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Discurso de posse

DISCURSO DO SR. GOULART DE ANDRADE

Em todo o edifício erguido no espaço é sempre o rígido que ajusta os silhares pesados da fronteira. Em cada monumento há sempre ao redor dos vultos culminantes certos ornados e figuras acessórias, que, embora secundários, não deixam de dar um toque de graça à harmonia do conjunto.

Não sei como, Senhores da Academia, me vejo alçado até ao pedestal desse em que dominais, feliz só com ficar à sombra vossa a haurir as emanações da sabedoria e da beleza. Mas, nem por gozar hoje o encanto do aconchego, cessará de me doer a tristeza do bem alheio, que é a inveja de vos poder seguir na arrancada para o alto, caminho do tempo.

E se, porventura, não merece tal sentir nojoso desprezo, será porque antes traduz anseio de aperfeiçoamento que pequenino e baixo apetite, pois é com embevecido olhar que contemplo o rastilho de ouro deixado pelo vosso pé na areia da estrada.

Quis o destino irônico que, entre vós, chegasse eu a ocupar o sólio de um elegíaco e de um guerreiro, eu, que já descingi a espada, e ando a desafinar o instrumento dos deuses!
Foi, porém, do naufrágio dessas duas frustradas vocações, que me veio o divino entusiasmo por aquilo que desejei ser, e que não sou: de um – arremedei os cantos; de outro – tentei brandir as armas; em ambos, ao cabo, me comovi, por haverem sido criadores de beleza.
Todavia, nunca as emoções provadas por atos magníficos conseguiram de todo espairecer em mim o travo produzido pelo desdém com que vencedores de batalhas ou detentores de poder acolhem as grinaldas de rimas que lhes tecem os poetas.

Foi assim que, ainda neste recinto, uma personagem viva de epopéia, a quem chamaram Artur de Jaceguai, se houve para com um escondido cantor de mágoas, que o nome carregou de Teixeira de Melo.

Na verdade, nem todos sabem admirar em outrem as qualidades de que carecem, por lhes falar à organização a simpatia dos contrastes. Que poderia valer esse voluptuoso do silêncio e da dor para aquele apaixonado do tumulto e da pompa?

Não obstante a dessemelhança, há nessas duas personalidades um ponto de convergência: – o romantismo.
Eram idealistas os dois: um, pelas atitudes cavalheirescas, duelos e reptos; outro, pela expressão dos sentimentos.

Se o poeta, na segurança tépida do seu gabinete, antegozava a morte, e o lidador, no cenário flamejante dos perigos, amava com fervor a vida; ambos tinham o mesmo culto da pátria, trabalhando, moirejando e penando por ela. Ainda que agindo em ambientes diversos, serviam à terra comum com a mesma fé: Silveira da Mota pelejava no Paraguai; Teixeira de Melo escrevia as Efemérides nacionais.
Somente, enquanto um recolhia palmas de triunfo, outro rezava baixinho:

Só peço Àquele que nos marca as covas
Um palmo apenas neste solo amigo,
Em que repouse do labor da vida –
Embora o olvido vá dormir comigo.

A Glória! A Glória! Pairadora Eterna!
Mentira eterna, que se chama a história!
Viver na morte, como um som de túmulos!
Fosse eu feliz, que me importava a Glória!

É que o doce lirista, a que Sílvio Romero rigorosamente colocou acima de Casimiro de Abreu e até mesmo de Luís Delfino, anelava apenas o supremo bem de descansar num remanso de ventura, ao pressentir lhe seria defeso o favor das consagrações. Por triste vaticínio crismou-se de sepulcro de si mesmo, aprendendo consigo a verdade de que: – “pesa mais que a mortalha o esquecimento”.

Quando eu cair, cansado da romagem,
Uma ave só não quebrará seus cantos:
Ninguém meu leito há de juncar de flores
Nem o pó de meus pés lavar com prantos.

Não tem dobre o finado em leito estranho,
Nem letreiro, nem cruz, nem pedra... Embora!
Por ínvia solidão, sem musgo, à sombra,
Posso, como vivi, dormir agora...

Bem sabeis, senhores, como a predição se realizou. Não aprouve ao ardido autor da rubra tragédia de Glória e de Morte baixar os olhos para quem apenas cultivava Sombras e sonhos, de modo que sobre essa memória, num dia de ascensão, o silêncio ainda uma vez caiu gelado e de chumbo!
Destarte o provecto almirante quis romper as praxes acadêmicas com a mesma galhardia com que arremeteu com as correntes de Humaitá...

E, todavia, nesse carreiro largo das civilizações, não lobrigareis um só lampejo de gládio que não seja cortado pela sombra verde de uma folha de mirto. O herói passaria, rápido como o seu gesto, se o poeta o não fixasse na lenda, cobrindo-lhe o peito arquejante com a púrpura das apoteoses.
Escarnecido dos magnatas, relegado para o plano das classes parasitárias, o vate, entanto, gera os próprios deuses, entalhando-lhes nos corpos, como nervos, o feixe das forças vivas da natureza, insuflando-lhes nos arcabouços, como espírito, o alento das mais claras virtudes. Profetizador de prodígios vela o pórtico das nacionalidades, e o clamor da sua voz reúne energias esparsas e enfreia vontades adversas. É quase lugar-comum a afirmação de que a bravura é filha do instinto, quando não significa simples atitude contra a vergonha da desonra, o que envolve, de alguma sorte, desejo de predomínio.

Ora, essas qualidades primitivas são as que o poeta espiritualiza, dando ao braço que acutila em defesa da vida o vigor da fé em prol de uma crença e a força do amor pela causa da pátria. É ele quem veste a vaidade na roupagem do sacrifício ao dever, quem muda o desvairo da cólera em abnegação de si mesmo.

E esta zona intermédia da realidade e idealidade é que ele vem provando de grandes homens, dos quais, segundo Carlyle, a história se torna a biografia.
Desdenhado embora, cumpre confiadamente a sua missão de animador e sublimador, fazendo-se o padroeiro dos pobres de justiça, o amparo dos oprimidos e o flagelo dos tiranos.
Um braço forte que nos arranque ao tremedal nem sempre será mais valioso que uma palavra de consolo caída nas trevas interiores de uma alma em soçobro.

E na árdua jornada de 68, bem poderia dizê-lo o excelso velho, rudemente magoado pelo relato de Inhaúma, se as rimas de José Bonifácio lhe valeram ou não pela mais apaziguadora unção de graças...

Foste o primeiro – sim! O teu navio
Abriu caminho à lúcida carreira:
Se te esqueceram – pouco importa! A glória
Brilha inda mais, se a lembram derradeira.

Sem dúvida, o embalo desses ritmos deveria ter acalentado a sua fé quase em bruxoleios, e a música desses versos reivindicadores teria soado, por longo tempo, aos seus ouvidos, como uma alvorada de esperanças.

O caso, porém, é que o grande marinheiro gostava sobretudo de se mirar; razão por que, no elogio daquele a quem sucedia, ainda uma vez encontrava ensanchas para dizer da sua pessoa.
Censurem-no outros a esse propósito, como Pascal a Montaigne, com achar que o eu é sempre odioso.
Ousarei contestar o aforismo com essa impudência risonha, que vem de falta de responsabilidade... Do amor de si mesmo nascem o respeito aos outros e a obrigação de ser exato no cumprimento dos deveres. Se floresce esse culto em orgulho, não nos esqueçamos que tal sentimento é uma qualidade positiva, menos falha de tato, simpatia e medida, que túmida de sinceridade, inteireza e valor, senão mesmo de piedade, indulgência e força de ânimo.

Na obra do Sr. de Jaceguai cada tomo é um traço a mais para o acabamento da própria figura que ele se criou, refletindo, toda ela, a fisionomia de quem se sente à altura do seu destino. Claro, não se remira um corcunda nem se contempla um morfético...

Feliz de quem, ao fazer tal exame, não descobre em si protuberância, aleijão, defeito ou cicatriz...  Ora, o glorioso guerreiro, tendo-se revestido sempre da mais nobre e admirável forma de homem, que mal fazia assumisse essa atitude de jactância, a exibir quanto valeu e quanto praticou?
Ides vê-lo no estado apolíneo de embelezo, em uma por uma das suas obras.

No Dever do Momento, assim se exprime:

“Aos vinte e poucos anos eu já comandava na guerra e no mar os principais navios da armada.
Aos trinta e cinco eu era general; como general naveguei, tive uma missão diplomática no cumprimento da qual fiz a volta do globo, tomei parte nos conselhos superiores da marinha, administrei o seu principal arsenal e comandei a mais bela esquadra que se reuniu no Brasil.”

Na Primeira Missão Brasileira à China, diz:

“Convém notar que eu não era um simples passageiro naquele navio1 como os outros membros da missão; pois me fora concedida, cumulativamente, uma missão do Ministério da Marinha, relativa aos fins de instrução da viagem; o que significava partilhar eu da responsabilidade da navegação e da disciplina de bordo. É certo que a minha confiança na perícia do comandante era absoluta e que o numeroso estado-maior se compunha de oficiais tão capazes e zelosos como raramente se terão achado reunidos em um vaso de guerra de qualquer marinha; mas essas circunstâncias não me eximiam dos deveres que me impunha a minha insígnia de chefe, içada no mastro grande da corveta.”

E o sinal de orgulho não está apenas nesta última frase que importa grifar, senão também no emprego do substantivo general, ao invés de almirante, e no advérbio cumulativamente, que revela a vaidade do bom navegador, do excelente mareante, do profissional competente, que fazia questão de ser.
Na Guerra do Paraguai, recorda:

“O comandante do Barroso,2 em sua parte da passagem de Humaitá, quando ainda não tinha notícia alguma das nobres palavras de Ferragut, exprimindo-se quase que nos mesmos termos a respeito de Echebarne, e aliás não se tratava de um passo em que um comandante resoluto não pudesse por si mesmo dirigir o seu navio.”

Isto é, o nosso herói nas conjunturas do chefe americano teria prescindido do prático, pois que a passagem não seria assim tão dificultosa... Todavia, pela feliz coincidência do elogio ao seu auxiliar, as suas palavras chegaram a se sublimar: – foram nobres.
Na Organização Naval:

“Não sou pessimista, nem despeitado; ninguém fez carreira mais feliz do que eu, na nossa ou em outra qualquer marinha.”

E, finalmente, no seu Discurso Acadêmico se esculpe por esta forma:

“Senhores, a escada pela qual me elevei de aspirante a almirante foi íngreme e acidentada como uma enxárcia já rota depois do combate, agitada pela fúria das ondas e açoitada pelo furacão.
A mesma rapidez da minha ascensão abrigava-me a esforços desmedidos para firmar-me em cada degrau galgado, onde a minha pequena individualidade ‘ficava em evidência crescente’.”

Perdoai-me os grifos, porquanto há que confessar aqui que essa exteriorização de soberba já se vai revestindo de um aspecto comovedor e patético, quando se vê, em todo o espesso volume das suas Ordens do dia, que ele ajunta, tão-só, à enérgica assinatura do moço comandante Artur Silveira da Mota, uma tremula e simples rubrica: “Confere. A. de Jaceguai, almirante”, e sem mais nada!... Para que comento a palavras tais?

Aqueles dizeres de arvoada redação, vincados no papel, entre dois canhoneios, ultimamente lhe passariam e repassariam por diante da imaginação como acordes de uma harmonia extinta; ecos de apartada mocidade no smorzar de uma existência; painel esfumado de batalhas a se desenrolar por entre cílios orvalhados de saudade.

E, assim, ao sentir essa leve, suavíssima pena de só gozar na lembrança, teria quedado, longas horas a fio, no silêncio das noites, cotovelos sobre as laudas esmarelidas, a olhar sem ver as altas nuvens viajeiras, símbolo fiel das coisas transitórias...

Aquelas páginas, para outrem inexpressivas e toscas, viviam de novo os fatos representativos da sua escalada, enfunando-lhe ainda o peito de satisfação cívica e enlevo patriótico, quando não vinham acordar visões deslumbradoras, que, a sorrir, dedo ao lábio, se levantavam de manso para renovar antigas carícias e repetir distantes afagos com que lhe achegavam ao regaço a fronte escandecida nas pelejas.

Era que tais recordações lhe aqueciam as artérias já esfriadas pela senectude fazendo irradiar dos olhos amortecidos na albugem as chispas do orgulho indomável. Era que a esse regardo vuluptuoso o vigor lhe tornava aos músculos, aprumando-lhe o busto, que já a idade ia desarvorando. E quantos de nós poderiam descortinar igual passado? Se, por decoro pessoal, cuidais do corpo, e, por decência, apurais o vestuário, e, por sociabilidade, vos esmerais no trato; que mal advirá em que conteis as vossas façanhas, mostreis o que souberdes, desvendeis os sentimentos aos que vos sobreviverem? Se caímos, tanta vez, em erro na apreciação dos próprios atos, que conseguirão adiantar pretendidos psicólogos relativamente a alheios intuitos?

Arrastado o raciocínio até aí, força é concluir, então, que Jaceguai foi grande pelo amor de si mesmo. Por ele elevou o coração, alargou a inteligência, gastou a energia, trabalhando a prol do bem público, a fim de merecer o respeito os homens.

Durante toda a existência nada mais fez do que se preparar para a morte, consoante a velha sentença de Eclesiastes: – “A boa vida tem um certo número de dias, mas o bom nome permanecerá para sempre.” – Sem alinhar pelotões disciplinares de datas e só com repetir conceitos de esperto navegador, abri os vossos olhos a sua biografia, expondo-vos num aro de ouro o seu retrato moral.
Quanto à figura física, apraz-me trazer reminiscências de adolescente, testemunhos da fascinação por ele exercida sobre s gerações, que iniciavam a carreira das armas no campo movediço das ondas.
Lembra-me bem. Ia já em meio o décimo primeiro mês de 900.

Numa rútila manhã de sol, chamadas à formatura por apressado toque de corneta, as classes de alunos da Escola Naval estendiam-se, ondulando para a pronta retificação a linha sem deflexões, sob a cobertura do passadiço, que liga dois corpos do edifício.
Havia a expectativa dos casos insólitos: mais aprumo na postura, mais cuidado no uniforme, mais curiosidade no espírito.

A mudança de Diretor que, na monotonia familiar do internato, era sempre fato ponderável, desta vez subia de ponto, por se saber viria comandar-nos um varão forte, herói autêntico, nimbado de lendas.
Com o peito impante de brio militar e coração aos baques, foi que vi aparecer quem primeiro humilhou a cruenta majestade da Sebastopol americana. A sobrecasaca desabotoada sobre o colete branco voejava, panejando à brisa, luzindo nos botões dourados, o que contrastava com a tranqüilidade perfeita daquela fisionomia.

Nada de entono marcial; arrastava-se, talvez a afetar fadiga insanável, apoiando à grossa bengala, que aos meus olhos fantasistas em tal mão àquela hora, tomava o feitio aristocrático de um bastão ducal.
Oh! Ele bem sabia, ao compor o seu tipo, como ferir melhor a nossa imaginação!

À vista do rijo disciplinador, cujas tradições de austeridade pairavam ali ameaçadoramente, eu rememorava os seus feitos, parecendo que a ilha toda se transfigurava, e a luz, em vibrações de vitória, chamejava em revérberos fulvos nas clarabóias da cidade, longe; palhetava de prata as maretas, em torno; faiscava em fulgores bélicos de lâminas nas palmas dos coqueiros, perto! Até o mastro decrépito da Amazonas,3 que salváramos do alvido, vibrava empavesado como no dia grande do Riachuelo!
Ele, então, passou, vagarosamente; passou, pela curtida pelas soalheiras do mar, rosto alongado e emagrecido pelas vigílias do estudo e da guerra, mão encordoada de velas, olhar longínquo; alto apesar da negligência do porte; musculoso, ainda que delgado; tardio de gestos, embora ativo e diligente.

Em pouco víamos o chão sáfaro da insula revolvido pela terraplanagem; ampliavam-se alojamentos, erguiam-se oficinas, ruíam brutos paredões coloniais; e, para as bandas do nordeste, elevou-se pitoresca vivenda a dominar um jardim incipiente, que em breve entrou a sorrir pelos primeiros brotos.
Num ápice, mudava-se a topografia do sítio, modificando-se a feição daquele milenar acidente geográfico!

E, desde o quarto d’alva até à oração melancólica do silêncio, avistava-se aquele vulto acurvado, e a ir e a vir, em todas as direções, assim vagaroso, assim lasso, a guardar, entanto, na carcaça inválida energias imprevisíveis.
Se a ancianidade já lhe arrefecera o sangue, diziam que ainda não perdera o gosto das emoções fortes do acaso e das aventuras arriscadas do azar... Até da sorte queria ele sair triunfante...
Esse era o homem.

***

Convencido de que o Brasil só pela força das frotas poderá conservar a sua grandeza territorial, delineou o projeto de um sólido edifício em substituição a esse amontoado incongruente e obsoleto de decretos, regulamentos e disposições legislativas, que ora formam a anarquia organizada da nossa marinha...
Nele pugna pelo estabelecimento de estações navais ao Norte, ao Centro e ao Sul do país, como escolas de disciplina e instrução prática.

Condena a imobilidade nos portos, por dissolvente de estímulos, a produzir o rebaixamento do nível moral e da aptidão técnica, com transformar em burocracia a mais complexa das profissões.
Critica acerbamente a praxe indecorosa das gratificações extraordinárias e ajudas de custo, como solicitação ao zelo dos oficiais. Manifesta-se partidário o Ministério civil, como entrave à ação dos satélites e das camarilhas. Aconselha a unidade nas funções inerentes ao comando em chefe. Censura tanto a concessão dada aos navios estrangeiros para a navegação de cabotagem, como a abertura dos nossos rios às naves de outras bandeiras. Profliga com desabrimento a política. Exerce com dignidade o magistério. Fiscaliza com fervor construções em estaleiros longínquos. Levanta com probidade minuciosas plantas hidrográficas, doido por ver que se mareia na costa brasileira sob indicações de cartas inglesas. Sugere, para simplificar, uma nova escala de postos; demonstra a necessidade de ser ministrado ensino menos teórico, para melhor aproveitamento dos alunos navais; e mostra os benefícios do curso especializado para o oficial da armada.

Assim, basculha e ilumina todos os departamentos da marinha; cruza e sonda todos os mares da terra; escruta e observa o céu dos dois hemisférios. Ao arrojo alia a competência; ao preparo ajunta a iniciativa; ao natural ardor do seu temperamento reúne a acuidade de percepção dos fenômenos político-sociais. Pelo privilégio desses dons foi que ocupou por longo tempo, com invejável argúcia, o cargo diplomático de secretário do comando em chefe da esquadra de operações; que no passo temeroso de Humaitá o ajoujo dos navios sob o seu mando apenas sofreu o embate de seis disparos, que, da transposição dos ásperos anfractos da desconfiança oriental, nos trouxe a assinatura de Li-Hung-Chang, num tratado de amizade com a China.
Este, senhores, era o profissional.

E se, porventura, desejardes conhecê-lo, melhormente, sob tal ponto de vista, não tereis mais do que procurar os discursos em que Rui Barbosa defendeu, no Senado, a sua volta ao serviço ativo da Armada.
Palavra que não conheço mais belos esmaltes.

***

Por que me não alongue muito dos bons preceitos acadêmicos, não incorrerei na falta de elidir a parte anedótica da praxe, e que em sendo bem curta, surge aqui tão graciosa e taful, quão sisudo e grave é o narrador, que a endossa.
Do punho ilustre de José Veríssimo saíram as preciosas linhas abaixo:

“E não só a história militar, senão a política também lhe é familiar; e não somente a história, e as ciências e as artes que mais lhe importa saber como profissional, mas as literaturas antigas e modernas, Homero, Virgilio, Camões, os grandes poetas da navegação e do mar, e Shakespeare e Molière e toda a moderna literatura francesa.
Coisa espantosa, conhece mesmo os nossos! Um dia apareceu com um volume de Gonçalves Dias; tivera uma questão com alguém sobre uns versos do poeta; levava o livro ao contendor para provar-lhe que não tinha razão.”

Haveis de concordar que colocando tais conceitos e relatos como anedota, não iludi de todo a vossa expectativa risonha...
***
A “Carta aberta” a Joaquim Nabuco, concitando-o a trabalhar para a sua terra e em prol da sua gente, causou aturdimento à roda letrada pelo escorreito da forma, altitude do pensamento e agudeza da observação. E tão persuasiva foi ela, na sua rudeza marinheira, que o elegante tribuno invocado em pouco se rendia às verdades do patriótico reclamo. De tal maneira lhe é o estilo imaginoso e seguro que a literatura das suas obras se torna sempre saboroso aos próprios leigos do assunto sobre que discorre.
Depois de ter versado todas as narrativas de guerra e esmerilhado todos os estrategistas, entendeu, como vistes em a citação do inolvidável critico, de se abeberar nas literaturas clássicas, e, com tanto gáudio, que os seus escritos ficaram marchetados de citações. E, se não, vejamos:

“A nação deve ser para as suas esquadras que voltarem desmanteladas aos portos o que a terra era para o Anteu da fábula, uma fonte copiosa de energias.
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O justo ressentimento do Sr. Custódio de Melo por ter sido compelido a deixar a pasta que sobraçara como premio da sua iniciativa arrojada no 23 de novembro, não era a menor das dificuldades com que teria de enfrentar o novo Ministro da Marinha. Aquiles não perdoa a Agamenon ter-lhe arrebatado a adorada Briséis.” – (Da Organização naval).

Sobre a batalha de Riachuelo assim se exprime:

“Desde esse momento um ardor aquiliano inflama o peito do velho guerreiro; seus olhos dardejam relâmpagos, através da nuvem da sua longa barba branca agitada pelo vento; a lança que só ele pode manejar como o herói de Homero, é a proa da Amazonas, e Gustavino é o seu Automedonte.”

Narra a abordagem ao seu navio pela forma pitoresca seguinte:

“Não faltou à Legião Voga-Avante o camalote traiçoeiro, à meia-noite, para mascarar-lhe o ataque; nem o Barroso repeliu precipitadamente os visitantes noturnos; ao contrário, deixou que se aproximassem, não lhes vedou o saltarem no convés, como Ulisses, prudente, aguardando que se reunissem todos os pretendentes no átrio do palácio de Penélope, antes de empunhar suas armas vingadoras, mostrou-lhes que ali não penetrariam com um pensamento afrontoso, senão para encontrar a morte.” – (Guerra do Paraguai).

Tem tão acentuado o pendor das comparações que não raro chega a conseguir enargueias:

“Suprima-se o elo da marinha entre os Estados, e a União se desmantelará como uma barrica da qual se tirarem os arcos.”
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“A política é uma carreira que para o maior número assemelha-se aos esportes da montanha russa, em que o veículo começa descendo para poder elevar-se.”
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“A história de todas as civilizações é como a formação dos rios; antes de acharem o seu leito são torrentes errantes que se precipitam, se cruzam, se chocam, se apertam, se espraiam, percorrendo largos trechos com aparência de um curso normal para irromperem, subitamente, através dos aluviões em direções divergentes, antes de confluírem para o vale em que encontram afinal o seu álveo definitivo.”

Explicando o desmoronamento da Monarquia, depois de dizer que – “na questão abstrata de formas de governo, nunca compreendeu que um espírito cultivado pudesse ter preferência por esse ou aquele regímen” – escreve, talvez com humorismo:

“Por um fenômeno, que não sei se algum dia se chegará a se explicar, cientificamente, o sentido dominante na raça mestiça americana é o da igualdade. Como conciliá-lo com a afeição à monarquia, que é o privilégio por excelência?”
NOTA: – Declaração sob o titulo: “O vice-almirante reformado Barão de Jaceguai:
“Sem renegar os títulos honoríficos que a monarquia me conferiu, os quais recebi com honra, como Nelson disse das suas condecorações, no momento em que as punha ao peito, antes de travar a batalha de Trafalgar; mas como aceitei o regímen comum estabelecido pela nova constituição política de minha pátria, declaro que de ora em diante assinar-me-ei.
Artur de Jaceguai.
Mogi das Cruzes, 5 de março de 1891.”

Pintor de quadros, atrai pela grandeza a magnitude das perspectivas desvendadas, como verdadeiramente interessa pela exatidão dos pormenores. Artista – por que o não dizer? – sem que lhe falte a faculdade de movimentar as grandes massas, tem a virtude de realçar os protagonistas da tragédia, sem esquecer a conveniente graduação dos valores.
Tampouco lhe faleceu jamais, ainda no estado dionisíaco da luta, a calma do analista. A essa qualidade foi que pôde conduzir o navio do seu mando rio acima, a beirar os barrancos da cidadela rugidora, à sombra do sinistro arcual da trajetória das balas, quando o inimigo o esperava ao largo.
Em muitos pontos empolga. Ouvi-o no transe decisivo do arremesso:

“A noite de 18 de fevereiro cerrara-se sem alterar a limpidez da atmosfera do dia abrasador que a precedera; o brilho das estrelas, porém, não penetrava nas lôbregas sombras das alterosas matas por entre as quais deslizava silenciosamente a massa líquida do rio. No porto Eliziário, logo ao escurecer, os monitores manobraram para atacar aos seus matalotes, na formatura ordenada. Concluída a faina, formadas as guarnições por quartos, os comandantes ditaram suas ordens sobre postos de combate e sobre as eventualidades possíveis na ação que se ia empenhar. O comandante do Barroso terminou as últimas disposições, dirigindo aos seus oficiais e marinheiros as seguintes palavras: – “Agora, avante, meus bravos! Em Curupaiti, de dia, apenas recebemos cinco balas, quando os outros receberam cinqüenta; pois bem, em Humaitá, de noite, arranjaremos isso por menos. Confiai em vosso comandante como ele confia em vós.”

Às 11 horas a descarga estridente do vapor dos seis encouraçados da divisão avançada indicava aos paraguaios, vigilantes na margem do rio, alguma coisa de extraordinário. Meia hora depois o clank-klank das amarras denunciava que os navios se iam mover; e, logo, um foguete, repetido de piquete em piquete até Humaitá, seguido de outro sinal luminoso mais intenso, deu aos nossos marinheiros a certeza de que não teriam a vantagem de surpreender o inimigo. Tanto melhor, houve quem dissesse, não passaremos às escuras.

À meia-noite, em ponto, o Barroso e o Rio Grande já seguiam avante, à meia-força, por não terem ainda desferrado os demais. À uma hora e trinta estava o Barroso pelo través do navio almirante, mas não se lobrigavam ainda outros vultos pela sua popa. O almirante ordenou-lhe parasse e guardasse os seus companheiros. Às duas horas e quarenta e cinco minutos, como estes ainda não aparecessem e a lua nascente já mostrasse a sua claridade, por trás da mata do Chaco, o comandante do Barroso4 mandou por um oficial cientificar ao almirante que, retardados os seus companheiros, estava no entanto pronto a avançar, com a máxima pressão nas caldeiras dos dois navios. Nesse entrementes, distinguiu-se uma luz movendo-se sobre a água: devia ser um dos retardatários.

O Barroso pôs-se logo em movimento, sem parar sequer para receber o oficial que voltava da capitania, o qual dificilmente conseguiu atracar ao costado mediante um cabo que se lançou. O almirante reiterava a ordem de esperar, mas o Barroso não mais se deteve e investiu o passo só com o Rio Branco. Eram 3 horas. Os paraguaios contavam, provavelmente, que, a realizar-se o ataque, os navios se apresentassem a meio do rio; o Barroso, porém, prevalecendo-se da grande enchente, surgiu-lhe perto da Ponta de Pedras, de onde fez rumo a se manter tanto quanto possível próximo ao barranco. Não tardou um minuto o fogo rolante de todas as bateriais sobre os dois navios, sem demora respondido pela esquadra de proteção.

A primeira bala que feriu o Barroso, na face de vante da casamata, trazia tamanha energia acumulada, produziu choque tão violento, que se diria ter sido lançada com a intenção de fazer o navio estacar. O homem do leme, atordoado, abandonou a roda de governo por alguns segundos; a trepidação da muralha encouraçada em que se deu o impacto do projétil foi tão forte, que causou uma contusão no braço que o comandante tinha apoiado no batente da portinhola de vante, por onde dirigia o navio com o prático. Em certo sentido, a metáfora favorita das ordens do dia do almirante – das abóbadas de balas – podia aplicar-se aos dois avios exploradores, porque eles prosseguiam incólumes na sua rota, cruzando-se por cima deles toneladas de projéteis arremessados das bateriais inimigas e dos encouraçados que os canhoneavam.

No meio do troar de mais de 300 canhões em ação, ouvia-se de bordo, distintamente, o estrépito das balas que devastavam a floresta do Chaco. É possível que o clarão das gigantescas fogueiras que, por encanto, se acenderam na margem oposta para iluminarem o passo, e bem assim os reflexos do fogo que pareciam abrasar a superfície das águas, tivessem prejudicado a visão dos artilheiros paraguaios, de modo a poder-se explicar tão grandes erros de pontaria. O que é certo é que, depois de quase extintas as fogueiras, com uma luz mais suave, eles acertaram a valer nos navios que passavam mais tarde.

No trajeto do Barroso e Rio Grande, desde a altura da Ponta /de Pedras até o canal junto do Barranco, apenas seis balas tocaram os dois navios.
Em menos de 15 minutos estavam debaixo da bateria Londres, à pequena distância do barranco. Foi o momento crítico do trajeto. Chegados ao ponto em que deviam manobrar para contornar o barranco, o fio mais intenso da corrente apanhou-lhes a proa e a ação do leme tornou-se impotente para vencer a inércia a dupla massa liquida impelida sobre a margem. Continuando a seguir avante, em poucos minutos encalhariam de proa; parando ou andando para trás iriam ensacar-se nas revessas da enseada formada pela Ponta de Pedras, donde dificilmente poderiam sair; mas, graças ao tubo acústico, disposto entre os dois navios, o comandante do Barroso pôde manobrar com a prontidão que o caso exigia, mandando parar e logo funcionar para trás as máquinas do monitor – as do seu navio sempre trabalhando para diante, a toda força, conseguindo assim, sem se imobilizar um só instante, aproar à corrente e em seguida fazer rumo normal ao meio das cadelas.

Prosseguia o Barroso com extraordinária velocidade que o seu hábil maquinista sabia imprimir-lhe em tais ocasiões e já estava próximo às correntes quando uma bomba de grosso calibre, explodindo ao cair n’água entre a proa do monitor e o seu costado, levantou imensa coluna líquida que alagou o convés de ambos. Só o comandante e o prático Echebarne, que tinham os olhos cravados para a frente, atribuíram à sua verdadeira causa aquele espetaculoso efeito; para os demais tripulantes fora um torpedo, e, no pânico de que muitos se possuíram, indiferentes às balas, surdiam das escotilhas acreditando que os navios se iam submergir. O valente Antônio Joaquim saiu da torre do seu monitor para a tolda pela estreita portinhola do canhão, o que ele mesmo dizia nunca ter antes imaginado fosse possível para um homem da sua corpulência.

Alguns minutos mais e o foguete lançado do Barroso indicava que ele já havia transposto as cadeias, e que não havia em Humaitá obstáculos insuperáveis para a divisão avançada. Eram 3 horas e 30 minutos da manhã. Parou o Barroso dois quilômetros acima das cadeias e ali esperou os outros navios. Às 4 horas e 45 minutos surgiu o Bahia. O comandante do Barroso não teve certamente em toda a sua vida um momento mais feliz do que aquele em que abraçado pelos seus dedicados amigos Echebarne e Antônio Joaquim foi o objeto de aclamações delirantes dos seus oficiais e marinheiros...”

Basta, senhores; a narração continua assim animada, assim comovedora, assim grandíloquo, de sorte que, ao cabo, tereis na verdade o desejo de exclamar como certo crítico:

– Que ce sabreur savait écrire!
– Porque ele podia jactar-se com o cantor máximo do mar:
Nem me falta na vida honesto estudo.
Com longa experiência misturado,
Nem engenho, que aqui vereis presente,
Cousas que juntas se acham raramente.
Dando-se inteiro ao seu país, não descansou o corpo ao serviço da guerra, nem feriu o espírito nas tarefas da paz.

Razão de sobra, pois, assistia a Platão, quando afirmava que um dia, uma hora ou um momento só de heroísmo, vale mais do que um século de prudência vulgar ou de virtude trivial.
Para que havemos os poetas de negar que a crença e o amor da Pátria são os propulsores da bravura? Fiquemos que somente um impulso sobrenatural e invencível será capaz de arrancar o homem ao instinto de conservação. Seja este impulso a confiança na grandeza dos destinos da terra nativa.
A faculdade de admirar é a essência mesma do meu temperamento e é por isso que, diante dos fastos nacionais, que a justiça das nobres causas criou, de façanhas como esta, que a consciência do dever militar sublimou, chego às vezes a chorar comovidamente, e sem pejo, as minhas melhores lágrimas de homem.

Glória, pois a ti, Barão assinalado, que cumpriste a missão a missão de ser forte dentro da fé!
Glória, pois a ti, mar imenso, que nas tuas tormentas temperas o aço espelhante dessas almas rígidas!
E a ti, Pátria querida, cuja formosura faz nascer nos teus filhos o denodo consciente ou delirante para a tua defesa, glória! Excelsior!