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Goulart de Andrade

SONETO

Só, no seu quarto. É meia-noite. A vela
Vai se extinguir... No cérebro escaldado,
Na ânsia do Bem-Fazer, todo o cuidado,
Em luta com o cansaço, apenas vela...

Talvez um Poeta. E que visão é aquela?
- É a que ele formou: - Envenenado
Morre o alquimista pelo Ideal sonhado...
Silêncio... a forja é fria... o catre gela.

Sobre um pântano pútrido e nojento,
Bóia um penacho cor do firmamento...
Longe, um cavalo que desaparece...

Uma donzela num caixão descansa:
Os círios ardem... há rumor de prece...
- Ideal enganador, ai! quem te alcança?...

(Poesias, 1907.)

 

LUNAR

Lua, lívida Lua,
Ai magoado de luz opalescente,
Saudade ignota que pelo ar flutua,
Vaga recordação de um sol glorioso e ardente,
Nostalgia do céu, lâmpada de doente!
Lua, segure tétrica da morte,
Sibila domadora do mar forte,
Alva flor de polares primaveras,
Celeste Iara,
Que, com a trama clara
De luz, a Alma dos poetas encarceras
Nessa prisão, nesse amplo sorvedouro
Das nebulosas e dos astros de ouro!
Por que pelos teus raios
Desejas que eu ascenda à Estância Etérea,
Lua, Lua funérea,
De histéricos desmaios?!
Sóror pálida, monja intemerata,
Que os sinistros ergástulos visita,
Aguadeira a regar lírios de prata
Do jardim que no céu flore e palpita!
Amo a Terra e os prazeres... tu nem podes
Saber o quanto em mim há de alegria...
Mas por que me entristeço à tua luz sombria?
O decerto, esta poeira argêntea que sacodes
É a sementeira da melancolia...
O teu véu branco é feito de jasmins,
Ou cravos que, em essência,
Se diluíssem pelo ar numa deliqüescência
Venenosa... Ou talvez sejas formada
De uma revoada
De extintos sons de bandolins
Que se partiram para o claro espaço...
Olha, temo o teu lúgubre regaço:
Que atração infernal exerces sobre mim,
Lua de âmbar ou marfim?
Eu sofro ao teu influxo uma imensa tortura
Sem causa e sem razão... Um ignorado anseio,
Uma infinda tristura,
Um tão grande receio...
Que à tua luz meu corpo deve
Ficar bem alvo como o de um velhinho,
E os meus cabelos ficarão de arminho,
E as minhas faces num palor de neve...
Celeste Iara,
Que, com a trama clara
De luz, a Alma dos poetas encarceras
Nas tuas gélidas crateras...

(Poesias, 1907.)

 

FORTE ABANDONADO

(Obrigada a consoante de apoio)

De pé, no promontório, encravado na bronca
Penedia, onde o mar atropelado ronca,
Ribomba, estoura, estruge, espoca, estronda, esbarra,
Abandonado avulta o vigia da barra!
Ó naus, podeis entrar! Podeis vir, exilados,
Peixes, que íeis buscar abrigo em outros lados,
Quando o bruto estridor dos canhões sacudia
O fraguedo; e a fumaça o almo esplendor do dia
No firmamento azul, empanava de chofre,
Saturando todo o ar de salitre e de enxofre!
Pássaros, volitai! Nada aqui vos aterra:
As máquinas de morte estendem-se por terra,
Frias, mudas, sem mais aquele brilho antigo
Que era para a pupila um ríspido castigo!
No muro, em cada frincha, a grama brota inculta,
Cobre as trincheiras, enche as guaritas, oculta
As arestas, contorna as ameias, procura
Tapar a barbacã com a trama verde-escura!
Agora o rubro aqui, aparece ridente,
Não em funda ferida estuando um sangue ardente
E impetuoso de heróis varado nas batalhas,
Mas em flores gentis desbrochando nas talhas
Do molhe de granito! Os rumores de passos
E toques de clarins não enchem os espaços
Agora! E que contraste estes ruídos, maninhos,
Mortíferos canhões, guardam ninhos e ninhos,
Paz e Amor!... Pode a abelha as melífluas colmeias
Fabricar sem temor, ao longo das ameias!
Pode aqui vicejar a tímida violeta!
Pode adejar a iriante e inquieta borboleta!
Sempre azul seja o céu! A liana filiforme
Medre e floresça! A brisa em fruto a flor transforme!
Venha o rijo Aquilão soprar a pulmão pleno!
Venha a Lua banhar de luz o terra-pleno
Venha aqui dentro o Sol e esta terra fecunde!
Venha o musgo crescendo e a muralha circunde!
Venha gemer o mar, que espumarento, esbarra
No rochedo em que dorme o vigia da barra!

(Poesias, 1907.)

 

VILANCETE

Se eu fico - choro por vós,
Por outros - se vou embora...
Que sorte a minha, Senhora.

 

VOLTAS

Longe de vós, inconsciente,
Não vivo, senão vegeto:
Quem disser que o meu aspecto
Quase é de um louco, não mente.
Que sorte a minha inclemente:
Se vou - sinto dor atroz...
Se fico - choro por vós...

Deixo atrás tanta lembrança
Quando eu destas plagas for,
Mas à frente um grande amor
Mostra-me tanta esperança...
Meu coração não descansa:
Rio por ver-vos, Senhora,
E choro por ir-me embora.

Diz o meu coração, alternativamente:
"Sim, ela te quer bem... Não, ela te renega..."
Se a diástole mo afirma, a sístole mo nega...
Quando é verdade? Quando ele, impiedoso, mente?

"Sim, ela te quer bem..." Ó suprema ventura!
Viver contigo a sós, tua boca beijando,
Tua mão apertando e teus olhos fitando
Para meu vulto ver nessa pupila escura!

"Não, ela te renega..." Ó suprema desdita!
Andar por este mundo indiferente a tudo,
Vendo que à minha dor é mudo o mar, é mudo
O continente, é muda a abóbada infinita!

"Sim, ela te quer bem..." Ai, desgraçado, expira,
Pára, que isso escutando eu parto satisfeito
Em demanda do céu, pára na arca do peito,
Pára, pára, afirmando esta doce mentira...

(Poesias, 1907.)

 

VILANCETE

Zagala que pastoreais
O rebanho das lembranças,
Amar-vos não posso mais.

 

VOLTAS

Desde a alva ao sol fenecer,
Desde a noite à madrugada,
Das penas ando a pascer
A numerosa manada.
Zagala, causa dos males
Que eu sofro, sem esquivanças,
Trazei-me por estes vales
O rebanho das lembranças.

Não temais a confusão
Nem as prováveis misturas:
Se as lembranças brancas são
As penas serão escuras...
Penas de vos não olhar!
Lembranças que me guardais!
Tanto é o penar e o lembrar,
Que amar-vos não posso mais.

Nestes olhos - duas fontes -
Meu rebanho dessedento;
E vou por vales e montes
Num profundo desalento...
Alguém dirá deste pranto,
Destas saudades mortais:
Que eu vos amando assim tanto...
Amar-vos não posso mais.

 

PÓRTICO

Fogo e sangue!... Eis as tintas com que escrevo:
Sonhos de idílios, vagos e distantes,
Só se exprimem por névoas e cambiantes
Dos tons aguados de que é feito o enlevo.

A evocar nostalgias mal me atrevo,
Tanto em mim são as dores terebrantes;
E pois se eu ardo em desesperos, antes
De sangue e fogo é que valer me devo!
Se me dói mesmo o gozo e, dementado,
Acho tanto sabor nos padeceres,
Se de terrores encho o meu cuidado,

Por que a verdade grite em meus dizeres,
Com fogo pinto o amor desesperado,
Com sangue os meus agônicos prazeres...

(Ocaso, 1934.)

 

POR QUÊ?

Ris, se digo que és boa; e se te digo
Que és má, tomas um ar de indiferença...
Fazes um gesto vago de descrença,
Quando afirmo serei teu muito amigo...

Se de tuas promessas te desligo,
Amuas-te; e é fatal a desavença,
Ao te falar da gratidão imensa
E do respeito meu para contigo...

Se as mãos te beijo, cedes; mas, fremente,
Se a procuro, essa boca me resiste!...
Enfado-me, gargalha loucamente!

Não sei, porém, se alta razão te assiste,
Se a atitude é de sábio ou de demente,
Quando, ao jurar que te amo, ficas triste!

(Ocaso, 1934.)

 

SAGRADA PAIXÃO

Por teu querer, tão só, foi que seguiste
Desse amor toda a rua da amargura;
E, três vezes caindo, a face pura
Aos céus ergueste, cada vez mais triste!

Mas, por essa paixão, a que, ora, assiste
A turba, e que teu rosto desfigura;
Pelo beijo traidor, pela tortura
Foi que a imortalidade conseguiste!

Essa agonia é tua Glória! E quando
Estrugir a blasfêmia dos perversos,
Que se te cale o corpo miserando:

Fica-te assim - olhos nos meus imersos,
De espinhos coroada, ao sol, sangrando,
Nua, crucificada nos meus versos!

(Ocaso, 1934.)

 

DESTINOS

Traçou entre nós dois o Nume Eterno
Uma linha, que, apenas, se revela:
Nem a passa a vaidade - menos bela,
Nem a transpõe o orgulho - alto e superno

Envelhecemos!... A lareira o inverno
Já de neve cobriu; e, agora, nela
A cinza fria da saudade vela
Os resplendores do braseiro interno...

Mágoas calaste; humilhações calei-as;
Se, hoje, temo passados desatinos,
Tu de antigas loucuras te arreceias...

Cumpriremos, assim, nossos destinos:
Tais duas torres, que ruíssem, cheias
Do repique festivo dos seus sinos!

(Ocaso, 1934.)

 

MEU JARDIM

Nessa alongada infância, à luz serena
Do luar da prece, em vago odor delida,
Florescia o jardim da minha vida,
Alvejante de lírio e de açucena.

Depois, na adolescência, manhã plena
De rubores e cantos, sem medida,
Ao abrir da corola apetecida,
A rosa do desejo o ar envenena...

Depois... volúpia louca e amor conforto...
Desentranhou-se, ao sol da mocidade,
Em papoulas e cravos o meu horto...

Enfim, velhice!... Já com a sombra invade
O canteiro, onde jaz meu sonho morto,
Floração de perpétua e de saudade!...

(Ocaso, 1934.)