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Deolindo Couto

POSSE DA CADEIRA DE MEMBRO TITULAR

 

Quem culminar um posto nesta Academia, suprema corte da Medicina Brasileira, jamais deixará de ter o espírito salteado por um pensamento: o de que ascendeu ao pináculo das situações honoríficas que, entre nós, possa conferir o exercício profissional. De feito, Senhores, este o recinto por onde transitaram quantos em nossa terra fizeram da Ciência Médica o lídimo fim da vida e, se assim é, pode falar-se de campo trilhado por homens de bem e de sensibilidade, que outros não são os verdadeiros médicos pelo pendor e pela formação moral.

No meio da derrocada contemporânea, ainda mantêm os discípulos de Hipócrates os mesmos desígnios que lhes conferem uma centelha divina: os de paliar o sofrimento alheio, a qualquer hora e em qualquer parte, à custa, muita vez, da própria vida. Vede um Miguel Couto, um Carlos Chagas, um Fernandes Figueira, solicitados até à hora da morte pelo bem dos seus semelhantes. Nunca se entrará num cenáculo que foi iluminado por tais astros, cujo resplendor se projetará através dos anos como o das estrelas já mortas e ainda reluzentes, sem ter de início o espírito para eles voltado, na atitude carlyliana de olhar os grandes homens para deles ganhar alguma coisa. E quando é possível, num passado, inventariar companheiros dessa estirpe, redobra-se a sensação de que avulta o laurel com que o destino galardoou o recém-eleito. Então, cabe falar-se de um marco no discurso da vida, então deve o viandante estacionar um instante no seu labor para manifestar gratidão aos que o ampararam na escalada.

Durante a sua formação, todo homem que faz da cultura o objeto da existência sofre, a cada passo, a influência de uma personalidade ou de uma escola.

Para mim é grato relembrar, a esta altura, a meninice e a adolescência, porque em toda essa fase da existência fui norteado por meu Pai, homem da Lei, magistrado e professor de Direito, detentor de todas as honrarias na Província e hoje somente dono da serenidade de espírito que, como um halo divino, envolve os que vivem na preocupação obsidente da Justiça. Os primeiros tempos da vida correram-me placidamente numa cidade do interior nordestino e lá recebi, ministrada por Aquele a instrução primária e parte da secundária. Surgiu-me o pendor profissional naquele recanto, onde não havia senão um velho médico, beatificado pela gratidão de todos, que, sem exceção, eram seus clientes e, sem discrepância, gratuitos. Lembro-me de que, certa vez, me caiu sob os olhos um periódico ilustrado da Capital da República e diante dele fiquei embevecido durante longos minutos, a admirar um grupo de estudantes vestidos nos seus aventais brancos, ao lado do condutor, inconfundível na sua barbicha de então: este era Austregésilo. Tenho a impressão de que, naquele instante, escolhi a minha profissão e elegi o meu futuro orientador. Realmente, quando, anos depois, cheguei ao Rio, estava o eminente Professor nos fastígio da sua fama e dele pude haver ensinamentos que me foram decisivos.

Muito deve ainda a minha formação a Georges Guillain, o maior neurologista clínico dos nossos dias, de saber só avaliável pelos que o viram examinar, para diagnosticar, com o máximo de segurança, uma dezena de casos difíceis em cada lição de terça-feira na Salpêtrière. Tantos e tão úteis me foram outros mestres que não é possível nomeá-los e deles falar em curto espaço, mas todos estão presentes à minha memória e à minha gratidão.

[...]

Uma Faculdade Médica é uma escola profissional e deve formar indivíduos capazes de exercer o seu mister. Ninguém discute o imprescindível da boa doutrina, mas é inútil possuí-la no desconhecimento da praxe. Clínica não é patologia, embora não se possa fazer a primeira sem conhecer a última. Mackenzie, com a visão de clínico genial e a autoridade de filosofar que lhe conferiram várias décadas de prática médica, fez, há vinte anos, a mais perfeita e humana das críticas ao ensino médico e mostrou os erros a que levara a educação dos futuros profissionais, pela incompreensão do que valem os progressos da Medicina. Estes progressos, necessários e fatais, observou o sábio, não complicam a Medicina, pois um assunto que repousa sobre leis naturais se torna mais fácil de compreender à medida que melhor se lhe conhecem as leis.

Escolho dos maiores no seriar das disciplinas médicas e no ensino das clínicas está em que uns proclamam a necessidade de uma cultura básica, que chamaríamos de humanismo médico, antes que fossem expostas as situações práticas aos estudantes. Ninguém pode, em boa mente, negar as vantagens de tal orientação, mas se ela já foi abandonada em alguns países, como na França, onde o estudante tem obrigações hospitalares desde o primeiro ano do curso, muito menos nos convirá, a nós. Em primeiro lugar, porque ainda não dispomos de grandes instituições nosocomiais, onde o estudante possa, nos três últimos anos, examinar todos os casos necessários à sua formação; depois, porque é necessário cultivar a vocação do futuro médico e para tal é mister mantê-lo em diuturno contato com os doentes.

Assisti, certa manhã, na visita às enfermarias da Clínica Charcot da Faculdade de Paris, a um Assistente do Professor Guillain apresentar-lhe o irmão, entrado, havia dias, na Escola. No desenvolver da visita, ao passo que exibia aos médicos e doutorandos os casos mais complexos, solicitou duas vezes o Mestre a atenção do neófito para eventualidades clínicas ao seu alcance, e isto em serviço especializado. De uma das feitas, mostrou-lhe um paciente que apresentava particular posição dos membros superiores; os dedos médios e anulares encontravam-se forçadamente fletidos, os indicadores e mínimos estendidos, em caráter permanente: quando visse um caso como aquele, observou o Mestre, sempre se lembrasse da possibilidade de que a paralisia apresentada pelo paciente decorresse de intoxicação pelo chumbo, tão amiúde no saturnismo era observada a curiosa postura. Adiante, estava um doente que, sentado à borda do leito, mantinha o olhar involuntariamente volvido para o teto; ante tal quadro, ensinou o Professor, recordasse a possibilidade de ocorrer uma doença infectuosa do sistema nervoso, chamada encefalite epidêmica. Certo que a exegese minudente desses exemplares mórbidos escaparia ao entendimento do jovem discípulo; mas estou que, tal como lhe foi mostrado, ficou indelevelmente assinalado na memória daquele menino o que lhe ensinaram, no alvoroço da primeira manhã de hospital. Tudo está, assim, no selecionar dos casos e no saber falar aos estudantes, que se iniciam. Não há, porém, duvidar que ele aprenderá desde o primeiro dia, se lhe for ajustado o orientador; este um dos méritos do ensino a que Osvaldo confere tamanho realce.

Nem só no observar, porém, está a arte, senão também no critério que deve presidir ao apurar dos fatos. A cultura, ensinou Murri, um dos maiores da nossa arte, é o conhecimento; o senso prático, o reconhecimento.

Fundamental característica da Medicina é partir do concreto, do fato ainda que fortuitamente apurado; mas, de raro em raro, concepções teóricas podem levar a sanções práticas. Deve-se a fama de Hipócrates, homem acima de tudo sensato, a ter rompido com a magia e os bruxedos, a taumaturgia e os exorcismos, para firmar a necessidade de uma orientação objetiva dos fenômenos mórbidos. Do grego genial surgiu a Medicina científica, da astrologia proveio a coorte, infelizmente ainda considerável, dos exploradores e inconscientes. Pasteur é outro marco na história da humanidade, porque nunca respondeu aos teóricos, que se lhe opunham, com frases patéticas e argumentos escusos, senão com os seus tubos de cultura e as suas experiências de vacinação. Hoje só os insanos poderão deixar de emocionar-se ante o episódio do saneamento do Canal do Panamá, que o nosso Afrânio Peixoto chamou “a mais linda história do mundo”.

Não obstante a segura evolução da Medicina, cabe recordar que os fenômenos biológicos são os mais complexos da Natureza e, por isso, talvez jamais a prática se venha a libertar dos inescrupulosos. A própria mutabilidade da matéria viva e as diferenças individuais, que se não restringem ao lado físico e invadem o psíquico, explicam, de sobejo, porque as falhas terapêuticas se nos possam deparar até nos casos em que nos julgarmos suficientemente armados. Isto serve, contudo, aos descrentes dos recursos da ciência e ei-los a resvalar no abismo da charlatanice. O engenheiro resolverá sempre certo os seus problemas, se possuir-lhes os fundamentos matemáticos; nada há de semelhante em Medicina, onde se lida com fatores em eterna instabilidade.

Honra, porém, aos médicos verdadeiros, sempre em número crescente, desde aqueles ominosos tempos, pintados por Dumesnil, em que se entremisturavam “indivíduos obstinados numa absurda rotina e outros — em menor número — cheios de sabedoria e de ciência, empenhados em descobrir a verdade: filósofos e sábios, que apenas queriam por guia a razão, e empíricos charlatães; costumes que ainda se opunham aos estudos da anatomia e que obrigavam os pesquisadores a roubar cadáveres nos cemitérios”. E, no meio deste caos, traços de luz fulgurante: a descoberta da circulação do sangue, dos quilíferos, a introdução da quinina na terapêutica, uma sábia volta à medicina natural. Valha-nos a lembrança de que, atualmente, não se passa um lustro sem aquisição fundamental: a insulina, a química dos hormônios gonádicos, a sulfanilamida, o microscópio eletrônico, a patologia geral dos vírus.

A própria crítica é construtiva, se feita por pessoas de boa-fé ou por homens de gênio. Ninguém negará a Rabelais, no século XVI, importante papel na evolução da Medicina, como ninguém o fará em relação a Molière, no século XVII, porque as suas tremendas sátiras libertavam o pensamento oprimido dos pesquisadores, incapazes de propugnar as suas ideias, pelo classicismo ou pelo preconceito das escolas oficiais da época.

Quando se pensa, como disse Grove Wilson, que Aristóteles resolveu todos os problemas com a metafísica e a história natural e Galeno esgotara o que se pudesse saber acerca do corpo humano, é que se pode avaliar a significação de um Claude Bernard e de um Morgagni na história da civilização. As maiores revoluções são as do pensamento científico e a promoção delas é obra dos gênios. Curioso é que estes são os mais combatidos e já o velho Anatole dissera que a glória de um homem comum a ninguém ofende, porque é uma lisonja secreta ao vulgar, mas há no talento uma insolência que se expia pelos ódios surdos e pelas calúnias profundas.

[...]

Meus senhores — Nunca imaginei que a minha investidura acadêmica viesse a coincidir com a fase de apreensões vivida pela nossa Pátria, porque jamais me falecera a crença no decoro internacional. Desgraçadamente, nesta hora, já se contam brasileiros sacrificados à fúria das indignações que hoje sentem os responsáveis pelos destinos do Brasil, estou que todos partilhamos e com o orgulho de mais de um século de soberania.

A serenidade de que necessitam os homens de ciência para exercer a sua função humana é perturbada pela fúria da destruição e do extermínio.

Deus vela, porém, pela nossa Terra. Olhos voltados para Ele, talvez tenhamos nós mesmos de tomar posição na defesa do Brasil.

Transmute-se a nossa vida, modifique-se o ritmo e o gênero do nosso labor, unamo-nos todos à sombra da nossa bandeira, tão bela quanto gloriosa.

Nós, médicos, já estamos mobilizados, porque os nossos serviços são dos mais importantes e a batalha que nos oferecem é a batalha da salvação. Ombreemos com os nossos colegas das classes armadas e a eles ofereçamos a assistência que pudermos, porque assim teremos servido ao Brasil.

 

(Vultos e ideias, 1961.)

 

 

 

O VALOR DA TÉCNICA

(RECEPÇÃO DE JORGE MORAIS GREI)

 

Em cada noite de festa, celebra este grêmio o esplendor de uma vocação, atormentada, não raro, pela grandeza da faina profissional, mas dominadora e firme, até consagrar-se no batismo acadêmico.

Cedo se revelam as tendências, quando irresistíveis e capazes de salientar-se na personalidade. De então, avolumam-se os deveres, cresce o prestígio no ofício, escasseiam as horas de repouso, desaba sobre a cabeça a nevada dos anos, porém sempre se encontrará no predestinado o espírito forte, que lhe marcou indelevelmente a diretriz.

Em medicina, tudo é o pendor. Não a eleja como carreira quem desapercebido das condições inatas, que são as de entranhada piedade pelo sofredor e perseverança sem tréguas no empreender o combate à doença. Por isso sentenciou Miguel Couto: “Aquele que for fechado a estas paixões, renuncie para logo ao exercício de uma arte, em que há de ser um supérfluo e, ao cabo, um maldizente.” Estrada sem fim, a percorrer na brevidade da vida, porque as ideias turbilhonam em perpétua renovação, espalhando a instabilidade das novas causas e mecanismos apontados como responsáveis pelos estados mórbidos, modificando-lhes o conceito e o significado! Os próprios aspectos estatísticos concernentes à nosografia são passíveis de alteração e de complemento.

Dentro de um século, tanto evolveu a Cirurgia que é quase temerário ligá-la ao que, para trás, se praticava. Só uma geração nos separa das operações sem anestesia, no próprio leito do doente, por médicos de sobrecasaca, mãos perfumadas e até, como pitorescamente o refere William German, com as pinças penduradas nas barbas e os bisturis enfiados no cano das botas.

O ato cirúrgico vai perdendo o caráter espetaculoso, em favor da segurança do paciente, que não é apenas minuciosamente estudado antes e depois da intervenção, senão ainda na vigência dela.

As conquistas da fisiopatologia, introduzidas no campo da Cirurgia, multiplicaram as técnicas que, hoje, melhor se podem chamar funcionais que anatômicas. Como isto lhe dilatou as possibilidades! O rigorismo do comportamento não está mais na observância dos clássicos tempos operatórios, úteis, entretanto, como disciplina, mas na compreensão, por parte do executante, de que é mister restabelecer a função da melhor maneira: daí o falar-se, hoje, correntemente, de tática cirúrgica.

Mede-se o valor do cirurgião pela capacidade no apreender o concreto do caso e não pelo número de minutos que despendeu a menos na execução do ato operatório. Cushing e toda a Escola neurocirúrgica norte-americana, expressão suprema da especialidade, foram precursores de tal conduta, hoje felizmente em via de espraiar-se por todos os distritos da técnica. Foi demorada a intervenção, mas o doente está quase como antes dela e o caso foi resolvido como um problema de termos apresentados na hora.

Se foi sempre admitida como dogma a dessemelhança dos doentes, por que motivo executar servilmente um método fixado pelos livros? É Leriche, cirurgião de gênio, quem, ao estudar a supressão sangrenta da dor, traça as colaterais do problema, mostrando-lhe as consideráveis variações e, depois de aludir à resistência à dor revelada pelos soldados de Napoleão e de narrar operações que realizou sem anestésico em militares cossacos, conclui: “Isto me provou que um aparelho não basta para assegurar o desempenho de uma função. Torna-se-lhe mister certa alma, se cabe a expressão, para significar as incidências movediças da vida.”

Cada vez mais se exige do cirurgião cultura de patologia e da chamada Medicina Interna, não sendo exagero dizer que estas lhe são quase tão indispensáveis quanto a virtuosidade técnica. Só assim se explica que Otfrid Foerster e Clovis Vincent tenham comandado, na Europa, um ramo da cirurgia em que se iniciaram vingada a quarta década de vida; só destarte se concebe que Percival Bailey dissesse e escrevesse que desconhecia nos Estados Unidos um cirurgião geral, ainda que ocupante da cátedra, a cujas mãos confiasse o seu cérebro.

De tudo ressaltam o valor do integral domínio do problema que oferece cada operando e a possibilidade de que degenere em falência uma intervenção cirúrgica admiravelmente executada como técnica.

Estas verdades patentes norteiam a colenda classe dos cirurgiões brasileiros, sendo de justiça apontar Jorge de Morais Grei como paladino das mesmas.

No recipiendário de hoje alvoreceram com a juventude as inclinações para a Medicina. Depois de sólido lastro de humanidades, auferido em dois dos melhores colégios da Capital, matricula-se na Faculdade e já frequenta a famosa 20º Enfermaria, centro de estudos que evoca duas lembranças igualmente gratas: a da Santa Casa e a do Professor Austregésilo. Logo, porém, encantam ao rapaz fluminense as proezas operatórias da época e nele se firma o roteiro do cirurgião. De frisar-se é a segurança com que o traçou, marcado, que foi, pela sequência no adquirir dos conhecimentos.

Decorreu-lhe longa a preparação nos anfiteatros anatômicos, ao perquirir as formas e as relações. Depois, praticou as técnicas para selecioná-las, exerceu a cirurgia experimental, que é fisiologia, forrou-se de conhecimentos semióticos e atirou-se, por fim, à clínica, onde foi de triunfo em triunfo, até impor-se como expoente da sua classe.

Naquela fase propedêutica, teve a guia-lo mãos generosas, a serviço da inteligência, da cultura e da sabedoria médica: as de Benjamin Batista, Alfredo Monteiro, Jorge de Gouveia, anatômicos, técnicos, cirurgiões, à vanguarda da Medicina Brasileira, todos chefes de Escola, premiados hoje com a ventura de possuir continuadores eminentes.

Exerceu e exerce o magistério com proficiência e exação. Contribuiu para os Congressos científicos, laborou em hospitais indígenas e fora do país. Publicou dezenas de trabalhos acerca da Cirurgia Geral e da Urologia. Madrugaram-lhe, por isso, as láureas, com o acolhimento em sociedades sábias nacionais e estrangeiras e como elevado conceito que adquiriu nos meios universitários e clínicos.

Honra, pois, à Sociedade que vai abriga-lo.

Volvamo-nos, agora, para um cenário atual, tão perto de nós pelo espírito, quanto grande era a distância material onde demora. Ergue-se, em terra alheia, um hospital de sangue. Ali o sofrimento sublimou as criaturas, que são os bravos a serviço da Pátria. Passam militares de várias nações, que a grandeza do dever irmanou na defesa da liberdade humana. Passam homens e mulheres, estas conscientes de que a função de colaborar no consolo e na cura é parelha à dignidade de ser mãe. No torvelinho, reconhece-se a cor dos uniformes brasileiros; entre todos muitos descobrirão vultos amigos. Lá se encontra, enobrecendo a classe médica do Brasil, alguém que estaria a ocupar, no momento, esta tribuna, se não fora chegado o momento de servir o país. Relembrando a figura de Alfredo Monteiro, que deveria paraninfar o ato presente, formulamo-lhe um voto de simpatia e de plena confiança no êxito da sua missão. Na carta que ele redigiu, ao partir para as zonas de guerra e que vai ser lida pelo Sr. Secretário, festeja ao antigo discípulo e colaborador Jorge de Morais Grei o galardão que ora recebe e é por nós também celebrado, de par com os parabéns que lhe oferecemos, na previsão que honrará os créditos da Academia.

 

(Vultos e ideias, 1961.)

 

 

INTERCÂMBIO CULTURAL BRASILEIRO-URUGUAIO

 

(RECEPÇÃO DE F. HERRERA RAMOS)

 

No parabém que a Universidade do Brasil vos oferece, mediante a minha voz, existe mais que simples gesto de admiração pelo vulto do seu novo Membro de honra: apura-se a perenidade do afeto de um povo por outro povo e, assim, a festa transcende os lindes de protocolar outorga de diploma para reafirmar imperturbáveis relações entre países fraternos.

Não há cerimônia de que participem brasileiros e uruguaios que, insensivelmente, se não transforme em consagração da simpatia real que une a Terra de Santa Cruz à República Oriental. Compreenderam-no e continuam a entendê-lo os homens de Estado e de pensamento, no multiplicar tais ensejos e no fomentar-lhes a solenização. Este proceder aproximativo e sincero que tem em personalidades como as do nobre Embaixador Giordano Ecker e do magnífico Reitor Pedro Calmon duas das suas colunas hodiernas, é partilhado pelos que não interferem diretamente nos negócios públicos, mas são movidos pela mesma inclinação afetiva.

É esta comunidade de espírito que agora assinala o progresso científico das duas nações, as quais começam a libertar-se das tutelas alienígenas para a concretização das ideias próprias. Vivemos até há pouco — e vale relembrá-lo — uma fase em que tais influências forma decisivas, doseadas embora pelo nosso discernimento, porque na pátria de Rodó e Ricaldoni, como na de Rui e Miguel Couto, conservamos uma qualidade meritória: a do ecletismo, que nos permitiu tudo importar para selecionar, sem tendências exclusivistas, possibilitando-nos, na atual fase de autonomia, uma visão crítica do que se passa extramuros.

Foi a existência de ideal comum que permitiu que o desenvolvimento de tendências paralelas, já exemplificadas no terreno político, pelos ardores das lutas que, em cada país, forma da autonomia à fixação do regime democrático; na literatura pela evolução que levou do romantismo de Acevedo Díaz e de Alencar ao realismo de Javier de Viana e de Aluísio Azevedo, dos versos líricos de Herrera y Reissig e de Gonzaga aos épicos de San Martín e de Castro Alves; na arte, da música dolente dos indianistas às notas patrióticas de Acuña de Figueroa e de Francisco Manuel.

Bem que o método científico, móvel da verdade, seja uno, como universais são as consequências do seu emprego, todos reconhecem o significado das Escolas e destas se infere o nível da civilização regional. Hoje ensaiamos a marcha para a difusão das nossas próprias conquistas no terreno do pensamento e já falam de nós os homens que se enclausuravam entre acanhadas fronteiras, fechadas por meia dúzia de nações. Precisamos, nesta hora, de ampliar o âmbito das nossas Universidades, que devem ser os termômetros da nossa atividade e fornecer os índices da nossa própria significação. Há, na América do Sul, instituições que são das mais antigas do gênero, mas quase limitadas à formação para misteres práticos e utilitários. Mal se imitou o figurino das velhas instituições, como as de Oxford e de Cambridge, onde os Colégios Maiores, de há muito, congregaram pós-graduados e cimentaram a fraternidade entre os egressos das Universidades.

Não existia intercâmbio de professores, limitadas que eram as delegações docentes à corrente unilateral dos países do Velho para o Novo Mundo.

Teria sido função das catástrofes de 14 e 39 a mudança de panorama? Não É, pelo contrário, a nossa adultidade que se instala, a demonstrar, quanto às nações, um ciclo vital semelhante aos dos indivíduos.

No aproveitar esta hora, com a vaidade que só se pode tolerar na esfera do conhecimento, abandonemos o lugar-comum da crença em uma incapacidade assoalhada pela propaganda tendenciosa das nações idosas e situemos nosso Continente no seu justo lugar, reconhecendo, antes de tudo, a estatura dos seus valores.

Sois um destes, e dos mais dignos, vindes de uma pátria vanguardeira da cultura ao ponto de tornar compulsória a instrução primária e gratuito o ensino em todos os seus graus. O vosso ingresso nos quadros de honra da Universidade do Brasil importa em louvor à altura do vosso mérito e à nobreza da vossa origem.

 

(Vultos e ideias, 1961.)