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Discurso de posse

Quando se vivem os instantes supremos, tudo o que passou aflora suavemente à lembrança, e em tudo, até nos menores contrastes ou coincidências, se descobrem motivos de encantamento.

Assim, ao render-vos graças pela honra do sufrágio com que me elevastes à dignidade do vosso convívio, senhores acadêmicos, é no confronto entre o já longínquo e o presente que descubro a sobreexcelência do privilégio recolhido, e, a um tempo, vejo acentuadas a minha humildade e a munificência da vossa decisão.

Desde que eleito para esta Companhia, entre mim sentira, como nas redondilhas de Camões, que

Ali, lembranças contentes
N’alma se representaram;
E minhas coisas ausentes
Se fizeram tão presentes,
Como se nunca passaram.

Revi-me, então, na casa paterna, chefiada por um magistrado que fez da sua toga objeto de acendrado culto e nela investido deu lição permanente de crença na Justiça. Ali também a minha escola, que outra não tive na infância, e só na adolescência conheci professor diferente daquele, que harmonizava a sua judicatura com o ensino ministrado à numerosa prole. Ali, desde os verdes anos, entrei a compreender a supremacia de princípios, que em meu pai eram obsessivos, e dificilmente outros rumos puderam disputar-me à profissãoa que parecia predestinado.

Volveram-se os anos; e hoje, quando, percorridos todos os degraus de uma carreira médica que foi do noviciado ao magistério, venho ao batismo para outra e nímia distinção, recebo-a numa Poltrona acadêmica em cujo espaldar se inscreve o nome de um dos mais puros estros de nossa Literatura – ele próprio iniciado no estudo de leis e descendente de juízes –, Poltrona iluminada, durante sete décadas, pelas fulgurações de cultores do Direito: quatro membros de altas cortes judiciárias e um grande advogado fiaram a tradição que vinculou todos os ocupantes da Cadeira 11 e, neste momento, de novo me coloca sob o ínclito patrocínio.

Infortunadamente, não há mais que esta aproximação entre os luzeiros de outrora e a penumbra de hoje. Porque todos aqueles também foram príncipes das Letras e, diante de vós, tendes, agora, o médico, que não poderia disfarçar a quase exclusividade de sua condição, e nem jamais pretendeu fazê-lo, escravizado, como é, a uma atividade, no seu egoísmo, dominadora.

Rejubila-me testemunhar que a Academia, sensível à influência das várias correntes do pensamento e da expressão, preserva, contudo, normas inseparáveis da sua essência, entre elas a de recrutar elementos nas diversas áreas culturais. Nesta prática, que Machado de Assis e Nabuco firmaram, como primeiro voto da instituição, reside, sem dúvida, se não a causa principal da sua grandeza, pelo menos o elemento fundamental do seu prestígio.

MEDICINA E LETRAS

Não respigarei na História, porque é tarefa realizada, nomes de médicos que pertenceram a todos os grêmios literários e, no Brasil, desde a Academia dos Felizes. Apraz-me, entretanto, vê-los em nossos dias e lembrar, ao lado dos que decididamente migraram para as novas atividades e nelas se mostraram excelsos, os que não desertaram a Ciência e buscaram nas Letras o complemento às suas tendências mal encobertas pelo pudor do exercício profissional. Há ainda quem precocemente haja mudado de caminho, como os nossos Alberto de Oliveira e Bilac – este último a confessar que as primeiras inspirações poéticas lhe surgiram nos intervalos de suas vigílias de estudante de Medicina – e quem só tardiamente nele enveredou, à semelhança do professor de cirurgia e Acadêmico francês Henri Mondor, que, nas pausas de trabalho em uma ambulância de guerra, conheceu a grandeza de Mallarmé, e, a partir de então, iniciou exaustiva análise interpretativa da obra do grande simbolista.

Em nossa terra, as raízes desse pendor encontram-se nos inícios do ensino universitário, ao tempo limitado às ciências médicas e jurídicas. A eloqüência dos primeiros mestres dos dois ramos de conhecimento criou fecunda emulação entre eles, e todos porfiaram no engalanar as suas preleções com lances de retórica e apuros de linguagem, quando a técnica ainda não repousava sobre a formidável massa de conhecimentos objetivos que, a pouco e pouco, vai absorvendo integralmente os profissionais da Medicina. Nem só a Oratória, mas, por igual, outros gêneros literários desviaram tantos, e a tal ponto, da rota primitiva que muitos passaram a escritores de ofício.

E deve atentar-se no reverso: homens de letras que influíram na construção do edifício da Medicina. Não me refiro aos que procuraram exemplificar pacientes e estados mórbidos já descritos, por vezes mal conseguindo caricaturar uns e outros ou mesmo deturpar conhecimentos, mas aos que podem ser considerados precursores no observar. Não estão na obra de Camões aspectos originais das moléstias de carência? A dualidade biotipológica, magistralmente expressa em Cervantes, foi apenas ratificada pelos estudiosos da constitucionalística, persistindo integral o conceito que opõe um ao outro os dois principais caracteres humanos. Revendo quanto se encontrava na bibliografia médica do seu tempo, antes de expor idéias que supunha originais, um grande ortopedista britânico, William Little, só em Shakespeare encontrou referência às anormalidades do nascimento para explicar as más formações, tais como as descritas pelo genial dramaturgo em “Ricardo III”.

Justificando até designações epônimas, lembrem-se a doença de Pickwick, inspirado na rotunda e sonolenta personagem de Charles Dickens, a síndrome de Münchausen, copiada do mitômano Barão que Rudolf Erich Raspe descreveu, o complexo de Alice no País das Maravilhas, em que Lewis Carrol expôs as delusões e os distúrbios da personalidade, por ele experimentados no período prodrômico da enxaqueca. E o bovarismo que Jules de Gaultier retirou da heroína de Flaubert? E as auras epilépticas referidas, como em ninguém, por Dostoiewski? É, pois, antigo e frutuoso o entendimento da Medicina com as Letras.

Poderá, entretanto, um médico, que se confessa esmagado pelo dever de cada hora, falar de um poeta? Não serei o primeiro a fazê-lo e – perdoaime que assim me exprima – é bem que se introduza na apreciação do artista um elemento de outra esfera.

À própria música existiram ouvidos indiferentes, senão hostis, e isto se afirma, por exemplo, de Victor Hugo e Théophile Gaultier, para aludir a mestres do ritmo. À Poesia jamais os houve, sobretudo quando nela se transfundem os reais e eternos sentimentos populares. Desta natureza a do meu antecessor; Poesia compreendida por todos e a que se aplicaria com justeza a observação de Salvador Rueda:

Cantar que va por la vida
Parece una mariposa
Que, en lugar de flor en flor,
Resvuela de boca en boca.

O PATRONO

Exorna a Cadeira 11 o nome de um daqueles românticos da segunda fase – breves clarões no céu das Letras – a produzir também aceleradamente, como o viandante que se apressa por ver se adensarem as sombras da noite.

Luís Nicolau Fagundes Varela, nos seus traços biográficos e na sua obra poética, revela-se um instável com traços ciclotímicos, características da personalidade comumente rotulada de boêmia. Oscilante entre a alegria e a tristeza, embora os momentos depressivos nele fossem predominantes e se agravassem com a adversidade afetiva que o rastreou, capaz de extasiar-se em salões dourados como ante cenas campestres, inapto a fixar-se em qualquer programa de vida, a ponto de ser faltoso às aulas e de não ultimar o curso jurídico, iniciado em São Paulo e prosseguido no Recife, encontrou ensejos que lhe permitiram atingir os cimos do lirismo no seu meio e na sua época.

Às suas disposições temperamentais vieram somar-se o álcool, as desventuras sentimentais, a incapacidade de prover a própria subsistência e, daí, o nomadismo e a instabilidade do humor, tudo a contribuir para os matizes do seu estro ora amoroso, ora elegíaco, ora bucólico, ora patriótico, ora religioso.

A perambulação irrefreável, a hiperatividade demonstrada quando do naufrágio do navio em que viajava do Rio para Pernambuco foram a resultante de excitação psicomotora, que alternava com acentuados sinais melancólicos.

A morte de um filho, ainda pequenino, oriundo de casamento prematuro e de breve duração pelo desaparecimento, logo a seguir, da linda esposa do poeta, legou ao patrimônio literário do País um dos epicédios mais famosos da língua, o “Cântico do calvário”. Nunca mais, após o transe, se refez Varela emocionalmente, ou melhor, tais eventos agravaram-lhe a predisposição ingênita, apenas mitigada pelo segundo consórcio.

Ferido pelo infortúnio, conseguiu, a um tempo, retratar magistralmente a Natureza e traduzir o sentimento incomportável.

Dominado embora pelo subjetivismo, interiorizado, Varela olhava em derredor e, conquanto não se possa dizer da sua poesia que exprimiu preocupação social, apontava, não raro, os terríveis contrastes que impressionam os homens de coração e de inteligência.

O etilismo, no qual se refugiou, foi, em parte, o selo do desequilíbrio emocional, em parte uma atitude deliberada para subtraí-lo às agruras da vida ou a busca de um estimulante artificial para o seu estro. Tudo concorria para estigmatizar-lhe a existência, arredando-o do convívio social e fazendo que no tóxico procurasse lenitivo e até inspiração, o que levou Sílvio Romero a rotular-lhe a poesia de – lirismo báquico.

Alguns gênios poéticos, que deveram a inebriantes a provocação de imagens mentais projetadas em suas criações, bem exemplificam a preexistência de lastro depressivo que atingia as raias da morbidez: assim os estados oníricos produzidos pelo álcool em Hoffmann, em Poe e em Schiller, a riqueza das alegorias despertadas pelo haxixe em Baudelaire. Isto sucedeu também a mestres da pintura: é o caso de Van Gogh, que, à luz de recentes revelações, poderia ter particularidades dos seus quadros devidas à influência do absinto. O fenômeno já fora suposto por Perera quanto a El Greco, tornando provável a idéia de que, em certas paisagens de Toledo, o famoso pintor cretense denuncie os distúrbios de percepção visual que aparecem na embriaguez pelo cânhamo indiano.

Ao engolfar-se na toxicose, disse Varela:

Pois bem, seja de vinho,
No delirar insano,
Que afogue minhas lágrimas mesquinho!...

E, já sob os efeitos enólicos:

...corre-me nas veias
Um sangue mais veloz...
Anjos... inspirações.., mundos de idéias,
Sacudi-me da fronte as sombras feias
Deste cismar atroz!

Mas, escravizado à necessidade do excitante:

Mais vinho! Oh! filtro mago!
Só tu podes no mundo
Mudar os giros do destino vago,
E fazer do martírio um doce afago,
De uma taça no fundo!

O oscilar entre dois pólos afetivos o faria escrever:

Gosto de queimar incenso
Sobre as aras da alegria...

E, em outro passo:

Nem uma luz de esperança,
Nem um sopro de bonança
Na fronte sinto passar!
Os invernos me despiram
E as ilusões que fugiram
Nunca mais hão de voltar!

Enquanto isso, ora se revelava esperançoso:

Eu quero andar! Eu sei que, no futuro
Inda há rosas de amor, inda há perfumes,
Há sonhos de encantar!
Não, eu não sou daqueles que a descrença
Para sempre curvou, e sobre a cinza
Debruçam-se a chorar!

ora melancólico:

Quero morrer, que este mundo
Com seu sarcasmo profundo
Manchou-me de lodo e fel,
Porque meu seio gastou-se,
Meu talento evaporou-se
Dos martírios ao tropel.

A nota sombria era, contudo, a tônica em Varela, como em Álvares de Azevedo, em Casimiro, em Laurindo, em Junqueira Freire.

Às vezes, no entanto, o poeta de “Noturnas” abandona a atitude individualista para vibrar com a questão Christie, com a revolta nacionalista de Benito Juárez.

É claro que, para essas expansões, concorria a situação histórica, visto que o movimento romântico se desencadeou no Brasil ao tempo em que se acendiam campanhas fundamentais para o destino da nacionalidade, exprimiu anseios políticos e sociais, contribuindo, com a sua temática e a sua forma expressional, para a autonomia da nossa Literatura.

Foi tão profunda a influência dessa Escola no meio intelectual brasileiro – a despeito dos movimentos que se seguiram em nossa poesia, com o prestígio dos seus adeptos e alto valor da respectiva produção –, que ainda se encontram acentos românticos em poetas atuais, não parecendo arrojado prever se haverão de lobrigar em épocas porvindouras, porque a afinarem com a sensibilidade brasileira.

À poderosa corrente não se poderia subtrair.

O FUNDADOR DA CADEIRA E DA ACADEMIA

Se em Lúcio de Mendonça, como em Adelmar Tavares, o desempenho de funções judicantes e de atividades literárias atingiu o equilíbrio, era indisfarçável que as últimas lhes sorriam mais que as primeiras.

Em Lúcio, poeta e jornalista, crítico e romancista, jurisconsulto e orador, jamais vacilou a crença na Academia, de que foi o pertinaz idealizador e o jardineiro dedicado.

Bela claridade a que dimana do seu espírito que legou às Letras brasileiras tantas páginas de elevada inspiração!

Foi o menino de quem se informou ter aprendido a ler sem professor, visto depois a redigir jornaizinhos no colégio, a alvorecer na Poesia com um livro prefaciado por Machado e em que se revelava o “mal do século”. Dizia-lhe o grande romancista, na carta introdutória ao volume: “É do tempo esta Poesia prematuramente melancólica. Não lhe negarei que há na sua lira uma corda sensivelmente elegíaca e, desde que a há, cumpre tangê-la. O defeito está em torná-la exclusiva.”

Ingressa nas lides forenses. Adepto veemente da campanha republicana, vai aos teatros e à praça pública, na pregação das suas idéias, jamais, porém, abandonando a Poesia em que se estreara promissoramente. Coroa-lhe a vida pública a nomeação para Ministro do Supremo Tribunal Federal.

No prélio travado para a fundação desta Casa mobilizou todas as energias, investindo de tal forma contra as hesitações e a hostilidade ambientes, que bem se lhe poderia aplicar a frase de Victor Hugo: “Escrevia com uma mão e combatia com as duas.”

E “a realidade se fez (comentou Adelmar Tavares), partindo do ímpeto magnífico de Lúcio, da serenidade apostolar de Machado, do equilíbrio ático de Nabuco”. O afeto de Lúcio de Mendonça por Machado de Assis foi-lhe retribuído até os últimos dias, quando voluntariamente de tudo se omitia, porque, antes, a cegueira já o havia afastado de todos: e, ao receber do autor de Memorial de Aires o exemplar do volume recém-publicado, agradece-o com frases comoventes: “Será o primeiro livro seu que leio por olhos de outrem... Se não tem medo de almas do outro mundo, deixe que lhe beije as mãos criadoras.”

OS SUCESSORES DE LÚCIO

O nome de Pedro Lessa sinonimiza o de grande magistrado brasileiro.
 
Senhor de boas humanidades, inicia o curso jurídico en São Paulo, quando a Escola ilustre era um dos focos de propaganda contra o regime monárquico. Entra, de pronto, no Jornalismo Estudantil, a forja de onde sairiam alguns dos legítimos gladiadores da nossa Imprensa. O velho templo de ensino era a esse tempo, como o de Recife, chamado Academia e, em verdade, a um e outro bem se ajustava a designação, porque múltiplas atividades intelectuais em ambos os cenáculos se executavam e aprimoravam.

Lessa, manifestando o seu gosto pelos estudos filosóficos, alista-se no evolucionismo spenceriano, que, àquela altura, poderoso atrativo exercia sobre a mocidade.

Professor da Faculdade, Ministro do Supremo Tribunal, a cujo auditório acorriam todos os profissionais do Direito, para ouvir-lhe a palavra oracular e a sentença justa, foi, além disso, o ensaísta, o conferencista que tão bem estudou João Francisco Lisboa, o polemista, o doutrinador, o integral filósofo do Direito.

“Um dia”, comentou Castro Rebello, “a consciência abriu- lhe as portas da fé... Extinguiu-se envolto na pureza das suas convicções.”

– Não ensejaram os fados a Eduardo Ramos assumir a Cadeira a que fora alçado pelos incontestáveis méritos de escritor diserto.

Do baiano ilustre proveio a iniciativa dos favores oficiais com que, ao findar do século, foi a Academia agraciada em Lei do Congresso, e esta primazia atesta-a a carta que, a 17 de dezembro de 1900, lhe dirigiu Machado de Assis. O parlamentar apresentou e defendeu projetos importantes relativos à intervenção nos Estados, à organização judiciária e à criação de uma Universidade na capital do País. O jurista revelou a sua altura na cátedra e no foro.

 

O autor de Prosas de Cassandra deliberadamente situava em plano secundário a sua produção poética, a despeito do retumbante êxito daquela exibição no Teatro São João, da capital baiana, durante uma festa em benefício de Carlos Gomes. Ao declamar a estrofe em que pedia à mãe patrícia acalentasse o filho, cantando música da mais brasileira das nossas óperas:

Faze d’O Guarani a alma de tua alma
Que a música do berço é a música da vida

provocou delírio, depõe Constâncio Alves, testemunha presencial do sucesso, e que de Eduardo Ramos também dissera: “A sua primavera intelectual floria no inverno.”

– Em João Luís Alves se afirmou a capacidade de uma aguda inteligência adaptar-se a multifárias solicitações que lhe asseguraram carreira ascensional nos três poderes da República.

Vai de Minas bacharelar-se em São Paulo, onde forma no grupo de Afonso Arinos, Herculano de Freitas, Carlos Peixoto Filho, Mendes Pimentel. Ingressa no Ministério Público, passa à Magistratura e ascende à Suprema Corte; representante do povo na Assembléia Legislativa de seu Estado, atinge as duas Casas do Parlamento Nacional; secretário do Governo na província natal, chega a Ministro de Negócios Interiores e Justiça.

O advogado conquistara uma cátedra e ensinara o Direito com a proficiência de quem largamente lhe praticara os ditames, o erudito sabiamente comentara o Código Civil Brasileiro.

Foram-lhe traços dominantes o equilíbrio no julgar, a argúcia no debater, a firmeza no comandar.

ENCONTRO COM ADELMAR TAVARES

Descubro no escrínio de remotas lembranças os meus contactos primeiros – e definitivos, porque através da consagração popular que o imortalizou – com o estro de Adelmar Tavares. Era em Tutóia, cidadezinha litorânea do Maranhão. Reuníamo-nos, crianças, aos adultos, em torno de um intérprete de prestigiosas canções da época. Naquele sítio, cercado de dunas, às noitescabia a descrição de Machado: “Eram deliciosamente belas, os morros palejavam de luar e o espaço morria de silêncio.” Alçava-se, então, a voz do cantor, ritmada pelo som de rústico violão, e os acordes de “Estela” nos inebriavam. Nunca ouvi dizer de quem eram, nem o menestrel o sabia. Esta a verdadeira Poesia, no dizer do próprio bardo:

Nem há reinado maior
Que o reinado de um poeta
Que o povo sabe de cor.

Os versos, quando sublimes, são como certas personagens de romance: acabam por libertar-se dos criadores. “As nossas obras”, ‘observou Jean Cocteau’, não tardam a separar-se de nós e, mesmo quando as escrevemos ou as pintamos, sentimos esta necessidade, que elas experimentam, de fugir de nós e viver a própria vida.”

Assim ocorreu com a daquele de quem me incumbe traçar um perfil.

PERÍODO DE FORMAÇÃO

Adelmar Tavares da Silva Cavalcante nasceu em Recife, aos 16 de fevereiro de 1888. Mal completou um mês de idade, foi transferido com a família para a cidade de Goiana, a bela mesopotâmia de onde partiram muitos heróis das guerras luso-flamengas, a velha Goiana das lutas nativistas, a pioneira das campanhas pela extinção da escravatura.

Ali, aonde o levaram as atividades comerciais de seu pai, viveu toda a infância, em contacto com a gente simples do Nordeste, que o impregnou da resignação e da suavidade, companheiras de toda a sua vida, e também o temperou para as lides que teria de enfrentar. Na contemplação daqueles locais, daqueles rios, daquelas flores silvestres, daquele povo humilde e bom, das cirandas famosas dos fins de semana, conheceu os seresteiros que se exibiam em serenatas, esbanjando inspiração nos desafios à viola. Tudo isso entrou cedo a influir-lhe no espírito, confirmando o prognóstico do seu destino poético, nascido que fora em um sobradão, em cujo andar térreo se instalava a “Loja das Estrelas”.

Guardaria para sempre, e haveria de revelar no plectro, a saudade da terra, fixando para pano de fundo das suas impressões os dias magnificamente ensolarados do sertão pernambucano e, sobretudo, as noites inundadas de luar, com a abóbada celeste a parecer tão baixa que os meninos pensavam atingi-la de um salto. Esta luminosidade resplandece, a cada passo, no seu verso.

Maravilhado com a paisagem da meninice, diria, mais tarde: “Que se me aponte quem não tenha uma árvore no fundo do coração.” A sua era gasalhosa e sobranceira:

Se eu pintasse minha infância,
pintava – num sol de estio,
a sombra de uma ingazeira
debruçada sobre um rio...

Perceberia em tudo a beleza, que transportaria aos seus versos, de modo tal que ninguém pode subtrair-se à admiração pelo seu lirismo. Mas também revelaria laivos melancólicos – e não proviriam estes do que ocorria em derredor?

Teria visto, de quando em quando, chegarem a Goiana as levas de retirantes vitimados pelas intempéries que, ciclicamente, se desencadeavam nas cercanias.

Extraordinária a fixação do sertanejo na zona onde as mutações ocorrem com a fúria de catástrofe!

Um dia, o sol esbraseia, desferindo os seus dardos de encontro à vegetação hipotrófica, desnudando-a de flores e de folhas, enxugam-se rios que pareciam perenes, fogem aos seres vivos os elementos essenciais à existência, reduzem-se os rebanhos a florestas de esqueletos, e o habitante humilde é degredado para longe da terra bem-querida, na desoladora quadra das secas periódicas.

Noutro dia, transmuda-se milagrosamente o cenário, numa apoteose de ressurreição, a ponto de serem quase irreconhecíveis os sítios havia pouco desolados e maninhos e agora luxuriantes e dadivosos, reassegurando a vida e a confiança, até que de novo, “surdamente, imperceptivelmente, num ritmo maldito, se despeguem a pouco e pouco e caiam as folhas e as flores, e a seca se desenhe outra vez, nas ramagens mortas das árvores decíduas”, no dizer de Euclides.

Nesse ambiente de luta portentosa, agiganta-se o homem que ascende à categoria de força da Natureza, porque a tanto o provoca a adaptação vital.

O lutador ciclópico tem acentuada, entretanto, a afetuosidade natural e transfere às trovas magoadas a tristeza com que procura neutralizar as agruras da existência. Canta, e canta brasileiramente, a terra e, sobretudo, a gente e seus sentimentos. É no verso que se lhe extravasa a sensibilidade fina, e os primeiros estímulos que o suscitam traduzem simplicidade e pureza, num horizonte limitado.

Durante toda a vida, Adelmar Tavares terá, por isso, um sino a planger no coração.

Através dos tempos, ressoar-lhe-iam na lembrança os campanários que marcam todos os acontecimentos, alegres e tristes, os grandes passos da vida da cidadezinha, a todos conclamando para participar das emoções de cada qual, e tornando-as coletivas, como sabe fazê-lo a solidariedade humana do sertanejo brasileiro.

Tais acordes teriam suavidade comparável à dos coros de anjos a entoar Aleluia e, pela doçura, capa.zes de suspender o cálice suicida pendente das mãos do Dr. Fausto. Quantas vezes, na infância, se sentiria contaminado de unção, como a despertada pelo bronze cantado por Lamartine:

Oh! quand cette humble cloche à la lente volée
Épand comme un soupir sa voix sur la vallée,
Voix qu’arrête près le bois ou le ravin!

E Adelmar recordaria:

Sinos de Goiana, que saudade imensa
trazem-me esses sinos no meu coração.
Nove igrejas, nove, barulhavam sinos,
da Misericórdia, por defuntos ricos,
do Rosário, pobre, por um preto irmão.

Bate agora o Amparo pelo dia santo.
Vai haver novena, bate o da Matriz,
Ouço um sino fino... Esse é o do Convento
repicando alegre por um casamento,
vem da Soledade o repicar feliz.
Só o dos Martírios continua mudo,
tem caída a torre dos seu brônzeos sons,
não se abre há tempos essa velha igreja,
mas o povo conta que foi vista aberta
noite morta, um dia, por assombração...

Nove igrejas, nove.
Velho Carmo, escuto
teu bater de sino, quando finda o dia,
Vejo teu cruzeiro, na campina assente,
tua torre negra toda encapuzada
como um frade orando pela tarde fria...

Como aqueles sinos de Manuel Bandeira, “Sino do Bonfim,/Sino de Belém,/Sino da Paixão”,

batem na minha alma, quando estou sozinho,
pelas tardes frias, esses longes sinos...
– Sinos de Goiana, que recordação!...

Do seu estro nem só se evolam aqueles repiques e dobres, mas também o gemido dos “verdes canaviais das suas centenas de engenhos de açúcar – engenhos cujos nomes fazem sonhar, como nos versos de Ascenso Ferreira – Bugari, Mulungu, Pau d’Arco, Mariúna”. Fixaria, também, da Goiana da meninice,as ruas compridas, falando dos seus santos, dos seus guerreiros, dos homens da sua história. Seus becos e travessas de casas velhinhas, embiocadas, com os telhados negros, pendidas para a frente, humildes,falando à lenda do povo dos tesouros escondidos no seu socalco... As águas pensativas, escuras, dos seus rios e o canal coalhado de barcaças,com “as suas velas enroladas e pendidas”, recebendo coisas para levar para longe. De tudo lembraria sempre “na tarde da vida”, quando “as recordações cobrem a nossa alma, como, ao morrer do dia, as andorinhas, os telhados das velhas igrejas”.

Depois, as reminiscências escolares, as aulas de Araújo Filho, de Carneiro Duarte e de Honório Monteiro. O último seria por Adelmar retratado no seu discurso de posse na Academia Pernambucana:

Como que o vejo: um fraque negro, umas calças brancas espelhantes,de bem gomadas que eram; um plastron verde pintalgado, um cigarro meio apagado, esquecido ao canto da boca; a escola à Rua da Misericórdia, em Goiana; uma porção de meninos barulhando, gritando,estudando em voz alta as lições, vozeando, grasnando, como um viveiro de pássaros; uma palmatória amarela, comprida, hierática,sobre a mesa... e o professor esbravejando como um possesso, a cara fechada, os olhos enérgicos, ameaçador. Depois, foi que vi que tudo aquilo era mentira... Sua alma era um favo de uruçu silvestre. O professor era um poeta!.

As musas que o poupavam das mãos justiceiras do mestre-escola passaram, desde então, a provocar o discípulo. De quando em quando, desaparecia da casa-grande do Itapirema, suscitando apreensões da mãe solícita e da ama, tão querida que alcunhada de “Mãe-outra”. O velho Francisco tranqüilizava, porém, a esposa: “Maria, sossega. Hoje chegou cantador na casa do Marcelino. Aposto que o pequeno está lá.” E estava, deliciando-se com os repentes de Laurentino Goianinha, Adelino Gato Bravo, José Eugênio, Luís Soares, sobretudo do primeiro, negro pachola, que “era para aqueles arredores, para a sua camada, para a sua esfera o que era Hugo para o seu povo, um Heine, um Bilac para nós”.

Um dia, nesses longes de simplicidade, o filho único, adorado pelo pai, cuja imagem relembrou,O chapelão caído sobre a cabeça branca de algodão.Buscando o campo –, o dia mal nascido,voltando a casa, o dia em escuridão,tem, melancolicamente, interrompida a ingênua felicidade. Naquela data, a primeira grande dor da sua vida:

eu, pequeno, vi, cavando,
sete palmos de campo, soluçando,
uns homens rudes... Tempo que já vai!

“Francisco, adeus”! clamavam, repetindo.
Meu pai desceu de branco... Ia dormindo...
Fechou-se a terra... E não vi mais meu pai!...

Retorna, então, a família a Recife, e Adelmar ingressa no Instituto Ginasial Pernambucano, onde, anos mais tarde, iriam Múcio Leão e Barbosa Lima Sobrinho encontrar eco de sua passagem. Este último recolheu-lhe a fama de fazer versos não para a glória das páginas literárias, nem para a meditação ou a adivinhação das leituras vagarosas, mas para a festa das serenatas, nas noites enluaradas. Verso que o namorado pudesse dizer, no portão de jardins humildes, à moça que o escutava, atenta aos ruídos que viessem da própria casa, numa época em que os pais ainda podiam tomar conta de suas filhas.

Possivelmente à conta dos devaneios literários, não foi, de início, aluno apreciável. Mais de uma vez, invectivou-o o professor Cândido Duarte: “O Sr. sempre atrasado, seu Adelmar! Esteve decerto a ver brigar os canários... Aposto que não sabe as lições.” E, em verdade, não sabia. Mas, de uma feita em que certa representação teatral requestara a meninada do colégio, ninguém se preparou para a argüição, e Adelmar, que ficara estudando, a tudo respondeu com segurança, ganhando, desde então, lugar no primeiro banco.

Por fim.., a Faculdade! A esse tempo a grande Escola centralizava, com a sua congênere paulista, os anelos de grande parte da juventude brasileira. Da bela Mauricéia diria:

... a minha Recife de estudante! Sem cinemas, sem bares, sem palácios, mas com a nossa vida acadêmica, a nossa alma de trovadores, as nossa tertúlias, as nossas serestas, as nossas repúblicas. Recife era a Veneza Canção! Era tão intenso o luar, tão fina aluz, que a cidade ficava como envolvida numa atmosfera de sonho... As casas, os telhados, os jardins, as águas que recortam a urbis, as pontes, os barcos que, presos ao cais, adormeciam fatigados das pescas, as igrejas – tudo era branco, branco de leite, de lírios, de açucenas, de jasmins sei lá – de inocência. Recife ficava como urna noiva que vai casar... Linda! E nós, com a alma dos dezoito anos, a cabeça cheia de sonhos, não resistíamos; escancarávamos as janelas e o luar entrava a jorros.

Os luares recifenses convidavam às serenatas planejadas pelos estudantes- trovadores, de uma janela para outra, nas estreitas e velhas ruas onde se situava a maior parte das “repúblicas”. Tudo corria bem para o grupo de noctívagos, até o dia em que a fúria de um pai fez quebrar a pauladas, por dois emissários, as costelas e o instrumento musical de um colega, que Adelmar dizia piauiense, mas que deve ter sido pernambucano; o enamorado, a dedilhar o pinho, em frente à casa de uma pretendida, mal desferira os primeiros versos de uma quadra em voga:

que estará ela fazendo
a esta hora, longe de mim?

quando os mensageiros responderam: “está dizendo que vá para o diabo que o carregue, refinadíssimo canalha”, e retiraram da arena o troveiro melífluo.

Recife mantinha íntegra a tradição dos seus grandes dias de metrópole do ensino jurídico. A cidade gravitava em torno do velho Convento do Espírito Santo, onde alguns dos maiores jurisconsultos brasileiros não apenas adestravam a juventude, mas também a conduziam nas grandes avenidas culturais e cívicas.

Aquelas velhas arcadas foram também o palco de tribunos famosos, que pregavam a Abolição e a República e fulminavam o cerceamento da liberdade, a tal ponto que a Escola gloriosa preparava também para a vida e para as liças políticas e sociais. As aulas, a que assistiam até estranhos à classe estudantil, curiosos da eloqüência e das idéias de mestres veneráveis, nem só por isso eram o maior atrativo intelectual de muitos dos futuros bacharéis, e a elas alguns compareciam, dizia Adelmar, mais para que os lentes os vissem.

No Teatro de Santa Isabel, ouviu ainda a voz portentosa de Nabuco, relembrando, na sua última viagem ao Brasil, dramáticos momentos da campanha abolicionista, e, no mesmo palco, escutou o verbo doutrinante de Esmeraldino, evocando as primitivas formas de repressão aos delitos, para acompanhar, através dos tempos, a evolução da criminalística rumo à humanização das penas. Alcançou, também, presente de tanto repetida, a fama de Clóvis, cuja palavra era tão mansa quanto sábia, e a de Tobias, que, erudito entre todos, ditou novos rumos à Cultura brasileira. E, alteando-se do concerto de Ciência jurídica e de Filosofia, o eco dos condoreiros, que, para sempre, marcou a tradição literária da cidade. Na Poesia popular é que haveria, entretanto, de afinar os ritmos, que melhor lhe traduziam a agudeza da sensibilidade. Assim se configurava para ele “a tradição coimbrã de uma estudantada trovadora, que impunha, como ação passível de pena, dormir com luar no céu e violões na terra”.

Raros os que ali não tentavam versejar, na demanda da glória literária ou, ao menos, visando à correspondência afetiva. Em Adelmar eram sobretudo fatores constitucionais que o impeliam para o metro, nas horas de meditação, o que depois procurava justificar:

A gente nunca está só...
Ou se está com uma saudade
de um sonho desfeito em pó,
ou se está com uma esperança
de nova felicidade,
no coração que não cansa...
Sempre uma sombra com a gente,
constantemente...
Uma sombra... Boa... ou má...
– Só é que nunca se está.

Cultivaria particularmente a saudade das estudantinas com as toadas e os harmônicos de um violino
que geme e ri, que grita e que cicia...
sobe em dorida imprecação, gargalha,
clama, pragueja, e se enfurece e ralha,
E vem descendo, e anseia e se quebranta
e trilha, e arrulha, e chora, e reza e canta!

Aos encantos naturais de Recife se somavam os de Olinda, onde outra velha abadia fora o berço do ensino do Direito no Brasil. De quando em quando, rumavam os estudantes aos locais, para admirar-lhes os majestosos crepúsculos, que Adelmar pintou:

Aquela praia linda,
de Milagres, plantada à beira-mar de Olinda,
ao pôr-do-sol, é como um sonho que se esfuma...
...............................................................................
Pelas tardes serenas,
em surdina,
passa um rumor de penas.
São elas – são as tristes andorinhas,
que vão falar de amores marinheiros,
e de fadas marinhas,
aninhadas às folhas dos coqueiros...
....................................................................................
– Milagres, que é que têm teus coqueirais sombrios?
Que estranhas emoções, ao pôr-do-sol, revelas?!
Quanta esperança vem no fumo dos navios!...
Quanta saudade vai no côncavo das velas!...

O ADVOGADO

Quando Adelmar iniciou os estudos jurídicos, fê-lo em época na qual acrescentar um doutor aos brasões domésticos era quase compulsório para as famílias nordestinas de certa categoria. Até as que eram parcas de recursos nisso se confundiam com as mais favorecidas, procurando que os filhos se elevassem socialmente, e saíssem do anonimato por esse mecanismo.

Não sei, portanto, se, no caso, foi consultada uma vocação legítima ou se apenas obedecida a velha praxe. Certo é que não parecia ele talhado para a advocacia, profissão que demanda os olhos atentos nos prazos do foro e não absortos na contemplação das estrelas. Dentro do embrião de jurista, que se preparava para os altos vôos forenses, palpitava, aparentemente inconformada, a alma do poeta, que haveria de reafirmar-se pela existência inteira. Mais tarde, a enfrentar responsabilidades profissionais, forjava o plano de despedir os volumes literários e dedicar-se integralmente às leituras científicas, porém... confessava: “No primeiro jornal que me caía às mãos, trazendo um artigo sobre a sucessão dos colaterais e um soneto enquadrado em florões caixa-alta, eu lia o artigo sobre a sucessão dos colaterais, mas lia primeiro o soneto.”

Atraía-o a antiga capital do País e, em 1910, ano seguinte ao da formatura, aporta ao Rio. Aqui vem encontrar ainda uma geração de poetas dos mais significativos da nossa Literatura. Trava relações com todos eles e a todos se fixa de modo cordial.

Mas era necessário advogar para viver e, entre os deveres profissionais, se inscreve o ingresso nos grêmios, que se destinam a conhecimentos recíprocos e representam lídimas escolas de aperfeiçoamento.

Na Sociedade Brasileira de Criminologia vai ocupar uma Cadeira apadroada por Oscar de Macedo Soares, autor de comentários ao Código Penal, volume que era o texto de estudantes e advogados.

Tendo de fazer o elogio do jurisperito, recordou:

Nas compridas noites de vésperas de exame, eu tomava notas na biblioteca da Escola, mas era pelo meu “Macedo Soares” que encontrava roteiro seguro aos João Vieira, aos Florentinos e Tomás Alves, Tobias e Barbalhos, Escorel e Viveiros,para o preparo dos “pontos”, camarariamente trocados entre companheiros de “república”.

E talvez se haja inspirado num exemplo dos inícios do próprio Macedo Soares, para abandonar a advocacia. Rodrigo Octavio narrou o caso: com Raul Pompéia e Oscar, o memorialista de Coração Aberto alugou na Rua dos Ourives uma sala por trinta e cinco mil-réis mensais e nela abriu escritório. Durante os três longos meses em que lá compareceram pontualmente os causídicos, apenas um constituinte se apresentou, levado por Macedo. Alvoroçadamente, foi o cliente cercado pelos três postulantes da justiça, que, entre si, já imaginavam o tipo de ação cabível na espécie. Mas, o sujeito declarou candidamente não possuir dinheiro sequer para os selos da inicial.
 
Confabularam os doutores e resolveram... que o homem também não tinha razão!

No tumulto das varas, que assombra os leigos e quase desanima os interessados, fazendo-os supor que ninguém lhes presta atenção aos argumentos, iniciou a vida pública e chegou a advogado do Banco do Brasil, mas não era a sua rota, para logo substituída.

NO MINISTÉRIO PÚBLICO

Demorado estágio no Ministério Público entrou na trajetória profissional do bacharel em leis. Exerceu, de início, funções na 5.a Promotoria do então Distrito Federal. Quem conhecesse o poeta e lhe houvesse aquilatado a finura da sensibilidade prognosticaria talvez o transitório da função, na qual teria de levar alguém a contas com a justiça. Entretanto, a sua inteligência e a sua cultura asseguraram-lhe acesso a todos os cargos da carreira e ensejaram-lhe a redação de trabalhos julgados de valor pelos competentes. Daí o seu prestígio nos meios especializados, onde todos também lhe exaltavam a dignidade e a isenção.

Dessa época é a conferência em que examinou o papel do “automóvel perante a Justiça Criminal”. O trabalho é pioneiro, e tão curioso e palpitante como o são os que agora versam o direito interplanetário. Encerra, porém, frases que, hoje, chegam ao pitoresco, visto como proferidas há cinqüenta anos, no início daquela guerra que marcaria a transformação do mundo, com o Rio de Janeiro de dois mil e quinhentos veículos, e numa época em que era inconcebível que damas os dirigissem. O pavor infundido à pacata população pelas máquinas homicidas levou Adelmar a uma tribuna de conferências, para soltar aflito brado de alerta: “Atravessar o Largo da Carioca ou a Praça Tiradentes, clamou ele, é hoje tão arriscado quanto saltar do morro da Urca”, e concluía: “Solver o problema dos automóveis é, deve ser, tão importante e capital como foi o da febre amarela...”

O MAGISTRADO

A 15 de maio de 1940, como decorrência do merecimento demonstrado em já longo tirocínio profissional, foi nomeado Desembargador no Tribunal de Apelação do Distrito Federal, quando, na sua própria frase, já estava a “escutar os bronzes do campanário nas pausadas pancadas do recolher”. Sempre, porém, a procurar nexo entre as suas atividades:

Sinto Poesia e Justiça
Nascidas da mesma luz.

Revelou-se, entretanto, um completo juiz. Dos que, tendo presente a letra da lei, utilizam, para interpretá-la, as suas qualidades de homem. E Adelmar era substancialmente um bom. Lembrava Raimundo Correia, poeta como ele e como ele magistrado, de quem se sabe quanto sofria, ao infligir penas. Do grande parnasiano diferia, no entanto, pela capacidade comunicativa e por ostentar a sua lira, com a qual se apresentava nos salões, enquanto Raimundo, quase misantropo, escondia a sua. Iguais, porém, no refinamento da sensibilidade, que Adelmar exemplificava sempre com um episódio expressivo. Certa vez, o maranhense ilustre teve que julgar um pobre anormal, autor de furto (de pequeno furto, como eram os de outrora), mas pai de cinco criancinhas. A sorte destas também estava na sentença de Raimundo, que absolveu o réu, talvez puro necessitado que delinqüira por não ver se consumirem à fome aqueles corpinhos inocentes. Casado com uma infeliz, macérrima, que lavava e engomava o dia todo, para atender às necessidades da casa miserável, tem na consorte o seu advogado. A pobre corre ao juiz, a suplicar-lhe que não condenasse o marido, estróina, mas de bom coração. Sobretudo bom pai, em cujos braços dormia, todas as noites, um filhinho doente. Raimundo, ante a deficiência de preparo do processo, diz ao indiciado que vai absolvê-lo. Antes, porém, chama-o à razão, lembrando-lhe o lar humilde, onde morava a adversidade, e a pecha que, de futuro, cairia sobre os filhos.

A cabeça do acusado foi pendendo, como o juncal que o ventoverga, pendendo, tomando uma expressão de mágoa profunda, veio-lhe a primeira lágrima, a contração do primeiro soluço e aquele coração..., batido de vícios, rebentou a chorar, no mais longo e sentido dos choros:– Sr. Juiz, eu lhe juro pela minha mãe que serei um homem de bem! E, na penumbra da sala, na meia-luz da tarde que morria, a figura de Raimundo se iluminava desse clarão imaterial que aureola os bons e os justos.

Adelmar conseguiu congraçar admiravelmente lira e balança, buscando naquela como que a inspiração e o equilíbrio para a sua judicatura. Confessava que tal lhe ocorrera através de todo o roteiro profissional: com Ela (a Poesia) vi chorar, nos Pretórios Criminais, os perdidos do crime, os desgarrados do bom caminho, as folhas humanas sacudidas pelas tempestades; com Ela, ouvi no Juízo da Provedoria, a voz sagrada dos mortos nos seus túmulos, e com Ela, cumpri fielmente,por doze anos a fio, os mandamentos das suas vontades, batendo-me como impelido por uma força sobrenatural; com Ela venho há dez anos, defendendo o direito dos menores, enxugando as lágrimas dos órfãos, assistindo os privados da razão, os loucos, os mentecaptos, os desassisados, os dipsômanos, os intoxicados, toda essa sinistra floração das humanas desgraças, com Ela, venho há lustros falando à mocidade...

Poeta foi por vocação e por deliberação, por acreditar no papel primacial da Poesia!

O PROFESSOR UNIVERSITÁRIO

Não apenas o lastro de cultura jurídica, mas o espírito crítico, a capacidade de transmissão e, sobretudo, a tolerância e a ternura reveladas para com os moços levaram-no a uma cátedra de Direito Penal na Faculdade Fluminense, onde encantou várias gerações de discípulos.

Exerceu o magistério ao tempo em que fazê-lo ainda importava em desfrutar do prestígio com que o ofício nimbava os seus agentes e em que o respeito e a gratidão dos alunos eram o maior prêmio aos percalços da profissão, entretanto, preexcelsa como a do semeador.

Ensinando a boa Ciência jurídica, era, pela ilustração das suas aulas, o romântico de sempre, transportado pelo contacto diário com a mocidade aos saudosos tempos do Recife.

O POETA

Quaisquer que sejam as preferências estéticas, ditadas pela evolução, pelo desejo de conformidade às novas condições da vida, pelo afã de significar momentos históricos e de traduzir preocupações sociológicas e filosóficas, não há como recusar às velhas escolas o que de beleza outorgaram ao patrimônio literário. E algumas delas forneceram documentos à eterna admiração da posteridade, como nos modelos pictóricos de outrora sempre se haverão de vislumbrar a luz e o gênio.

Não há, por outro lado, incoerência alguma em admirar e praticar as novas técnicas e aplaudir as que são consideradas exauridas. As formas de expressão representam uma fatalidade evolutiva, como se observa quanto às outras atividades do pensamento.

Ainda que se julgue ultrapassada uma escola literária, importa considerar que ela é tão difícil de esvaecer-se que existem posições intermediárias. Os seus limites são convencionais. Difícil determinar-lhe o início, e mais ainda o termo, pois que se projeta em movimentos subseqüentes. É o caso das expressões românticas, apuráveis em representantes do Arcadismo brasileiro e seguramente existentes nos dias que correm.

A Literatura é instrumental no promover, estimular e ajudar os grandes momentos da Humanidade, mas também serve à tradução das peculiaridades regionais do homem.

Se, com referência ao Romantismo, atentamos nas motivações e não nas modalidades de exprimi-las, temos que dificilmente se arrancará do Brasil. Porque algumas das suas características se confundem com as próprias características da alma brasileira. Daí, alguns espíritos, tidos por sonhadores ou equivalentemente rotulados, não forcejarem por adaptar-se a novas correntes. “Pode-se dizer que todo movimento literário no Brasil tem qualquer coisa de romântico”, escreveu Amoroso Lima, acrescentando:

Até hoje, os poetas e prosadores românticos, pelo seu idealismo,pelo seu lirismo, pela sua ênfase, pelo seu subjetivismo, pelo modo cantante e sentimental de se exprimirem, são os mais brasileiros dos nossos escritores.

No domínio da Poesia, os movimentos de vanguarda, que situaram o Brasil em plano universal, ainda despertam reservas apenas nos que se encontram obstinadamente ancorados em sediças posições. E, muita vez, só se apreende o valor de tendência quando estas vão passando e já se anunciam outras formas de expressão.

Lembra Goethe que “as únicas obras duráveis são obras de circunstância”. Não há, porém, observa Anatole France, senão obras de circunstância, porque todas dependem do lugar e do momento em que foram criadas. Ninguém pode compreendê-las nem amá-las com amor inteligente se não conhecer o local, o tempo e as condições de sua origem.

Adelmar Tavares parecia indócil, a querer subtrair a Poesia à rigidez de normas, quando exclamava: “Em Poesia não há como nos lotearmos em românticos e parnasianos, e simbolistas, decadistas, pessimistas, passadistas modernos e futuristas”. Não foi indiferente às novas técnicas e chegou a praticá-las em alguns dos seus poemas, com felicidade:

O menino está brincando no colo da Mamãe...
Não tem sua primeira primavera,
tem, apenas, na cabeça, falripas loiras de sol,
macias, de seda,
penugem de passarinho...
Gorduchito, amuado, o menino quer chorar...
Para distraí-lo, a Mamãe entra a brincar de serra com o filhinho...
Pondo-o de pé, como a um boneco,
segura-lhe os pulsos roliços,
e o agita, – ora, lá –, ora, cá,
como fazem os serradores
................................................................................
O menino ri... ri gostosamente...
Ele não sabe nada da vida;
nem da angústia do canto dos serradores,
que serram nas matas virgens
as grandes árvores caídas...
Serra, serra,
Serrador!...
................................................................................
Mas o menino riu... riu... e cansou...
chorou...
E ao ritmo do canto nortista,
que lembra os barqueiros do Volga,
e aqueles homens tristes, que lá no fundo da mata
serram com grandes serras
os grossos troncos das árvores caídas,
a Mamãe apertou com tristeza o menino ao coração...
E, erguendo-se de súbito,
como quem não quer ver no pensamento,
foi dizendo
numa voz de consolo e de carinho:
– Cala a boca, filhinho,
– Cala a boca, filhinho...
O serrador
vai deixar de serrar as madeiras de nosso Senhor...
Parou...
Parou...
– Ô...

A quem assim se exprimia seria injusto aplicar-se apenas o epíteto de “rei da trova” e mais certo dizê-lo “rei na trova”, porque utilizou várias modalidades poéticas e foi apreciável prosador.

Viveu momentos cruciais da Literatura Brasileira. Estreou quando se observavam os efeitos do entrecruzamento de correntes estéticas, aquela em que se fizeram mestres Raimundo, Bilac, Alberto e Vicente, aqueloutra em que se sagraram Cruz e Sousa, Augusto dos Anjos, Alphonsus de Guimaraens, e testemunhou os ruidosos momentos da implantação do Modernismo. Atravessou, assim, a fase mais complexa e instável da Poesia nacional, a em que novos rumos iriam ser trilhados pelos cinzeladores do verso.

Soavam-lhe, entretanto, aos ouvidos, com particular encanto, os acordes dos românticos, que lia e admirava, na sua Recife de estudante. Estes o marcaram irreversivelmente. Foi representante do Romantismo, de onde as reservas que a sua obra despertou em alguns, quase todos afinal conciliados com a singeleza do poeta e rendidos à sua sinceridade.

Haver dedicado à trova os melhores instantes poéticos decorre da sua formação e de sua preferência por traduzir sinteticamente os sentimentos pessoais e os inatos e elementares do povo, sem excesso de atavio,

porque a Beleza, irmã gêmea da Verdade,
Arte pura, inimiga do artifício,
É a força e a graça na simplicidade,

observaria Bilac.

A TROVA

O quarteto heptassílabo, simples, humilde, exprime pela sua concisão e selo afetivo, mais que os outros gêneros, os transportes da alma na sua pureza. “Assim como todo o pensar de um povo está condensado e cristalizado em seus refrães, todo o seu sentir se acha contido em suas quadras”, sentenciou Rodríguez Marín.

Surgindo, a um tempo, entre nobres e plebeus, atravessou as eras e difundiu-se, sem vacilação de prestígio, constituindo um caudal a desaguar no folclore, o que lhe assegurou a perenidade e a glória.

Os versos de Guilherme IX, apenas precedidos pelas recém-descobertas carjas moçárabes, datam de oito séculos e são os mais antigos versos líricos integralmente escritos em uma língua romântica. Na esteira do Duque de Aquitânia, outros nobres e até cabeças coroadas cultivaram o gênero trovadoresco, tais como D. Afonso X, o Sábio, e D. Denis de Portugal, além de eclesiásticos famosos, um dos quais, Clemente IV, ascendeu ao sólio pontifício, todos inscritos entre os precursores dos menestréis de nossos dias.

Rapidamente, como lembra Milá y Fontanals,

o trovador adquiriu grande celebridade e poucos são os que, por meio da novela ou do drama, não se representaram em suas imaginações o trovador provençal fazendo cair ao som da sua lira a ponte levadiça do
castelo feudal, alegrando os banquetes ou inflamando o ardor guerreiro nos campos de batalha, cantando, ao resplendor da lua, ao pé de uma janela gótica ou na selva solitária, um amor casto e misterioso, vivendo sempre nas regiões do mais puro idealismo.

Trovadores e jograis se irmanaram na “primeira batalha, penosa e decisiva, para elevar a língua artística às rasteiras expressões cotidianas, despidas de qualquer aspiração poética”, na frase de Menéndez Pidal.

A pouco e pouco, tornou-se conciso o gênero, reduzido afinal à quadra, verdadeiro poema de forma fixa.

O versejar parece ser uma integrante da personalidade. Embora em latência, pelas dificuldades de uma expressão e de uma comunicabilidade felizes, nem por isso deixa de ser, observou Leite de Vasconcelos, uma necessidade da alma, colocando- se, como meio de dizer, entre a linguagem corrente e a música.

A Poesia verdadeira independe dos adornos da técnica e pode lobrigar-se no homem inculto, mas que foi, um dia, levado a traduzir uma emoção forte.

Enxameada de locuções e modismos regionais, tem a Poesia popular um denominador comum, o da sensibilidade humana aos vários agentes do espírito.

Popularizando-se, a trova só aparentemente é o mais acessível meio de poetar. Disse Adelmar:

Nem sempre com quatro versos,
setissílabos, a gente
consegue fazer a trova...
– Faz quatro versos somente.]

De fato, o que com ela ocorre é o contraste:

.....................................................................
.....................................................................
– Tão fácil, – depois de feita....
tão difícil de fazer,....

Em exprimir no quarteto uma completa idéia foi ele exímio, elevandose, muita vez, às cumeadas, como no exemplo em que Pereira da Silva vislumbrou “toda a essência cristã, isto é, o batismo e a renúncia numa única estrofe que é um milagre de síntese subjetiva”:

Mãe, que os meus versos incensam!
Quando eu vim do mundo à luz,
foi na cruz da tua bênção
que eu vi a vida – uma cruz.

A despeito da excelente produção em outras espécies, nesta foi que se popularizou o autor de Noite Cheia de Estrelas. As origens do seu estro, a simplicidade do seu espírito, a agudeza da sua sensibilidade e a capacidade de exprimir em quatro versos um estado de alma tornaram-no geralmente compreendido e admirado.

Avultou-lhe a popularidade exibir-se nos famosos salões de outrora, nos saraus literários que foram o encanto de uma época despretensiosa e, sobretudo, isenta das preocupações paradoxalmente geradas pelo progresso científico e tecnológico.

Quando surgia, com o seu colete trespassado, o seu ar de bondade, o seu largo sorriso, era o ponto de convergência dos olhares, sobretudo femininos. E recitava:

Sou jardineiro imperfeito,
pois, no jardim da amizade,
quando planto um amor-perfeito
nasce sempre uma saudade...

Conquistados os aplausos de tantos auditores enlevados, o poeta não podia mais sopitar uma expressão mais acentuadamente melancólica:

A morte não é tristeza,
é fim.. É destinação...
Tristeza é ficar na vida
Depois que os sonhos se vão...

Foi Adelmar um dos maiores responsáveis pela era de franco refortalecimento do prestígio que desfruta o gênero trovadoresco, de que são atestado os muitos volumes ultimamente publicados e a criação de grêmios para cultuá-lo: nesta cruzada a sua figura é padroeira.

O PROSADOR

Adelmar trabalhou a crônica e o conto, sendo-lhe também devidos discursos e conferências. O memorialista apenas iniciou a publicação de interessantes notas sobre a Casa dos Quarenta.

Na sua prosa, retratam-se-lhe impressões de vário tempo.

Em “Tanajuras” relembra as nuvens de himenópteros que deliciavam a garotada de Goiana, quando das primeiras chuvas de abril. Os zangões e as içás celebravam núpcias aéreas e, logo, rolavam à terra, disputadas pela gana de toda aquela multidão de meninos que bracejavam, e se empurravam em tropel, apanhando-as, furando-as com estiletes, para ouvi-las zunir e prendendo-as à linha como papagaios. O tríduo nupcial cessava e com ele o espetáculo das tanajuras.

Hoje – quanto tempo! – (ao relembrar o quadro), filosofo sobre o destino de certas criaturas que, sendo formigas apenas, neste mundo, lá um dia se vêem tanajuras. Voam... Enganam-se... porque o vôo é passageiro. Desaparecido o fenômeno que as fez tanajuras, caem-lhe as asas... E voltam a ser formigas que sempre foram.

“O Aleijadinho da Ocarina” refere-se a um pobre rapaz, órfão de pai e abandonado pela mãe, e que, aleijado, fugira da terra, e passara a viver do seu tosco instrumento, que tocava para solicitar a caridade pública, sobre velha ponte recifense. E, quase sempre, narrou Adelmar,conversávamos, ele e eu, durante uma hora inteira ao findar do meu dia acadêmico, quando as primeiras sombras da noite baixavam sobre a cidade,e os lampiões da ponte começavam a piscar a sua luz que se refletia francamente, agoniadamente, tristemente, nas águas do rio, já escurecido, como a luz de certos destinos se refletem na vida para a morte...

Um dia, ali abaixo veio ter um cego (“todo cego é ceguinho no coração da gente”, observaria Carlos Drummond de Andrade), e o concorrente passou a recolher as preferências das benesses a tal ponto que todas as moedas da caridade mudaram de endereço. O condomínio inicial passara a quase exclusividade, até que Manuel Soares, certo dia, liquidou o cego à faca e, quando os gritos da vítima fizeram atrair a multidão, esta viu o pobre músico equilibrado nos dois gravetos de pernas – atolado, febril, os olhos vítreos, a face infernal voltada para a altura onde abriam as primeiras estrelas, a ocarina à boca a soprar uma música alucinada, que era mais grito do que som – como se a alma de Satã gargalhasse, casquinasse na ocarina do aleijadinho, Sabbat dos Destinos desgraçados.

“Gatuninha de Livros” é a história do sucessivo desaparecimento de volumes da sua biblioteca e dos autores mais caros ao seu afeto: Murat, Alberto, Olegário, Álvaro Moreyra. Vai, por fim, encontrá-los no quarto da filha, de mistura com brinquedos de toda a sorte inteiros e quebrados, enquanto a menina lia versos para as amiguinhas extasiadas. Lá se achavam os livros preciosos.

E, sem dizer, palavra (comenta) volto para minha sala de biblioteca,com um grande peso no coração... Minha filha começa a gostar de versos, a sentir os poetas, a ouvir vozes de outros mundos... No pequenino espelho do seu coração, já a vida se debruça diferente... Ai de ti, gatuninha encantadora dos meus livros! Bem cedo entras a recolher a pesada herança de teu pai – a de sonhar... e a de sofrer!

Adelmar, enamorado dos dias claros e das noites cheias de estrelas, parecia temer que sobre a benignidade do seu olhar descessem sombras que o impedissem de distinguir as pessoas e coisas queridas. Mas, chegou a vaticiná-lo:

Minha filha, meu sonho, meu carinho,
amparo meu quando eu ficar velhinho,
luz dos meus olhos que serão sem luz.

É que sempre buscara no firmamento a iluminação poética:

A noite baixou silente,
e, então, cantei tristemente
as mágoas... para esquecê-las...
E a Noite, ouvindo o meu canto,
que era a música de um pranto,
encheu-se toda de estrelas...

Receava, além disso, que não voltasse a contemplar os “caminhos estrelados de hortênsias e quaresmas abertas”, tantas vezes por ele trilhados, rumo à serra, que lhe passara a ser outro motivo de inspiração:

Na nota verde da paisagem, um ipê imenso, agarrado ao desvão da montanha, fincando as suas raízes de ferro nas rochas do declive, rasgava, vertical e imponente, as franças as ramarias, os galhos e os cipoais da floresta, para, na ânsia maravilhosa da altura, abrir a copa estelar das flores flavas, como uma bandeira magnífica, aos ventos da Natureza.

Nem ainda a extasiar-se nos “dias lindos de Teresópolis”, quando o sol era orgíaco e lhe despertava desejo de ser átomo dessa luz gloriosa que entontece as cigarras que rechinam, que faz noivos os pássaros nas árvores,e, milagrosamente, espumeja, e transborda nas almas que eram cântaros vazios...

Era, entretanto, de vê-lo nos seus últimos tempos, a exprimir esperanças de retornar à Academia e, novamente, empunhar a lira, cujas cordas, disse, enramou de cantigas porque “carregá-la foi um destino”.

4/12/1964