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Discurso de recepção

Discurso de recepção por Eduardo Portela

IVAN JUNQUEIRA E OS NOMES DO TEMPO

Se me pedissem para preceder de um título estas palavras de recepção ao poeta, certamente escolheria: “Ivan Junqueira e os Nomes do Tempo”. Lembrando que os nomes do tempo não são nomeados; são inscrições cravadas, no corpo e na alma ansiosos, da peripécia humana. São sinais extraviados pela desatenção dos homens.

As palavras de boas-vindas, sobretudo quando esforçadamente discretas, estão dispensadas de legendas retóricas, de etiquetas classificatórias, de rótulos frequentemente pretensiosos. Essa é a vantagem que os discursos ensaísticos levam sobre outras práticas verbais. São desempenhos livres, movidos pelas decisões da palavra. No caso da palavra poética – a mais radical de todas as palavras.

I

O percurso que se desdobra desde o primeiro livro, Os Mortos (1956-64), até A Sagração dos Ossos (1989-94), inscreve a poesia de Ivan Junqueira na linhagem metafísica de corte classicizante. Talvez por isso já o chamaram de “neoclássico” e “neoconservador”. O prefixo “neo” tem se prestado, nas últimas décadas, a todo tipo de contrafação conceitual.

É provável que Ivan Junqueira seja apenas, e mais do que tudo, um poeta moderno. Não digo um poeta modernista, empurrado pela crença nacionalista, pelo prazer da galhofa, pelo desvario da oralidade desenfreada. De modo algum. E neste sentido os modernistas dos anos de chumbo não seriam modernos. Encontraram dificuldades intransponíveis na hora de operarem a tradição. Foram descuidados, sob o pretexto de serem descontraídos. Confundiram, na maior parte das vezes, fundamento com fundamentalismo. Enquanto a proposta moderna, nem “triste”, nem “racista”, nem puramente “festiva”, jamais se compôs com o escândalo, a comiseração ou as estridentes, tão estridentes quanto vazias, patriotadas que se espalharam pelos quatro cantos do país.

Mas convenhamos. Ivan Junqueira preferiu o comedimento, que inclui a paixão, sem cultuar a compaixão. Vejamos a sua “Poética”:

A arte é pura matemática
como de Bach uma tocata
ou de Cézanne a pincelada
exasperada, mas exata.

É mais do que isso: uma abstrata
cosmogonia de fantasmas
que de ti lentos se desgarram
em busca de uma forma clara,

da linha que lhes dê, no espaço,
a geometria das rosáceas,
a curva austera das arcadas
ou o rigor de uma pilastra;

enfim, nada que lembre as dádivas
da natureza, mas a pátina
em que, domada, a vida alastra
a luz e a cor da eternidade,

tal qual se vê nas cariátides
ou nas harpias de um bestiário,
onde a emoção sucumbe à adaga
do pensamento que a trespassa.

Despencam, secas, as grinaldas
que o tempo pendurou na escarpa.
Mas dura e esplende a catedral
que se ergue muito além das árvores.

Estética da parcimônia em oposição à estética da apoteose, vocábulos recuperados e revitalizados, sentimentos contidos e poética apurada, tudo aponta na direção da confluência. Da confluência que abre mão, com muito gosto, das ofertas do supérfluo.

A estridência sempre foi a extensão ociosa, ostensivamente desproporcional, do som que é apenas ruído. Na linha oposta da percepção cortante que só as palavras verticais dispõem. É aí que se move o poema austero de Ivan Junqueira: na composição cuidadosa de formas diversas, na organização fonológica menos previsível, na densidade reflexiva, na severa disciplina do verbo ascético, avesso a qualquer concessão de marketing – aquele verbo que, em vez de se conformar com a mudez exaurida, investe no silêncio grávido. Devemos ressaltar aqui o exímio gestor dos deslocamentos qualificativos. A linguagem da paródia, irônica e perquiridora, reconstitui o tempo, morto-vivo, pelas autoestradas que A Rainha Arcaica veio a percorrer. Palavras que nunca foram apresentadas antes, ou se cruzaram pela primeira vez, palavras de gerações distantes, de repente estabeleceram inesperado e produtivo regime de parceria.

Aqui talvez convenha um pequeno esclarecimento, para evitar o grande ruído. Comedido nunca chega a ser o que optou por uma economia de guerra. Isto seria simplificar o comedimento. Comedido é o que mantém as suas contas verbais em dia, os que não dilapidam, os que evitam desabar no vermelho. Comedido é aquele que gere a palavra com a sabedoria e a obstinação dos descobridores. É o que sabe praticar a difícil simplicidade que tantos ignoram.

II

Os filósofos da linguagem, mais do que os da consciência, porque a consciência jamais conseguiu proteger-se da irresistível tendência ao isolamento, costumam identificar na poesia um ato de diálogo. O poeta será então um ser em estado de diálogo. Sartre diria: uma espécie condenada a ser dialógica. Quando a poesia intercepta o diálogo, o poema se vê ameaçado de morte. O poema pode morrer quando, por infringir as regras do diálogo, gagueja, não se faz escutar; ou quando, por inabitual ou ensurdecedora estridência, fere os tímpanos do eventual e desavisado leitor. Já o diálogo interrompe os féretros precipitados e os programas fúnebres agendados por completa ausência de interlocução. Nunca foi, evidentemente, o comportamento de Ivan Junqueira. Ele promove fecundos diálogos, não só nos seus poemas, mediante referências e alusões, como nos textos que escreve sobre seus companheiros de ofício, nacionais e estrangeiros. No seu tão inteligente livro de ensaios O Fio de Dédalo (1998), além de nos oferecer testemunhos reveladores sobre a cultura do mundo, nos fala sobre o trabalho da linguagem levado a efeito por Dora Ferreira da Silva, Marco Lucchesi, Antonio Carlos Secchin, Alexei Bueno, Bruno Tolentino ou Ruy Espinheira Filho, membros de uma linha de frente instauradora.

Ivan Junqueira cultiva diversos gêneros.

No ensaio, igualmente se revela a amplitude do seu campo ótico, no interior do qual se misturam erudição e sensibilidade intersubjetiva. Em vez do modelo fechadamente técnico, de scholars mais ou menos esquecidos, a lição abertamente comunicativa, saudavelmente infensa ao jargão da academia.

Seria omissão imperdoável o esquecimento do tradutor exemplar que coexiste em Ivan Junqueira. Graças a ele, Leopardi, Baudelaire, Chesterton, Proust, Yourcenar, Eliot, Borges, Thomas vieram para a nossa língua. E se deram muito bem por estas paragens. Graças a ele. É que todo poeta que se preza é também um grande tradutor: traduz seres e coisas, representações não raro ínfimas da realidade, traduz línguas e linguagens, evidências e atmosferas – traduz o silêncio que se oculta nas palavras pronunciadas ou balbuciadas.

O poema resiste à tradução quando se encarcera nas grades da língua. Quando assume a liberdade da linguagem, a tradução se torna imediatamente plausível. Porque a linguagem se encontra ancorada na simultaneidade do tempo, a uma só vez como premonição, esquecimento e memória. Poeta não é somente o que escolheu o verso como forma de composição. É antes aquele que estabeleceu relação fundadora com a linguagem, sensível às confidências e às inconfidências da poesia. A poesia, o estado mais avançado das manifestações da linguagem.

Há qualquer coisa no ar que nos lembra o saudoso poeta de “Alguns toureiros”. Mas Ivan Junqueira soube preservar a distância regulamentar com relação a João Cabral de Melo Neto. Conseguiu, com eficaz naturalidade, afastar-se da sombra simultaneamente protetora e dominadora do poeta pernambucano. E o fez sem recorrer a nenhum gesto heroico, a nenhuma bravata, a nenhuma providência adicional ou a qualquer habilidade especial. Os poetas se distinguem dos prestidigitadores, porque são mais do que hábeis.

Na verdade, Ivan Junqueira, o herdeiro solidário e altivo, o intérprete perspicaz, o que admira sem anular-se, jamais se afastou do poeta maior. Ivan simplesmente se deixou ser a si mesmo. Tenho razões para imaginar que João Cabral gostaria de estar aqui, nesta noite de confraternização, aplaudindo a Ivan Junqueira.

III

Ainda no seu O Fio de Dédalo, no ensaio “Rimbaud – Poesia e Prosa Poética”, Ivan Junqueira nos oferece breve diagnóstico da modernidade, que é também uma fotografia de família da Poesia Moderna no seu amanhecer. “Nunca é tarde ou demais” – diz ele – “recordar que, sem Baudelaire (o de Les Fleurs du Mal e dos Petits Poèmes en Prose) e Poe (sobretudo o do Poetic Principle), e, depois, Rimbaud, Verlaine e Mallarmé” – é ainda o poeta-ensaísta quem avalia –, “não haveria a poesia moderna ou, pelo menos, aquela que, a partir de suas cruciais transgressões, se escreveu em todas as línguas cultas do Ocidente”.

Já no volume anterior, Prosa Dispersa (1991), no ensaio “A Modernidade de Baudelaire”, Ivan Junqueira apresentara e endossara as impugnações de Baudelaire à ideia de progresso, lançada à queima-roupa pela civilização industrial. O tempo passou mas o cenário não mudou, pelo menos na proporção do calendário transcorrido.

As cicatrizes do progresso continuam supurando, sem que a modernidade haja cumprido as suas promessas de felicidade.

A inscrição excêntrica do indivíduo tardomoderno ou, como preferem alguns, pós-moderno, não conseguiu estancar a hemorragia moral que, no itinerário que vai dos valores à performance, ao desempenho quantificado, passou a obstaculizar as pretensões mais caras ao projeto humano. Quando, coincidentemente, se extraviam os programas narrativos centrados no eixo ético. A poesia assinalou essa desolação, sem se deixar tragar pelo patetismo confessional.

De qualquer modo, a verdade como emanação da autoconsciência cede lugar à verdade como reconstrução intersubjetiva. Diz Hans-Georg Gadamer que foi Nietzsche quem “nos ensinou a duvidar da fundamentação da verdade na autocerteza da própria consciência”. Tudo indica que sim.

A consciência jamais ultrapassara as muralhas da cidadela idealista. Por isso, a cidade moderna amanheceu ferida: a cidade e esses ícones que se vão dispersando no redemoinho da diáspora urbana.

Nesse contexto dilacerado, o verso moderno faz o percurso inverso do cânone. É o reverso do cânone, até a eclosão extrema do virtual. Se é certo que o cânone pressupõe ou implica todo um processo de decantação, então o virtual vem a ser o anticânone. Para infelicidade dos bem-comportados.

Cabe portanto reter a corrida de velocidade na direção do novo; desarticular o fundamentalismo do futuro – essa hipoteca enganosa que mais promete do que cumpre. É o desafio com que se defronta hoje a linguagem da modernidade. E Ivan Junqueira conhece muito bem os “caminhos silvestres” dessa jornada inóspita. Por isso, é atual. O atual não prescinde e nunca se desgarra do seu horizonte de possibilidades. Somente se pode ser atual a partir desse horizonte, da travessia acidentada da finitude humana. Os amnésicos são inatuais.

IV

Com razão, a poesia de Ivan Junqueira é perpassada de melancolia. A melancolia e suas múltiplas intenções se introduziram nas páginas impermeáveis/permeáveis da sua construção poética. Ele, no rastro deixado pelo seu amigo Charles Baudelaire, alegoriza a melancolia, conferindo-lhe um status crítico respeitável. Para Baudelaire, a melancolia, no seu jogo polissêmico, espectral, se impunha como insubstituível ingrediente do belo. Pode ser também, na sua cisão estrutural, a sala de espera da morte. Da morte contida, sem melodramas convulsos, ou lágrimas insinceras. Tão somente o avesso da vida, a prova dos nove, a despedida sem lamúria, sem culpa, sem consternação inútil. A silhueta imprecisa, pendular, que as artes picturais expressam e a música registra, agrava a ambiguidade. O olhar abismal da melancolia fere e ao mesmo tempo cicatriza e por isso ainda uma vez intensifica a experiência humana.

É nesse cenário impaciente que a figura do pai adquire insuperada força anímica, ultrapassando os limites da evidência. Como no poema “Meu Pai”, aqui parcialmente convidado:

Eu vi meu pai nas franjas da neblina.
Eram tão frias suas mãos defuntas,
eram terríveis suas órbitas vazias.
Eu vi meu pai, a voz quase inaudível,
chamando-me ao seu colo desvalido
e a fronte me cingindo com um nimbo
de flores e de ramos já sem viço.
Eu vi meu pai. E ele sorria.

Esta mesma temperatura simbólica se mantém ao longo do poema. A série lexical que reúne, no mesmo núcleo semântico, vocábulos como noite, criança, relógio, aurora, alvorada, defunta, luto, confirma que é na morte que o tempo se agudiza. E confere ao poeta poliglota, transtemporal, intercultural, como é Ivan Junqueira, o direito de levar adiante o seu projeto cosmopolita.

07 julho de 2000