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Fernando de Azevedo

A ESCOLA E A UNIVERSIDADE

Ora, assentada a finalidade da educação e definidos os meios de ação ou processos de que necessita o indivíduo para o seu desenvolvimento integral, ficam fixados os princípios científicos sobre os quais se pode apoiar solidamente um sistema de educação. A aplicação desses princípios importa, como se vê, numa radical transformação da educação pública em todos os seus graus, tanto à luz do novo conceito de educação, como à vista das necessidades nacionais. No plano de reconstrução educacional, de que se esboçam aqui apenas as suas grandes linhas gerais, procuramos, antes de tudo, corrigir o erro capital que apresenta o atual sistema (se é que se pode chamar sistema), caracterizado pela falta de continuidade e articulação do ensino, em seus diversos graus, como se não fossem etapas de um mesmo processo, e cada um dos quais deve ter o seu "fim particular", próprio, dentro da "unidade do fim geral da educação" e dos princípios e métodos comuns a todos os graus e instituições educativas. De fato, o divórcio entre as entidades que mantêm o ensino primário, vai concorrendo insensivelmente, como já observou um dos signatários deste manifesto, "para que se estabeleçam, no Brasil, dois sistemas escolares paralelos, fechados em compartimentos estanques e incomunicáveis, diferentes nos seus objetivos culturais e sociais e, por isto mesmo, instrumentos de estratificação social".

A escola primária que se estende sobre as instituições das escolas maternais e dos jardins de infância e constitui o problema fundamental de Democracias, deve, pois, articular-se rigorosamente com a educação secundária unificada, que lhe sucede, em terceiro plano, para abrir acesso às escolas ou institutos superiores de especialização profissional ou de altos estudos. Ao espírito novo que já se apoderou do ensino primário não se poderia, porém, subtrair a escola secundária, em que se apresentam, colocadas no mesmo nível, a educação chamada "profissional" (de preferência manual ou mecânica) e a educação humanística ou científica (de preponderância intelectual), sobre uma base comum de três anos. A escola secundária deixará de ser assim a velha escola de um "grupo social", destinada a adaptar todas as inteligências a uma forma rígida de educação, para ser um aparelho flexível e vivo, organizado para ministrar a cultura geral e satisfazer as necessidades práticas de adaptação à variedade dos grupos sociais. É o mesmo princípio que faz alargar o campo educativo das Universidades, em que, ao lado das escolas destinadas ao preparo para as profissões chamadas "liberais", se devem introduzir, no sistema, as escolas de cultura especializada, para as profissões industriais e mercantis, propulsoras de nossa riqueza econômica e industrial. Mas esse princípio, dilatando o campo das Universidades, para adaptá-las à variedade e às necessidades dos grupos sociais, tão longe está de lhes restringir a função cultural que tende a elevar constantemente as escolas de formação profissional, achegando-as às suas próprias fontes de renovação e agrupando-as em torno dos grandes núcleos de criação livre, de pesquisa científica e de cultura desinteressada.

A instrução pública não tem sido, entre nós, na justa observação de Alberto Torres, senão um "sistema de canais de êxodo da mocidade do campo para as cidades e da produção para o parasitismo". É preciso, para reagir contra esses males, já tão lucidamente apontados, pôr em via de solução o problema educacional das massas rurais e do elemento trabalhador da cidade e dos centros industriais, já pela extensão da escola do trabalho educativo e da escola do trabalho profissional, baseada no exercício normal do trabalho em cooperação, já pela adaptação crescente dessas escolas (primária e secundária profissional) às necessidades regionais e às profissões e indústrias dominantes no meio. A nova política educacional, rompendo de um lado, contra a formação excessivamente literária de nossa cultura, para lhe dar um caráter científico e técnico, e contra esse espírito de desintegração da escola, em relação ao meio social, impõe reformas profundas, orientadas no sentido da produção, e procura reforçar, por todos os meios, a intenção e o valor social da escola, sem negar a Arte, a Literatura e os valores culturais. A Arte e a Literatura têm efetivamente uma significação social, profunda e múltipla; a aproximação dos homens, a sua organização em uma coletividade unânime, a difusão de tais ou quais idéias sociais, de uma maneira "imaginada", e, portanto, eficaz, a extensão do raio visual do homem e o valor moral e educativo conferem certamente à Arte uma enorme importância social. Mas, se, à medida que a riqueza do homem aumenta, o alimento ocupa um lugar cada vez mais fraco, os produtores intelectuais não passam para o primeiro plano senão quando as sociedades se organizam em sólidas bases econômicas.

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Nessa superficialidade de cultura, fácil e apressada, de autodidatas, cujas opiniões se mantêm prisioneiras de sistemas ou se matizam das tonalidades das mais variadas doutrinas, se tem de buscar as causas profundas da estreiteza e da flutuação dos espíritos e da indisciplina mental, quase anárquica, que revelamos em face de todos os problemas. Nem a primeira geração nascida com a República, no seu esforço heróico para adquirir a posse de si mesma, elevando-se acima de seu meio, conseguiu libertar-se de todos os males educativos de que se viciou a sua formação. A organização de Universidades é, pois, tanto mais necessária e urgente quanto mais pensarmos que só com essas instituições, a que cabe criar e difundir ideais políticos, sociais, morais e estéticos, é que podemos obter esse intensivo espírito comum, nas aspirações, nos ideais e nas lutas esse "estado de ânimo nacional", capaz de dar força, eficácia e coerência à ação dos homens, sejam quais forem as divergências que possa estabelecer entre eles a diversidade de pontos de vista na solução dos problemas brasileiros. É a Universidade, no conjunto de suas instituições de alta cultura, prepostas ao estudo científico dos grandes problemas nacionais, que nos dará os meios de combater a facilidade de tudo admitir; o ceticismo de nada escolher nem julgar; a falta de crítica, por falta de espírito de síntese; a indiferença ou a neutralidade no terreno das idéias; a ignorância "da mais humana de todas as operações intelectuais, que é a de tomar partido", e a tendência e o espírito fácil de substituir os princípios (ainda que provisórios) pelo paradoxo e pelo humor, esses recursos desesperados.

(A reconstrução educacional no Brasil, 1932.)

 

A LITERATURA INFANTIL NUMA PERSPECTIVA SOCIOLÓGICA

Nas antigas sociedades, de estrutura "sagrada" ou fechada, toda a literatura, não escrita mas divulgada pela tradição oral, com que se entretinham crianças, vinha de baixo para cima ou ascendia das fontes populares, anônimas, em que se misturavam, nas criações coletivas, a fantasia e a história, a verdade e a imaginação. Ela entrava como um dos elementos da educação, em que, como em toda a educação digna desse nome, se distinguiam, - e a distinção está já em Platão, como observa Marrou, - dois aspectos: "uma técnica pela qual a criança é preparada e progressivamente iniciada num modo de vida determinado, e uma ética, alguma coisa mais do que uma moral de preceitos: um certo ideal de existência, um tipo ideal de homem a realizar". Mas, ingênua de pensamento, essa literatura que é simplicidade e pureza, quase inocência, pelas suas origens folclóricas, difundia-se à força de entrar mais ao fundo do coração da criança.1 Proveniente desse vasto mundo social inorganizado?, em que se elaboram as criações folclóricas, não saía dele, pois, quando se comunicava às crianças. Os que a transmitiam, adultos, sem dúvida, mas já incorporados à camada social organizada, pelas suas concepções e estilos de vida, eram, pelo geral, pessoas simples, mesmo quando de linhagem nobre, avós e mães, cuja educação se diferenciava profundamente, em natureza e grau, da que se havia dado aos homens, e, mais simples ainda, como escravas e mucamas. Mas, nas sociedades de hoje que deram origem aos livros de crianças, sociedades de estrutura "secular" ou acessível, toda essa corrente de literatura infantil já flui de cima, se não das elites intelectuais, de uma parte mais ou menos culta dessas elites, e é canalizada para as crianças diretamente pelos livros. As mães, avós e canalizada para as crianças diretamente pelos livros. As mães, avós e domésticas já quase não têm tempo nem paciência para lhes contar histórias... Quando Augusto Comte ainda sonhava confiar à mãe a direção dos primeiros dos dois períodos em que se devia estender a duração normal da educação nessa fase, até aos 14 ou 15 anos, e pretendia que a educação "não deixasse nunca de ser exclusivamente familiar", não havia certamente previsto nem a penetração do mundo de crianças pela literatura infantil nem a difusão crescente da educação popular nem a participação das mães, fora de seus lares, em toda espécie de atividades econômicas.

Mas, no desenvolvimento se não nas próprias origens da literatura infantil está outro fato que não contribui menos que essas causas propriamente sociais, para fazer surgirem e se multiplicarem, no acervo bibliográfico de cada país, os livros de crianças. Com o impulso que tomaram, desde o século XVIII, os estudos pedagógicos, e, a partir do século XIX, o progresso das ciências humanas, a criança passou a ser objeto constante das reflexões de filósofos e educadores e das observações e pesquisas científicas de especialistas que trabalham no campo de duas ciências novas e vizinhas: a sociologia e a psicologia. Os olhos do homem que, através de séculos, se mantiveram distraídos desse mundo misterioso das crianças e, apesar de tão próximo de nós e intimamente associado à nossa vida, tão distante ("afastado por presença excessiva", como diria Paul Valéry), fixaram-se afinal sobre elas, curiosos e inquietos, com tanto empenho em conhecê-las e descobri-las que, a poder de se sentirem observadas, parece que já começaram a retrair-se, assustadas, continuando um mistério à volta de nós... Foi como se alguém entrasse ou se projetasse um jorro de luz intensa num viveiro de pássaros, na calada da noite. As doutrinas pedagógicas, desde Comenius, Froebel e Pestalozzi, precursores do movimento de idéias que se desenvolveu mais tarde, nos séculos XIX e XX, já representavam, pela maior parte, "rupturas com os sistemas estabelecidos, críticas de seu espírito e de seus métodos, esforços para lhes provocar a renovação. São obras de pensadores (escreve René Hubert), prosseguindo suas meditações à margem de seu meio, mesmo se lhe sofrem a influência, e mais inclinados a recolher as aspirações que o agitam do que a refletir as tradições que o mantêm. Os sistemas solidamente estabelecidos não têm necessidade de justificação... É somente quando as instituições antigas começam a desagregar-se e a perder sua alma que surgem as doutrinas novas, trazendo, com elas, uma nova filosofia do homem". Se acrescentarmos, pois, a esse movimento de idéias pedagógicas, tão intimamente ligado às modificações de estrutura econômica e social, o extraordinário progresso da psicologia da criança e da sociologia, com suas contribuições sumamente importantes ao estudo dos fatos de educação, já nos será fácil compreender o crescente interesse científico pela criança que, com seus problemas, passou a atrair a atenção de todos e a construir, nos grandes centros culturais, o objeto de análise e de investigações aturadas.

É desse interesse, cada vez mais vivo, pela criança que começaram a participar escritores, dando-nos, já no século XVIII e sobretudo a partir do século XIX, livros preciosos que se tornaram clássicos, embora alguns como o de Perrault e os dos Irmãos Grimm e outros não tenham sido originalmente destinados ao público infantil, e, mais tarde, nestes últimos 25 anos, uma produção tão numerosa como desigual. Entre os primeiros, os contos de Perrault, livro pioneiro do século XVII, os de Grimm e os de Andersen, as Aventuras de Robinson Crusoe, de Daniel de Foe, as Viagens de Gulliver, de Swift, os de Júlio Verne, os da Condessa de Ségur, a Alice nos País das Maravilhas, de Lewis Carroll, as Aventuras de Pinocchio, de C. Collodi, correram o mundo em todas as línguas e se tornaram, alguns deles, os clássicos da infância ou da adolescência. Abertas a esse novo gênero de atividade literárias as fontes que se encontravam fechadas, parece que nada já poderá estancá-las. É uma corrente contínua que borbulha por toda parte e em que a uma quantidade enorme de livros, de sucesso passageiro ou de todo o ponto medíocres, se misturam algumas jóias literárias e pequeninas obras-primas. Só o Catálogo (Beaux-Livre, Belles-Histoires), publicado em 1938 pelas Éditions Bourrelier, assinala 500 livros de crianças, grupados segundo o gênero, a idade do leitor e o nome do autor, com a indicação das diferentes edições. No entanto, o que se oferece hoje ao público infantil de todos os países, em obras originais ou em traduções, não espanta apenas pelo número mas pela grande variedade de tipos de publicações. Multiplicam-se os livros de contos e lendas; surgem os romances, como Emílio e os Detetives, de Erich Kästner, A estranha volta através da América, de Upton Sinclair, em que "a fantasia humorística do autor une, com extrema habilidade, a feeria à sátira contemporânea"; já aparecem os romances de criança, de assunto social e moderno, os romances de tese e mesmo os que se destinam a iniciar os jovens leitores na luta de classes; acumulam-se os livros de história e os de poesias e canções; e, ao lado de adaptações primorosas das obras poéticas da Antiguidade, como a Ilíada e a Odisséia, abrem-se nas livrarias, para prazer dos olhos, grande livros em belo papel, ilustrados a cores vivas e frescas, que são como que objetos preciosos pela própria beleza de sua apresentação.

Ainda nos meados do século XIX a situação não mudara muito sob esse aspecto. Pelo mundo infantil circulava sobretudo, com seu poder de sedução, a grande cultura popular, transmitida sem livros, sem escolas, pela tradição oral. Poucos ainda os livros de crianças. O que, em geral, se lia ou se lhes dava a ler, era a história sagrada e contos populares. Henrik Ibsen, escrevendo em 1865 de Roma, onde então se achava, à sua sogra Madalena Thoresem, refere-se, no fim da carta, ao pequenino Sigurd, seu filho. "Sigurd (observa o grande dramaturgo norueguês) já sabe ler; todos os dias lê contos e lendas populares. Se pudesses, por intermédio de qualquer viajante, enviar-nos uma história sagrada, seria um verdadeiro benefício." (Carta a Madalena Thoresen, datada de Roma, aos 3 de dezembro de 1865, in Cartas de Henrik Ibsen a seus amigos).

(A educação e seus problemas, 1937.)