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Discurso de recepção

Discurso de recepção por Cassiano Ricardo

Senhor Fernando de Azevedo,

A distinção que hoje vos confere a Casa de Machado de Assis é apenas uma, direi a mais recente dentre quantas, e com grande justiça, já vos foram prestadas. Mas tem um significado especial: é a mais alta láurea que se outorga a um escritor em nosso País. E que a mereceis de sobejo, não há dúvida. Sois um escritor no sentido específico da palavra. Autor também de muitas obras sobre problemas não literários, continuais, nelas, o estilista, compenetrado do vosso ofício.

Cioso de vossa linguagem límpida, escorreita.

UMA VIDA NUMEROSA

Voltado para a Antiguidade, amais Virgílio e Salústio; homem da hora presente, possuís o vosso brevet de piloto-aviador civil, que conquistastes com galhardia, num treino de sete horas de vôo.

Sofrestes um desastre aviatório a 24 de 4 de 42, mas saístes salvo; e o que ficou de intrigante é que os números dessa data lidos anaciclicamente, isto é, de trás para diante, são os mesmos 24 de 4 de 42. Um sinal de ida e volta (digamos assim) ou a prova de que uma boa estrela vos havia de guiar na existência.

Ás do volante, íeis de São Paulo a Santos a 140 quilômetros por hora.

Outro pormenor, que menciono salteadamente: antes do piloto-aviador civil, do esportista, fostes o adolescente religioso da Companhia de Jesus, o já mestre de latim e grego.

Sabe-se que D. José Gaspar, saudoso arcebispo de São Paulo, confessava que só por vossa influência é que havia abraçado o sacerdócio. Sois, portanto (por assim dizer), o autor espiritual desse ilustre prelado que se chamou D. José Gaspar. Quem me contou este episódio? Leopoldo Ayres, nosso querido amigo comum que, por enfermo, não está aqui presente.

Então o ás do volante, o esportista, o aviador brevetado, o religioso da Companhia de Jesus, o helenista, o latinista, o humanista, o professor emérito, o sociólogo, o escritor hoje acadêmico, que tudo isso fostes e sois – selves que nunca se encontram numa mesma personalidade –, marcaram encontro na vossa e chegaram a tempo de se reunir num só estilo de vida – a vossa vida numerosa e fecunda.

O ESCRITOR MODERNO

O escritor moderno é, a meu ver, aquele que se exprime humanisticamente e cientificamente. O que pode situar um mesmo instante de beleza estética no coro de Édipo Rei de Sófocles e na Teoria da Expansão do Universo de Einstein.

É o vosso caso, Sr. Fernando de Azevedo.

O convívio diuturno com as grandes obras do pensamento antigo mantém acesa, em vós, a esperança no espírito criador do homem, quaisquer que sejam as vicissitudes por que ele tenha passado.

A intimidade com o espírito moderno, e em particular com as criações da Ciência e da Arte dos nossos dias, vos desloca saudavelmente daquela famigerada “torre de marfim” apenas clássica, onde se refugiam os que não compreendem, ou não querem compreender, o “aqui” e o “agora” da civilização de hoje.

Confessais, aliás, que fostes sempre um inquieto, um insatisfeito. Sentistes, desde muito jovem, palpitar em vosso coração a chama de um revolucionário, atraído pelas ideias jovens e às vezes tidas como adiantadas demais em quarenta anos.

Não é outro o comportamento dos grandes escritores da hora presente. Vejam-se os casos mais em foco: um Ezra Pound, inovador fascinante, mas apaixonado de Homero, de Propércio e dos provençais; um Eliot, inovador também, mas apegado à tradição na linha de John Donne, fazendo alusões, dentro dos seus poemas (como em “Ash Wednesday”), a Guido Cavalcanti e Shakespeare; um Joyce, revolucionário do romance e da língua inglesa, escrevendo Ulisses: “Dans une journée de Dublin, il est possible de retrouver l’Odyssée”, tout entière; como observa Michel Butor; um Fernando Pessoa, moderníssimo, escrevendo as Odes à feição de Horácio, por um de seus heterônimos. Revolucionários, todos; nenhum deles renunciando ao clássico, ao antigo, à tradição.

E que fazem os jovens experimentalistas de hoje, senão buscar nesses exemplos suas técnicas de confrades?

A MISSÃO DO ESCRITOR

Mais que isso, compreendeis e exerceis de modo inequívoco a missão que cabe ao escritor moderno, diante deste mundo extraordinário e, por que não dizê-lo?, espetacular (repito vossa proposição), cujos progressos na Tecnologia e na Ciência são imprevisíveis.

É em academias como esta (dissestes ainda há pouco) que se cria e se desenvolve o sentido do humano, uma larga concepção do Humanismo que tem por base o estímulo, a liberdade de criação, o espírito crítico e a independência de juízos em qualquer campo da inteligência.

Portanto (a conclusão será esta), assim é que se mantém viva, graças à missão do escritor, a chama da liberdade, e mais vigilante a resistência a todas as formas de opressão.

Assim também penso, assim pensamos todos nós, dentro do compromisso assumido com a Cultura e com a inteligência, nesta Casa de Machado de Assis.

Realmente, a mudança foi radical, Sr. Fernando de Azevedo. A era da máquina – ninguém o ignora – tinha que motivar uma nova linguagem, uma nova conduta para os homens. Vejo o que se passa na esfera da Poesia. O poema é indigitado, hoje, por William Charles Williams, como uma “máquina de palavras”. No mínimo, uma “máquina de imagens”, segundo Matthiessen, exegeta de Eliot. A gramática, essa é também máquina; uma “máquina lógica”, como a define o autor de La Cibernétique et la Langue.

MÁQUINA DE FAZER POEMAS

Nem faltou em U.S.A. aquela máquina de fazer poemas, uma de cujas composições foi mesmo traduzida e publicada aqui pelos estudiosos da questão.

Darkly the peaceful trees crashed
In the serene sun
While the heart heard
The swift moon stopped silently.

Surdamente as tranquilas árvores
estalam no sereno sol,
enquanto o coração ouve
a suave lua parar silenciosamente.

Por certo que uma reunião de palavras selecionadas pelo computador eletrônico pode ocasionalmente revestir-se de qualidades lírico-semânticas.

Vai-se ver, não houve criação alguma, mesmo porque a máquina ignora todos os aspectos da Psicologia profunda, como adverte Abraham Moles, em sua Théorie de l’Information et Perception Esthétique.

Então dizeis, e muito bem: o homem não se desprende das máquinas mais engenhosas; o que significa dizer: as máquinas não funcionam sem o homem.

Mas vem um esteta e filósofo da categoria de Max Bense e aceita como legítima essa espécie de poesia a que chamou “poesia artificial”. E o mais curioso: em U.S.A. já apareceu até um risonho editor disposto a publicar em livro os poemas que tal máquina fabrica...

Portanto, o problema existe.

A CULTURA ANTIVERBAL

Por outro lado, os sinais, os ícones e as siglas proliferam cada vez mais. O cinema, a televisão, as mensagens acústicas e fotelétricas, as fotos da Lua (que U.S.A. e U.R.S.S. conseguem obter e os jornais publicam no dia seguinte) aí estão diante dos nossos olhos a cada momento.

A “civilização da imagem” ataca a cultura verbal, cada vez mais restringida pelo predomínio do visual-cinético, ou antiverbal.

As bibliotecas e livros estão ameaçados pela linguagem eletrônica, chegando Roger Caillois a profetizar sua extinção. Embora mais prudente, é Gilbert Cohen Séat, outro especialista, quem nos avisa que o homem está sendo deslocado da “biosfera” em que vivia ontem para a “iconosfera” em que vive agora.

A diferença é tal que, na genial observação de Gilberto Amado, “uma geração ri do que fazia a outra chorar”.

Em face da sedutora, mas feroz, problemática de hoje, em que a Ciência ultrapassa o som e atinge os planetas, criando o “poético absoluto”, o mínimo que cabe ao poeta, ao artista, é explicar o “desespero” lúcido do homem da pré-guerra atômica em termos de emoção tranqüila e tranqüilizadora.

É o novo Humanismo, pelo qual vos bateis.

Surge então outro aspecto da missão do escritor – o de defender os valores verbais, emocionais, culturais e simbólicos dentro dos quais temos vivido. Para que não assistamos, pelo excesso de mecanicismo e automatismo, àquilo a que Henri Lefebvre, em sua Metaphilosophie, denomina “pleonasmo delirante”, ou seja, a “robotização do homem pelo homem”.

 

NO TEMPO DE PETRÔNIO

Lembro-me de quando apareceu vosso livro No Tempo de Petrônio. Foi um encantamento para quantos amam a antiguidade clássica, as claridades tranquilas do espírito humano que o automatismo mecânico de hoje jamais poderá substituir.

Ninguém melhor do que João Ribeiro – com o penetrante olho crítico de que era dotado – para definir esse vosso trabalho. Notou o mestre que um dos melhores capítulos numa obra que é um verdadeiro curso de Literatura estava nas páginas referentes aos amores de Dido e Eneias. Outro capítulo que João Ribeiro distinguiu, francamente, era e é o que se intitula: “Uma Lição de Psicologia pela Semântica Latina” – substancioso excurso pelos domínios da Linguística.

Como o autor (são palavras de João Ribeiro) não cessa de comparar o antigo e o novo, é o seu livro um perfeito tratado das origens da nossa civilização, mostrando os liames que nos prendem ao pensamento, às ideias, às coisas de Roma. Nele temos a “imagem real da continuidade latina, retratada com arte delicada e profunda”.

Não me esqueço também do crítico literário que sois e que exercestes tão profícua atividade nessa ocasião, estudando e interpretando Amadeu Amaral, Coelho Neto, Batista Pereira, Júlio de Mesquita Filho, Euclides da Cunha, Gilberto Freyre, entre outros.

Impossível, nos moldes desta saudação, especificar cada uma dessas páginas admiráveis. Limito-me a lembrar a influência que tivestes no quadro intelectual da época. Trata-se de estudos reunidos hoje em volume, intitulado Máscaras e Retratos, e ainda perfeitamente válidos como fontes de informação, mas, antes de tudo, pelos fecundos conceitos que encerram sobre a Arte, a Ciência e a linguagem.

 

O CRÍTICO LITERÁRIO

Ainda agora leio o estudo sobre Gilberto Freyre e a Cultura Brasileira.

Afirmais com exatidão que em Casa Grande & Senzala se continha, de fato, “a mensagem científica e literária do escritor em quem logo se reconheceu uma força nova, por suas idéias e atitudes, pela maneira de abordar os estudos histórico-sociais, pelas luzes consideráveis que projetou sobre a formação da família patriarcal e pelo poder de sedução da linguagem e do estilo”.

E acrescentais: “Obra de antropólogo e de artista a um tempo. Era alguma coisa singular que cruzava então, e em direções diferentes, a atmosfera cultural contribuindo para sacudi-la e renová-la.”

Outro desses juízos críticos que destaco por motivos óbvios é o que se refere a Paulo Setúbal, a quem tive a honra de suceder nesta Casa.

Foi ele, afirmastes,

[...] quem associou o histórico ao eminentemente popular, no Romance brasileiro. Seguindo os mesmo caminhos já cobertos por José de Alencar, Júlio Ribeiro, Teixeira e Sousa, teve Setúbal o mérito (observastes) de vulgarizar essa vertente da obra de ficção, marcando-a com acentos de simplicidade e lirismo. A novidade que nos trouxe, no romance histórico, foi, pois, misturá-lo desse lirismo que, satisfazendo ao fundo sentimental da raça, imprimiu ao seu livro Marquesa de Santos o caráter de uma obra de acentos populares.

Parece-me de toda procedência o que assinalais a propósito da arte do autor de O Sonho das Esmeraldas e Alma Cabocla. Poeta antes de tudo, “desses que conhecem o caminho do coração, a sua atitude, como a de um emotivo que o observador ainda não havia dominado, era a do deslumbramento diante das coisas”.

ANTECIPADOR NA CRÍTICA

Mas há alguns aspectos gerais de vossa crítica que merecem referência especial.

É bem de observar, por exemplo, que antecipastes de algum modo a crítica de hoje. Ir à coerência inteira da obra, como diria o autor de Dieu Caché, foi sempre a vossa conduta de julgador.

Unidade, totalidade, coerência, que tanto agradam a um Serge Doubrovsky, em seu Pourquoi la Nouvelle Critique, caracterizaram desde logo a vossa tomada de posição nesse setor. La critique moderne mérite le titre de totalitaire no dizer de J. P. Richard. Em qualquer hipótese, o certo é que nunca abandonastes a visão do conjunto. O pormenor não se compreende senão pelo todo e uma explicação do pormenor pressupõe o conhecimento da totalidade, constituindo aquilo que Dilthey chamou de “compreensão circular”.

Não desprezastes o lado impressionista porque (como faz ver o autor de Pourquoi la Nouvelle Critique) os elementos de composição objetivos não excluem uma visada interior;  toda compreensão supõe uma consciência perceptiva.

E por que recorrer eu a tais autores se entre nós um Osmar Pimentel, um Oswaldino Marques, um Afrânio Coutinho, um Eduardo Portella, um Antonio Candido, um Fausto Cunha, um José Guilherme Merquior, um Nereu Corrêa, um Cassiano Nunes e estes dois grandes mestres, Tristão de Athayde e Euríalo Canabrava, pensarão da mesma forma?
(Pena é que Álvaro Lins e Múcio Leão – para só me referir a dois membros desta Casa – não se encontrem hoje em atividade como críticos militantes que exerceram tão importante papel em nossa vida literária).

Exemplo do que alvitrei – de crítica lúcida e pormenorizada, ao mesmo tempo que totalizante – está no vosso trabalho por mim citado há pouco sobre Gilberto Freyre.

No ensaio A Poesia Social no Brasil já prevíeis o advento de uma poesia moderna mais vincada pelo social, quando afirmastes que as gerações de amanhã encontrarão na de hoje a corrente subterrânea de opinião que poderá mais tarde culminar com um grande intérprete dessa aspiração universal numa poesia de ampla capacidade difusiva e largamente inspirada na luta pela conquista da terra e no ritmo da vida social dominada pela máquina.

Acertastes na previsão e não apareceu só um poeta social mas a própria Poesia se engajou nessa necessidade de exprimir as esperanças e angústias do mundo em que vivemos, realizando aquilo que Kipling, por vós citado em outra passagem, atribuiu ao “homem no mundo dos homens”.

 

A POESIA, UM BEM SOCIAL

Em vossa Na Batalha do Humanismo tratais também de “A Arte e Sua Função Social”.

E o fizestes num discurso que declarais dirigido em primeiro lugar aos artistas, pela quantidade de entusiasmo que despertaram nas almas; em segundo lugar, aos homens que, na agitação política, “aprenderam a conduzir-se entre o espírito prático e a imaginação, entre a realidade e o ideal, como nos séculos de ação e beleza”.

Ao que dizeis da Poesia como forma de ação, acrescentarei o caso, aludido por Ivan Fónagy, em Le Langage Poétique, daquele general polonês, herói da independência da Hungria (1848), a quem perguntaram se preferia tropas frescas ou a nomeação do poeta revolucionário Sandor Pétofi para seu ajudante-de-ordens. Escolheu ele o poeta revolucionário; provavelmente (aduz Ivan Fónagy) sem conhecer o poema de Heine, “onde este evoca outro poeta cujas palavras se transformam em adagas e espadas”.

Tendes toda razão, portanto, Sr. Fernando de Azevedo.

Em verdade, hoje só se compreende a Poesia como um processo de participação na sociedade, capaz de intervir, a seu modo, em favor dos ideais de justiça e igualdade, de confraternização e amor. Em suma: a Poesia, não como um devaneio, uma flor de luxo, mas como um bem social.

Necessária, como diria Ernst Fischer, para que o homem conheça e modifique o mundo.

Infelizmente, só posso dizer alguma coisa, não tudo quanto me ocorre e devia ser dito sobre o pensador, o crítico de ideias e de livros, o polígrafo de sólida base humanística que marca indelevelmente vosso currículo literário.

Em Jardins de Salústio, com o subtítulo “à margem dos livros e da vida”, muita coisa bela e atual teria eu que respigar. As Crises Sociais e Políticas e a Mudança de Sentido das Palavras, também de vossa autoria, eis outro estudo que sinto não poder aqui resumir, no tempo de que disponho para esta saudação.

O que devo e posso dizer, em síntese, é que toda a vossa intensa atividade intelectual, hoje reunida em mais de vinte volumes, não vos privou da crítica militante e foi como crítico que vos conheci em nossa juventude. Fostes, pela beleza do estilo, pela argúcia sorridente de compreender, o crítico mais respeitado em São Paulo e, em consequência, um dos nomes de maior projeção na paisagem literária brasileira.

 

O SOCIÓLOGO

Fostes o pioneiro, no Brasil, na compreensão e da difusão da sociologia de Durkheim. Na opinião de Roger Bastide, o ilustre professor e escritor francês que tanto admiramos, realizastes, com o vosso estudo Sociologia Educacional, o que “nenhum sociólogo francês havia realizado, porque nos destes a obra de que Durkheim havia apenas escrito o prefácio”.

Em tal setor, elaborastes a síntese das ideias sociológicas pela crítica interna de cada uma das escolas vigentes, em vosso Princípios de Sociologia.

Não só compreendestes e difundistes Durkheim em primeira mão, nem só fizestes a revisão crítica das escolas vigentes, em assunto de Sociologia. Sois um dos sociólogos mais eminentes do Brasil (e quem assim o afirma é o professor alemão, hoje radicado nos Estados Unidos, Emílio Willems). Vossa formação humanística extremamente rica (afirma ele) integra-se em tudo quanto escreveis. Assim o livro Canaviais e Engenhos deve ser encarado como uma análise madura e equilibrada de dados histórico-sociais grandemente interessantes, apresentados com a vossa perícia habitual.

Canaviais e Engenhos junta-se A Cidade e o Campo na Civilização Industrial, outro estudo de inquietante atualidade. Mais ainda: ao lado do Dicionário de Sociologia de consulta obrigatória para quantos queiram esclarecer e definir conceitos mediante terminologia própria e precisa (porque toda ciência, em especial a Sociologia, deve ter o seu universo de discurso) escrevestes a Sociologia do Conflito Social, ainda no domínio da interpretação sociológica, estudando um dos pontos mais importantes do processo geral de interação.

Outra obra de vossa autoria que me fascinou por estar na faixa dos modestos estudos que venho realizando sobre a “Marcha para Oeste” e suas causalidades é que se intitula Um Trem Corre para o Oeste, em que fazeis – sociologicamente – a glorificação das estradas de ferro, a poetry of railways, na fundação das cidades.

Do ciclo indígena à descoberta do ouro, a que se sucedeu a arrancada dos cafezais pelo Vale do Paraíba, chegais ao exame, em corte transverso, da fase de penetração pela adoção do transporte mecânico cujo papel pondes em relevo sob os seus aspectos econômicos, sociais e políticos. Os trilhos das estradas de ferro seguem as trilhas dos velhos desbravadores do sertão. O exemplo está, como acentuais mui judiciosamente, na penetração de Mato Grosso, pela Estrada de Ferro Noroeste do Brasil, iniciada em 1905.

Com o seu desdobramento, já nas cogitações do Barão do Rio Branco, rumo ao continente, ligando o Atlântico ao Pacífico, hoje em articulação com a Brasil-Bolívia.

E por falar em bandeirismo, acode-me o pensamento de que bandeirante também o sois, no sentido legítimo da palavra, à luz do século XX: abridor de caminhos na Educação, na Sociologia, na Crítica Literária, em Um Trem Corre para o Oeste.

 

NA BATALHA DO HUMANISMO

Na Batalha do Humanismo é outra obra vossa em cujas páginas “está condensado e resumido (como argutamente observou Múcio Leão) a fiolosofia do escritor, a emoção do poeta e a melancolia do homem”.

Os temas que abordais nesse livro dão bem a ideia do que é ele, no cômputo geral de vossa obra. O “Discurso Sobre a Criança”, “Crianças, Nossos Mestres”, “O Conflito das Gerações e as Lutas Políticas” (atualíssimo estudo), “Educação e Liberdade”, “Técnica, Humanismo e Educação”, “No Caminho de um Humanismo Novo” e muitos outros capítulos de grande estilo estão aí reunidos por um só pensamento – o pensamento filosófico que marca tudo quanto escreveis.

O de que precisamos – dizeis – em No Caminho de um Humanismo Novo, falando aos jovens de 1950, é de um change of heart. Faláveis já num transplante do coração para uma nova tomada de atitude diante do mundo em processo de mudança social e cultural rápida, e isso por um ato de coragem e investigação permanente.

O que defendíeis então, há quase duas décadas, era a necessidade de serem enfrentados os temas que levam o “sinal de perigo”, ou “sinal fechado” e que alguns conservadores não aceitavam, nem mesmo a título de mera especulação científica.

Como se houvésseis previsto, com a expressão change of heart do vosso humanismo, o milagre, por exemplo, da cirurgia cardíaca ainda há pouco alcançado pelo Prof. Jesus Zerbini, em São Paulo.

E note-se: os jovens estudantes, que hoje pedem a reformulação do ensino, atendem ao vosso sábio conselho aos de 1950.

Bem pensando – o que desejam é romper o “sinal fechado”; é um “transplante do coração” num sentido amplo e social de “novo coração” para um velho e talvez obsoleto sistema educacional, que já começa a ser revisto.

 

O PIONEIRO DA EDUCAÇÃO NOVA

Há, a ser feito, um estudo em profundidade da vossa influência no processo de renovação válida da Educação Brasileira, iniciado com o movimento da Escola Nova.

Com Lourenço Filho, Noemi Silveira e outros mestres, destes, afinal, orientação científica aos problemas da Educação nacional, até então tratados e solucionados sem filosofia, sem planejamento, sem método, sem sequer uma compreensão mais sensata das nossas realidades. Esse movimento completou, a meu ver, no setor educativo, a obra revolucionária empreendida nas Letras e nas Artes pela Semana de Arte Moderna, realizada, em 22, na capital de São Paulo.

Novos Caminhos e Novos Fins, A Educação e Seus Problemas, A Educação entre Dois Mundos são livros que retratam o labor do Mestre sempre escudado por um ideal superior.

Relator e primeiro signatário do “Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova”, iniciastes a nova política da Educação, com a reforma que tomou vosso nome.

“A Capital do Brasil (são palavras de Manuel Bernardez, ex- ministro do Uruguai em nosso País) está realizando, em matéria de ensino, o que nenhum país do mundo pôde ainda realizar.”

Não é outra a opinião de um Geraldo Seguel, da Escola Normal de Santiago, para quem a reforma por vós empreendida não foi apenas a mais vigorosa e a mais fiel aos princípios da Educação Nova como também passou a ser um modelo para as outras.

Uma verdadeira revolução que se operou no Brasil – asseverou Léon Walter – diretor do Instituto J. J. Rousseau.

Em carta a Lourenço Filho (a 12 de agosto de 1930) dizia Frota Pessoa:

Para uma grande reforma nacional de educação (ou de qualquer gênero), o Fernando de Azevedo é o homem oportuno, ajustado e talvez o único. Moldado em aço, mas aqui e ali com felizes falhas na têmpera, obstinado e explosivo, intrinsecamente probo em atos e intenções, ardendo numa chama perene de idealismo, sentimental e duro ao mesmo tempo, abstrato e dispersivo, in modo, objetivo, retilíneo e fulminante in re, possui ele as virtudes clássicas e também as heterodoxas (a que chamamos defeitos) indispensáveis a um criador de realidades cósmicas, harmoniosas e fecundas.

 

O HOMEM DE AÇÃO

Assim, não só a vossa obra de escritor é que foi premiada, nesta alta solenidade intelectual e acadêmica.

Também o foram vossas atividades educacionais e culturais, que deixaram traços indeléveis desde os idos de 1922 e 1923, ao tempo em que desempenhastes as funções de redator e de crítico literário de O Estado de S. Paulo.

Nunca deixastes de estar atento às questões básicas, ligadas ao ensino em nossa terra. O perfeito intelectual que sempre fostes, capaz de conseguir uma visão gestáltica dos problemas mais relevantes, tinha uma missão a cumprir. E a cumpristes sem relutância e sem temor.

Durante quinze anos, à frente da Companhia Editora Nacional, fundastes e dirigistes a Biblioteca Pedagógica Brasileira, complementando assim, como quem fecha um círculo cinético, a reforma do Ensino inaugurada anos antes, dando-nos a série “Iniciação Científica” e a “Coleção Brasiliana”, que completou duzentos e cinquenta títulos.

Espírito sempre jovem, como já tive ocasião de acentuar, em permanente diálogo com as mais avançadas correntes da Educação moderna, fizestes, na qualidade de Diretor-Geral do Departamento de Educação de São Paulo, profunda reforma, a maior realizada até àquela época no ensino público, enfeixada no Código de Educação.

Coroando tal atividade, realmente ímpar, toda voltada para o conhecimento planificado, fostes ainda o relator do anteprojeto e do decreto-lei que instuíram, em 1934, a Universidade de São Paulo, realizando trabalho de tal magnitude que o próprio Conselho Universitário, assim como o reitor, o consideraram “relevantíssimo”.

Fostes, assim, o primeiro degrau das aspirações universitárias que hoje empolgam o País.

Através de colóquios e debates, no Brasil todo, vos tornastes, num período de 25 anos, um semeador do saber, das artes de Literatura. Basta lembrar que realizastes mais de setenta conferências! Quem terá levado a efeito obra mais impressionante?

No plano internacional não foi menor a vossa projeção. Dignificastes o nosso Brasil no Congresso Mundial de Zurique, em 1950, como presidente da Associação Internacional de Sociologia, cuja presidência, após a morte de Louis Wirth, da Universidade de Chicago, foi dividida entre os três vices: professores Morris Ginsberg, da Inglaterra, George Davy, da França, e Fernando de Azevedo, do Brasil.

Desde 1952 até hoje participais, com o vosso conhecimento de verdadeiro scholar, do trabalho de superintender a publicação da monumental História da Humanidade, a ser editada sob o patrocínio da Unesco.

O “LEITE DA TERNURA HUMANA”

Figuras do Meu Convívio já é um livro mais de ordem afetiva, em alto nível, em que procurastes recortar o perfil de figuras com as quais mantivestes relações de amizade – amigo exemplar que sois dos vossos amigos – na intimidade familiar ou em vossa vida profissional.

Nele cultivais a capacidade de simpatia, na significação grega da palavra, de sentir e sofrer com os outros; de amar e admirar e, sobretudo, de se colocar em lugar dos outros. Única forma pela qual, como ensina George Mead, o homem se faz um ser humano.

Educadores e amigos vossos passam nesta galeria amável, sob o olhar e a perscrutação de um verdadeiro psicólogo da amizade sem jaça. Não se vive sem conviver, pois os homens precisam conhecer-se para melhor se amarem. Um grande bem da vida, tal o conceito que fazeis da amizade num sentido moderno e social cujas raízes fostes admirar na amizade antiga, na leitura de Laelius vel de Amicitia.

Encontro nestas páginas tão evocativas a que escrevestes sob o título A Graça do Amor e da Fé, com este subtítulo (Sobre um Manuscrito de Minha Mãe). Tema difícil porque muita vez resvala para o óbvio – amor de mãe pelos filhos –, soubestes tratá-lo com absoluta dignidade e originalidade.

Ela vos educou e ensinou a fazer o bem. Tudo na mais santa obscuridade; sem esperar nada do mundo.

“A raiz escondida (lembrais, citando Tagore) não pede prêmio nenhum por encher os ramos de frutos.”

Um dos amigos que também figuram nesta galeria é Roquette-Pinto, a quem dedicais uma página de grande justiça, em “Roquette-Pinto, Abridor de Caminhos”, pioneiro da nossa Antropologia, o primeiro que se aventurou a excursões pelo sertão com o objetivo de fazer pesquisa de campo sobre sociedades primitivas em seus tipos humanos e em suas culturas.

Prova de que a amizade não vos obscurece a mensuração exata de um valor autêntico como foi o nosso inesquecível companheiro cujo nome pronuncio com imensa saudade.

Figuras do Meu Convívio é, pois, uma lição haurida naquilo a que tanta vez se chamou o “leite da ternura humana”.

 

A CULTURA BRASILEIRA

Senhor Fernando de Azevedo,

Não fiz mais que apanhar, aqui e ali, alguns dos aspectos da vossa prodigiosa atividade intelectual.

Difícil quem tenha trabalhado tanto no domínio da inteligência criativa e investigadora.

Todas essas qualidades são, porém, fartamente evidenciadas em vosso livro A Cultura Brasileira – talvez uma suma do vosso pensamento criador.

Escrito naquele estilo que é, ao mesmo tempo, festa para os olhos e, quando lido, para os ouvidos, A Cultura Brasileira é das raras análises já feitas em profundidade a respeito do significado último da Cultura deste continente chamado Brasil.

Quando pela primeira vez publicado, provocou a atenção, o elogio unânime e consciente dos doutos. Entre esses, alguns pensadores europeus e norte-americanos já familiarizados com os nossos problemas nacionais e com o lúcido approach fernandiano.

 

PAULISTA POR VOCAÇÃO NACIONAL

Felicito-me pela honra de vos receber em nome da Academia Brasileira.
 
Mas há outro motivo para o meu orgulho: sou um paulista recebendo outro paulista. Não sois dos de quatrocentos anos, por certo, como o foram alguns ancestrais da velha cepa vicentina.

O vosso ser paulista, todavia, é tão autêntico como o dos que mais o sejam. Mineiro, já por isso estais incluído na zona inicialmente paulista, como diria Eucides da Cunha. Para o autor de Os Sertões, como sabeis, paulistas não são só os que nasceram em São Paulo. Paulistas são também os goianos, os mato-grossenses, os fluminenses, os mineiros, os paranaenses, os catarinenses, os gaúchos, que – com o recuo que se fizer no tempo histórico – são todos geograficamente paulistas.

Mas sois paulista no presente por decisão própria e naturalmente vos surpreendeis, como se surpreendia Washington Luís, de não ter nascido em São Paulo. E o que é mais: sois paulistas porque vos entrosastes de corpo e alma na maior vocação dos paulistas, a vocação nacional que é a de trabalhar dia e noite pela grandeza do Brasil com espírito pioneiro.

O processo funciona admiravelmente. Milhares de brasileiros, nossos irmãos de outros Estados, revelam seu ímpeto bandeirante, até então subjacente, contribuindo com o amor e o suor do trabalho para o progresso de São Paulo, num clima criador de riqueza e de beleza; assim como todo bom paulista, em recíproca, é um predestinado da brasilidade.

UNIDADE NACIONAL

De mim devo dizer que, paulista, me sinto mais sensivelmente brasileiro quando penso, por exemplo, no Acre, no Amazonas, na Rondônia, lugares para onde talvez nunca terei o ensejo de ir, mas onde pulsam em mim os ideais do futuro de nossa Pátria.

Na Casa de Machado de Assis a unidade brasileira tem sua mais bela prova; a Cultura do nosso País tem hoje seu mais fascinante exemplo; e vossa presença dá às Letras uma verdadeira noite de glória.

Sede bem-vindo, Sr. Fernando de Azevedo!

24/9/1968