquecer o que foi visto;

 

é não supor-se infinito,

mas antes fáustico e ambíguo,

jogral entre a história e o mito;

 

é despedir-se em surdina,

sem epitáfio melífluo

ou testamento sovina;

 

é talvez como despir

o que em vida não vestia

e agora é inútil vestir;

 

é nada deixar aqui:

memória, pecúlio, estirpe,

sequer um traço de si;

 

é findar-se como um círio

em cuja luz tudo expira

sem êxtase nem martírio.

 

 

                                                                                  (O Grifo, 1987.)

 

E SE EU DISSER

E se eu disser que te amo — assim, de cara,

sem mais delonga ou tímidos rodeios,

sem nem saber se a confissão te enfara

ou se te apraz o emprego de tais meios?

E se eu disser que sonho com teus seios,

teu ventre, tuas coxas, tua clara

maneira de sorrir, os lábios cheios

da luz que escorre de uma estrela rara?

E se eu disser que à noite não consigo

sequer adormecer porque me agarro

à imagem que de ti em vão persigo?

Pois eis que o digo, amor. E logo esbarro

em tua ausência — essa lâmina exata

que me penetra e fere e sangra e mata.

                                                                                  (O Grifo, 1987.)

 

 

 

TESTAMENTO

Sem trilhas no labirinto,

solitário, a passo lento,

leio o infausto testamento

de um infante agora extinto.

 

O que ensina esse lamento

a quem o escuta e, faminto,

só o aprende à luz do instinto,

e nunca à do entendimento?

 

Não será acaso o vento

o que nas vértebras sinto?

Ou será que apenas minto,

e mente-me o pensamento?

 

Não há dor nem sofrimento

no que leio, mas consinto

em que ali tudo está tinto

do mais fáustico argumento:

 

não o aroma do jacinto

nem a paz do esquecimento,

mas o grifo que, violento,

verte o verde do absinto.

                                                                                  (O Grifo, 1987.)

 

NO LEITO FUNDO

No leito fundo em que descansas,

em meio às larvas e aos livores,

longe do mundo e dos terrores

que te infundia o aço das lanças;

 

longe dos reis e dos senhores

que te esqueceram nas andanças,

longe das taças e das danças,

e dos feéricos rumores;

 

longe das cálidas crianças

que ateavam fogo aos corredores

e se expandiam, quais vapores,

entre as alfaias e as faianças

 

de tua herdade, cujas flores

eram fatídicas e mansas,

mas que se abriam, fluidas tranças,

quando as tangiam teus pastores;

 

longe do fel, do horror, das dores,

é que recolho essas lembranças

e as deito agora, já sem cores,

no leito fundo em que descansas.

                                                        (A sagração dos ossos, 1994.)

 

SAGRAÇÃO DOS OSSOS

                                               A Bruno Tolentino

Considerai estes ossos

— tíbios, inúteis, apócrifos —

que sob a lápide dormem

sem prédica que os conforte.

 

Considerai: é o que sobra

de quem lhes serviu de invólucro

e agora já não se move

entre as tábuas do sarcófago.

 

Dormem sem túnica ou toga

e, quando muito, um lençol

lhes cobre as partes mais nobres

(as outras quedam-se à mostra,

 

não dos que estão aqui fora,

mas dos ácidos que os roem

ou do lodo que lhes molha

até a polpa esponjosa).

 

De quem foram tais despojos

tão nulos e sem memória,

tão sinistros quanto inglórios

em seu mutismo hiperbólico?

 

Onde andaram? Em que solo

deitaram sêmen e prole?

Foram químicos, astrólogos,

remendões, físicos, biólogos?

 

Ou nada foram? Que importa

não haja um só microscópio

lhes cevado a magra forma

ou a mais ínfima nódoa?

 

Existiram. Esse é o tópico

que aqui, afinal, se aborda.

E eis o faço porque, ao toque

de meus dedos em seus bordos,

 

tais ossos como que imploram

a mim que os chore e os recorde,

que jamais os deixe à corda

da solidão que os enforca,

 

nem à sanha do antropólogo

que os vê, não como o espólio

do que foi amor ou ódio,

lascívia, miséria e glória,

 

mas como a lívida prova

de que o sonho foi-se embora

e dele só resta a escória

numa urna museológica.

 

E então me pergunto, a sós:

por que desdenhar o outrora

se nele é que ecoa a voz

do que, no futuro, aflora?

 

Não bastaria uma rótula

para atestar esse cogito,

ergo sum, aqui e agora,

alheio a qualquer prosódia

 

ou língua em que se desdobre

essa falácia que aposta

no fundo abismo sem orlas

entre o que vive e o que morre?

 

Baixa uma névoa viscosa

sobre as pálpebras da aurora.

E ali, de pé, sob a estola

de um macabro sacerdote,

 

sagro estes ossos que, póstumos,

recusam-se à própria sorte,

como a dizer-me nos olhos:

a vida é maior que a morte.

                                                        (A sagração dos ossos, 1994.)

 

 

DOM QUIXOTE

Vai a passo Dom Quixote

em seu magro Rocinante.

Sancho Pança o segue a trote

pela Mancha calcinante.

 

Tudo é pedra, arbusto seco,

erva má, ermas mesetas.

Não se escuta nem o eco

do vento a ranger nas gretas.

 

O que buscam o fidalgo

e o seu álacre escudeiro?

Peripécias, duelos, algo

que lhes recorde o cordeiro

 

quando abriu os sete selos

e fez soar as trombetas?

Buscam o quê? O que fê-los

ir tão longe em suas bestas?

 

Pois esse Alonso Quijano,

ao deixar a sua aldeia,

só buscava — áspero engano —

exumar o que, na teia

 

de suas tontas leituras,

eram duendes, hierofantes,

castelos, leões, armaduras,

dulcineias, nigromantes

 

e uma Espanha onde a justiça,

há tanto um tíbio sol posto,

fosse um bem que só na liça

pudesse ser recomposto.

 

Mas do triste cavaleiro

era tanto o desatino

que na cuia de um barbeiro

vira o elmo de Mambrino,

 

nas ovelhas ao relento,

uma tropa de meliantes,

e nos moinhos de vento,

uns desgrenhados gigantes.

 

Dom Quixote nunca via

o que aos seus pares narrava,

pois que só lia e mais lia,

e ao ler é que se encantava.

 

E assim do texto as imagens

saltavam — bruscas centelhas —

no amarelo das paisagens,

no ocre encardido das telhas.

 

Foi quando então, claro e fundo,

percebeu que o que ia vendo

nada tinha com o mundo

sobre o qual andara lendo.

 

Ilusão e realidade,

heroísmo e covardia,

sensualismo e castidade,

prosa pedestre e poesia

 

— eis os polos do conflito

que somente se harmoniza

no humor de um cáustico dito

que nos fustiga e eletriza.

 

E o que redime o manchego

não é tanto aquilo que ama,

e sim o dom de si mesmo

no amor que doa a uma dama,

 

sem nenhuma recompensa

que não seja a do fracasso

ou da estrita indiferença

de quem sequer viu-lhe um traço.

 

De fala mansa e discreta,

que ao calar é que se escuta,

seu percurso é a linha reta

entre o que tomba e o que luta.

 

Vai a passo Dom Quixote,

ya el pie en el estribo.

A morte agora é seu mote.

Vai a sós. Vai só consigo.

                                                                               (O outro lado, 2007.)

 

 

 A IMORTALIDADE

O que é a imortalidade?

Um sopro que nos carrega

para os confins da orfandade,

 

onde o espírito se nega

e de si já não recorda

após a última entrega?

 

Que luz é a que nos acorda

quando a morte, em dada hora,

bate à porta e chega à borda

 

do ser que se vai embora,

mas crê que não vai de todo,

pois do invólucro que fora

 

algo fica em meio ao lodo

que lhe veste o corpo morto

com a púrpura do engodo?

 

E o que cabe ao que foi torto

e nunca exigiu conserto?

Irá chegar a algum porto?

 

Será que na alma um aperto

não lhe purgou a maldade

quando do fim se viu perto?

 

O que é a imortalidade?

Uma insígnia, uma medalha

com que se louva a vaidade?

 

Ou não será a mortalha

que te poupa só a cara

escanhoada a navalha?

 

Será talvez a mais rara

das obras que publicaste

ou da crítica a mais cara?

 

Será isto, já pensaste,

a herança em que se resume

o que aos amigos deixaste?

 

Esquece. Sente o perfume

de algo que se fez distante:

a mão de uma criança, o gume

 

de seu olhar penetrante

quando viu, no ermo do cais,

que o tempo que segue adiante

 

é o mesmo que volta atrás

e confunde a realidade,

e a desmantela, e a refaz.

 

É isto a imortalidade:

esse eterno e estranho rio

que corre em ti e te invade.

 

E o mais é só o pavio

de um lívido círio que arde

no insuportável vazio

 

que enche toda a tua tarde.

                                                                             (O outro lado, 2007.)

 

 

 

ESSA MÚSICA

Essa música que retorna

como o perfume de uma rosa,

essa música que se entorna

de uma ânfora por cujas bordas

escorre ainda o mel de outrora,

essa música insidiosa

numa antiguíssima harpa eólica:

seria o vento em suas cordas?

Seria Orfeu vindo das forjas

do inferno a quem baixou, apóstata,

em busca da filha de Apolo,

Eurídice, a esposa morta

por quem até hoje ele chora?

Não é nada enfim. Tudo dorme.

Há, sim, alguém que à noite acorda

e vê em ruínas, sem memória

de um tempo que fugiu, mas volta

nessa música que se entorna,

e vai e vem, e vem e torna,

nessa música que retorna

como o perfume de uma rosa.

                                                                                     (Essa música, 2014.)