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Alcides Maya

                                         HISTÓRIA GAÚCHA

                                                                    A Astrogildo Teixeira de Mello

Lá a história, patrício, que vai contar? Como a de todos, cousa que vinha de longe, uma vingança no mais... Meu pai era filho do índio mais cru das costas do Ibicuí e, como tapejara, no seu tempo, não tinha parceiro, nem aqui, nem em Cima da Serra.

 

Muita gente cruzou com ele estas campanhas, sem nunca perder o tino, quando inda não se via sombra de pousada por onde hoje em dia se atropela todo esse povaréu. Foi ele quem levou à Laguna os Farroupilhas; mas não fez querência, que, dali pra diante, era homem de a pé. Ao demais, o tal Garibaldi principiou a paletear a indiada, e muito gaúcho mesquinhou daquele capincho metido a duro e toda partista. Depois, quem sabe se o pobre não andava com o pensamento na china e nos filhos, nós dois, eu e o Adão, já cresçudos! Que isso de bater mundo é bom pra quem nasceu; mas tudo cansa e dias hai em que um se alembra mesmo do seu ranchito nos pagos! A cousa foi que o índio se boleou serra abaixo, sem avisar ninguém...

Fez a sua desgracia, le digo, que, na viagem, topou um piquete camelo e teve que vaquear essa gente, senão lo matavam. Era gauchada recém bandeada pra os legais, e, desde entonces, foi o meu pai que les amadrinhou as cruzadas, quase sempre na calada das noites. Se era cotuba no rumo, homem ladino! Eu, não é por ser filho, mas, onde ele passava (pergunta aos antigos!) nem os quero-queros cantavam! Ora, os Farrapos souberam e, como andavam sem galho de pau, juraram no mais tirar vingança. Diziam que fora traição... Qual! Aquilo era um ofício, se importa lá o vaqueano com o resto! Mas, o que é, é que estavam galguinchos pra pegar um inimigo e tanto gatearam o índio, coitado! que ele, um dia, caiu na volteada. Não chegou pra todos e, ao despois, largaram os pedaços no campo, de isca à cachorrada chimarrona, que era mato... Bicharia baguala! Tinham faro de légua e, achando carniça, não deixavam nada pra os corvos. Mas, aqui está o que le quero provar, moço, e a’ora fixe como vim dar com os costados nesta urupuca.

Meu avô, bugre linguará, morreu de velho, com os colmilhos gastos e os olhos que nem retovo de bolas. Ele andou com os pampas, ’teve com os frailes nas Missões, e sabia mais cousas que muito doutor. Queria que visse o ervaçal seco que juntava no rancho: era pra um tudo e inté o bicharedo curava. Cobra chegava andar atrás dele, que era barbaridade; não se arreceava de almas e todos assuntavam ser feiticeiro. Uta índio! De noite, parecia um tigre bombeando; lagarteava o dia inteiro, pitando, quieto, no sol; quando não bebia cana, bebia mate; mascava, mascava, e no churrasco, nem se falar! Ao demais, probezito, só as garras de montaria e um couro pra dormir e o chiripá e o poncho; mas guardava uma adaga que era como um tesouro...

Arma linda! Relampeava de alto abaixo e tinha no cabo de prata floreado uma figura de mulher nua, com uma serpente enrolada desde as cadeiras inté a tábua do pescoço, lá nela. E não era dor o que a maldita sentia: parecia no mais uma china se derretendo com o dianho... Isto na frente, que, do outro lado, era um animal esquisito, como inda não vi, meio bode, meio homem, todo ele peludo, de pata rachada e com dois chifrezinhos de carneiro novo. E a folha, amigo, mudava de cor, me desdiga, que muito manoteei aquel’ferro! Quando me apertenceu, já estava fino e dançava na bainha, mas inda mostrava u’a mancha no alto, que certos dias parava negra e, de outras feitas, cor de sangue ainda vivo.

Pois, o bugre velho, meu avô, deu ela a meu pai quando deixou de gauderiar e se parou nos fogões. Não disse nada, nem percisava, que aquela já se sabia donde vinha vindo... E, a’ora, arrepare no que assucedeu. Meu pai, moço, des’que atravessou a adaga na cinta, mudou de jeito, deu pra rixento, largou a se traguear, e, de folgozão que era, andava que nem carancho em tonqueira. Mas a morte, caramba! lo respeitava! Não havia bala, nem golpe, nem veneno pra ele. Os arroios podiam estar pelos galhos, que, vestido mesmo, bandeava serenito a correnteza; e, pousasse no mato, sem fogo, ou estendesse o poncho em meio o campo, dormia no mais à vontade que nem onça, nem jararaca se achegavam. Inté o raio afrontava, que uma tarde, já à boca da noite, em viagem, caiu-lhe um quase em riba, lascou o umbu onde se abrigava, matou o cavalo a meio tiro de laço e ele, nem nada. Inda, mode o pingo, de estimação, olhou de frente o céu, com uma praga, e acendeu no mais o pito, sem tremor. No jogo, enquanto ia orelhando a sota, a faca estava fincada no chão, se era acampamento haragano, ou em cima da carpeta nas vendas. E os patacões vinham vindo, e as gateadas iam-se amontoando. Cuê-pucha, se não varejasse longe o ganho, se parava um rei de tanta plata! Mas perdia tudo com as chinas, pelas vendas e em carreiras, pois já se sabia que a arma le dava liga e era lei de parada não estar com ela que, estando, ganhava na certa.

Ora, uma noite em que bebeu demais e pegou a dormir numa pulperia, roubaram-le a adaga. Foi negaça dos maulas e, três dias depois, pondo-se outra vez em marcha, lo charquearam. E a’ora passe um cigarro e ouça o resto.

Lo charquearam, amiguito, e eu, que, nesse tempo, já quebrara o chapeú de lado e, em agachada, era como biguá dentro d’água, pois sempre saía enxuto quando os mais iam sangrando, jurei que havia de ficar a manos na pendência e me pus a pastorejar, os malevos, que um dia vem depois do outro e dois dos assassinos eram conhecidos velhos. Um deles, matreiro de fama, tinha cisma com o índio mode uma questão de cancha e o outro muito amargo tomara na nossa ramada e chegaram a dizer... Mas, isso era voz do povo, que minha mãe, e desafio foi china de condição! A guerra estava no fim, não tardou Porongos, e a farrapada se viu pelas caronas. Não me condene sem me escuitar: le digo, eu, por mim, sempre fui contra os galegos; mas, porém, este caso é de sangue, me compreende?

Foi na Palma, numas carreiras, logo depois de Ponche Verde, que nos pechemos. Lá andavam os dois acolherados, onde um ia, o outro ia e, por que não sei, mas não se largavam nem à mão de Deus Padre. Se um falava, o outro coçava as armas; se um se mexia, o outro também, os dois atavam por um só e, segundo voz do mundo, na mesma china se rascavam...

E aqui principiou a maçaroca. A piguancha era linda e valia solita a pena de uma rascada. Mas eu ali me arraposei e o que mirava era pegar os dois de um em um. Plata, a falar a verdade, foi cousa que sempre mermou na minha guaiaca: estava limpo; mas, tira laço, bota laço, como se diz, o pealo foi meu. Ao demais, a chinoca (terneiria linda!) ficou mesmo pelo beiço e nos arreglemos.

O que eu quero, disse-le, é que me desarmes um deles. O outro pode atirar-se de faca e trabuco, tenho medo, e, inda que caiam os dois, les mostrarei! Se te agrada vires comigo pra o meu rancho, e tenho promessa de capataz, esconde a adaga de prata que o Felisberto carrega. O Neco, esse que velhaqueie à vontade... Por Deus! que u’a mulher é pra um homem e tu como que nasceste pra mim...

A rapariga consentiu, dei-le umas boquinhas (ah! tempo!) e, à meia-noite, atei o ca’alo na frente e empurrei na porta um manotaço. Um aviso... Inda o bruto não tinha saltado do catre e já eu penetrava no rancho. Derrubei a relho aquel’tebas! Quando o companheiro acudiu, já eu fazia relampear a adaga do bugre, minha herança de fado, que outro bem nunca tive, mas esse me apertencia. Lascou-me fogo e errou (havia de ser!) e ali mesmo lo acuchilhei, como rês, no sangradouro... E nem alimpei o ferro: de vereda, fui-me ao primeiro, que se boqueava no chão, e le taquei um tiro no ouvido, mas bem dentro, bem no fundo... Não se abichorne, moço, que a vida é assim... Vocemecê queria, ’tá ouvindo. E dê-me no mais do seu místico, que o meu isqueiro se quebrou e este pito está manheirando...

Mulher, sempre tive na ideia, é ente de traça e precatado. A Carmen, sem eu dizer, tinha adivinhado a vingança e, quando me despachei, já vinha de mala feita. O meu flete era ca’alo manteúdo e unhemos a todo trapo, eu levianito e mui concho, que tinha alimpado o meu nome e inda levava de mota, na garupa, aquela florzita. Quando o dia apontou, já o Taquarembó ficava pra trás, muito longe, e, atalhando, atalhando, pelas sangas co’o sol, a trote de noite, não tardemo em chegar à fronteira. Foi entonces que me arrodeei de guascaria alçada e me parei nuvem. Eh! Mano! gente entonada, a daquelas bandas! Muita tora tiremo e sempre tocavam buzina bom este gaúcho sem mancha. Castelhanos? Me conheceram...

Mas, des’que passei na cintura a minha adaga, tinha que ser! Era destino, era sangue! E olhe que, às vezes, queria mudar de vida: inté carreteiro me fiz, cheguei a entrar de peão, fui agregado sem inhapa. Mas trabalhava e não me davam nada, quase nem desencilhava e sempre maltratado. Ao despois, pra que lutar, era briga na certa: com o peso da adaga, me sentia outro, sacudia o poncho pra todos, dei em beber e nunca mais me aquietei. Dizer-le que estava em mim seria mentir. Ficava cego! Pois, amigo, tudo isso era pouco e veja no mais o que é ser um triste de condição! Se houvesse cana aqui!

Foi um dia de azar, quando varando o Uruguai, com uns contrabandos, topei na barranca com o Juca Ribas, um índio dos meus e que me disse à queima-bucha, endireitando o barbicacho, como sempre falava: Mire, amigo, te embolaram... O gado é assim feito: cada ponta tem um touro, e chinas, pelo mesmo conseguinte. Quando um não pode é largar a querência ao que tem mais força. Que eu te digo, a comadre Carmen anda metida com o Anselmo, e antes boi de verdade que outra cousa...

Puxa, seu! Nem tinha escuitado e descasquei logo o facão e, logo, le mandei que se explicasse. Contou-me tudo e, entonces, le tornei:

Olhe, Juca: vou bombear a minha china e, se você me corneteou os ouvidos, havemos de nos encontrar. Guarde bem!

Daí me cortei que nem tento e, nessa noite mesmo, peguei os dois nos meus pelegos... Verdade! A china só de me ver ficava louca e, como eu parava pouco em casa, me punha a pensar que muito pode a saudade... Pois, se juntos estavam, juntos ficaram, o homem baleado no coração, à beira da cama, a china retalhada, sem se mexer tanto me conhecia! Morreu que nem ovelha... isso despois que, por desprezo no mais, degolei o outro, já defunto, de orelha a orelha...

E não foi só: tenho comigo muitos sangues... Nessa manhã, eu não era eu, nem sou agora. Se me visse! O que sei é que já ia muntando e vi pela frente o Juca Ribas, com um ca’alo a cabresto, me percurando, quem sabe? Pois, lo derrubei a bala, um irmão! Saí no tranco, enxergava tudo vermelho, mas tudo, e me perdi lá por longe... Quando voltei, trazia uma escolta de muitos homens me perseguindo, e duros que nem soga, amigo!

Velhas cousas, moço, cousas à-toa, não val’ contar! Saiba no mais que daquela apertura só me salvou o meu rabicho pela diaba de prata, de umbigo de fora, com a cobra grande à roda do seio e a mancha alastrando no corpo, que era toda a folha faceada. Não me duvide: aquela arma era pra se beijar no perigo... Cantava na bainha, se mexia no ar e, em muita peleia braba, eu disse comigo:

Este facão veve!

E, cada vez, me arriscava mais e sentia mais gana contra todos. Já tinha pena dos meus pingos; perdi a tiro os meus melhores ca’alos e nunca tive um arranhão...

Pois, patrício, dia veio em que inté essa me traiu! Eu dormia com ela nos arreios, não me apartava nunca da sua vista e, mesmo assim, se perdeu. Pode que esteja aonde o bugre velho sabia... E pra que encompridar? Somente direi que aquilo me aplastou, me encaiporei e, tendo-me desguaritado dos camaradas, a polícia me pisou no rastro e passou-me o maneador. Era sorte...

                                                                      (Alma bárbara, 1922.)

 

                                               MIGUELITO

Às quatro horas principiaram as saídas do zaino e do Pampeiro. Este, um mouro “pé de estribo e mão do lança”, era montado por um compositor da capital, chamado expressamente para corrê-lo, e vaidoso nos seus trajos de jockey, jaqueta curta, calções brancos, boné azul. Estranho ao meio, afeito à linha dos prados, certo da sua superioridade como profissional, o Melado, alcunha com que o caricaturaram os campeiros, observava correto, a “guascaria”, convencido de bastar-lhe um hop! enérgico, ao partir, para vencer aquele pequira, nervoso, vivo, mas sem a elegância fria, a elasticidade e a rijeza de músculo dos cavalos de raça. Excepcional, a carreira mantinha em dúvida, silenciosa, a própria gauchada que se interessava pelo parelheiro do André Madruga. Tratava-se de um produto de coudelaria, elogiado nos jornais, segundo dissera solenemente o Aires, e as apostas corriam frouxas, garantindo quase todos a vitória do mouro.

A Miguelito, impacientavam-no deveras tais vaticínios: tinha confiança no crioulo, não se lhe dava de arriscar nele qualquer quantia, e, como houvesse recebido do negociante, à véspera, o dinheiro do seu gado, e um caixeiro-viajante dissesse, perto, que, na situação do Madruga, “pagaria depósito”, pois “aquilo nem ia ser uma corrida”.

Não sabem o que é ca’alo! bradou, mirando atravessado o “pracista” Tenho cem mil réis no parelheiro zaino! Pra quem quer!

Sobre boa, era intencional a parada, uma resposta, um desafio, e ao conspecto do gaúcho, bem vestido à camponesa, com um belo pingo recamado de lindos aperos, o moço aceitou o jogo.

Pago, disse com deferência, tentando desfazer, amável, a má impressão possível das palavras precedentes.

As saídas, entretanto, continuavam, intermináveis.

O corredor do Madruga, seu afilhado e protegido, piá, dezoito anos, farejara o competidor: toda aquela fleugma presunçosa não resistiria à primeira decepção. Deliberou irritá-lo, obrigando-o a arrancar muitas vezes, sempre mal, e começou a cortar partida, com tanto êxito que os juízes, apesar da intenção velhaca, percebida logo, de relance nada podiam dizer. A expectativa tornou-se angustiosa; havia, em derredor, sobrolhos franzidos, rostos carregados, peitos opressos; e, atendendo a que os parelheiros se não acertavam, alguém propôs “soltá-los de tronco”. Aceito o alvitre, um dos juízes, tomando de ambos os cavalos pela rédea, dirigiu-se ao laço, largou-os.

Foi e os dois saíram acolherados, a bater orelhas, apenas pisando a liça. Desencadeou-se, então, o que o Tico Azambuja denominara com propriedade “a ventania da cancha”. Houve uma como vertigem; abalaram-se todos; a multidão vibrou de ponta a ponta, sufocada, entusiástica, fremente. Gaúchos galopavam ‘a toda”, seguindo a raia; sujeitos ficavam roucos de gritar; outros exaustos de correr; alagados outros em suor; e muitos como abombados, sorrindo alvarmente...

Juntos à primeira, à segunda, à terceira quadra, ao fim da quarta, o zaino adiantou-se do Pampeiro, “de fiador”, entrou com avanço maior na quinta e atingiu num grande salto, o laço de chegada, vencendo de pescoço. O veredictum foi unânime, não podia haver contestação, e o triunfo estrondeou.

Miguelito delirava de júbilo e foi ele quem se apoderou do parelheiro crioulo para tratá-lo. O “cavalinho”, ótimo em tiro curto, não resistiria mais trinta passos a par do derrotado, e arfava a cair, espumando, suarento...

Do arroio, onde lhe deu um banho, guiou Miguelito, entre victores, para a taberna; divulgada, popularizara-o a sua aposta; e o Madruga, satisfeito, oferecera-lhe um churrasco e um copo de cerveja.

Quando voltou ao campo, trasmontava o sol. Nuvens amantelavam-se formidáveis no ocaso, escorrendo sangue, vomitando chamas, numa cromatização grandiosa, superpostas, em escarpas, turriformes; não soprava mais aragem; a noite ameaçava ser quente; e, do pessoal, uns ausentavam-se, estrada além, poncho dobrado à garupa, outros debandavam pelo comércio, pelas barracas, pelo salsal. Sobre o âmbito do acampamento, pássaros quebravam, retorciam o voo, demorados, como se fossem curiosos da agitação humana; às barrancas do arroio, surgiam as árvores em dois tons, doiradas as grimpas e de corpo cosido numa extensa, alta muralha escura; relinchos prolongavam-se, ecoantes, longe; e na cancha, ora quase deserta, alguns jogadores tiravam o tempo de um cavalo, para as carreiras do dia seguinte.

Miguelito, que bebera em demasia, e sentia às fontes um calor latejante, maneara o tordilho no pátio da venda para empreender uma caminhada a pé através o campo. Perdera de vista o Aires, desde a corrida do zaino; não avistava nenhum conhecido; andou a esmo. Transviando passos, num mal-estar crescente, foi ter a uma espécie de praça, formada por carretas, a curto espaço da baiuca.

Heterogênea e brutal era ali a reunião da gauchada; havia gente de todas as profissões, de todas as cores, de várias raças; e a sua reunião afastava, repelia, prudentemente aos transeuntes.

Miguelito, porém, estacou, satisfeito: entre os presentes avistara Jango Sousa, vestido como outrora, forte e frio, afastado, indiferente, como de pedra, com a mesma linha impassível de sempre...

Fenômeno curioso: nada o ligava àquele vagabundo dos campos, de reputação suspeita, e, no entanto, ao pensar no pago, era a dele uma das figuras mais simpaticamente evocadas.

Por quê?

Talvez que a destemida figura hirsuta, ruiva e grande, esgrouviada, do campeiro se casasse, ressurreição dos velhos tempos, com as que recebera nos seus antigos sonhos de guerra caudilhesca; talvez algum dia pensasse em se lhe aligar à vida solta; talvez apenas por uma camaradagem agradável de galpão...

De um modo ou de outro, tendia irresistivelmente para o gaúcho; sabia ser estimado por ele; e, vendo-se agora, ambos, de impulso próprio, se procuraram, um com toda a sua exuberância própria, outro temperando com uma fugitiva expressão de alegria a sua característica indiferença pelas pessoas e pelas coisas.

Seu Jango!

Miguelito!

Abraçaram-se. O Jango explicou que estava ali “por estar”: viera para assistir à carreira do dia; tinha que fazer, fora; e, se não fosse o convite de um dos carreteiros para churrasquearem juntos, já estaria na estrada... Miguelito devia ficar: seriam companheiros no mais...

Miguelito ficou.

                                                              (Ruínas vivas, capítulo VI, 1910)

 

                                        A CARNEAÇÃO

Iam carnear. A rês, vaquilhona osca de uns dois anos, boa de carnes, comprada ao Bento, já estava presa pelas aspas; escolheram o Jango para matá-la; porém os cinchadores não conseguiam esticar convenientemente os laços e a cena, complicada pelos acidentes do terreno, ia além da expectativa, impacientando a todos, gulosos de carne fresca a chiar ao fogo.

Embolada, a cabeça gacha, de um lado, a língua pêndula, a babar-se em longos fios prateados, ela berrava escornando desajeitadamente o ar. Jango Sousa, que a rodeava, de mangas arregaçadas e de faca em punho, a bainha de couro preto tenteado a bater contra o tirador de vaqueta, reluzente ao sol a folha bem afiada, tinha no rosto, não obstante o hábito, um ligeiro rictus desmentindo-lhe a fleugma. E não se ajeitava, adiantando-se, retrocedendo, passando por debaixo das tranças do couro, indo a ferir e fugindo, à espera de momento oportuno para bem golpear. A uma ordem sua, um dos laçadores passou a trama ao tronco de uma árvore; o outro paleteou o cavalo: as duas cordas vibraram, tensas, no espaço, e a novilha parou, firmando as patas na grama revolta. Decorreu um instante de suprema imobilidade e apenas leves frêmitos percorriam os laços, animando-os de ondulações serpentinas. Queda, a terneira deu azo a que se lhe conchegasse o gaúcho, desgarronando-a, seguro à ponta da cola. Um dos cavalos, arisco, desviando-se, suxou o laço e a osca, apoiada na perna sã, de pelo desenrugado sobre a giba, à arqueadura da espinha, atirou uma violenta marrada, e só depois do cavaleiro dominar a besta foi possível a sangria. Mas, se o homem medira com certeza o jarrete, errou no golpe ao pescoço: ferida, a vaca ainda se manteve em pé, balouçando os cornos entre os laços remitidos e tentando escoucear com a perna retalhada, cujos músculos vãmente retesava; e só ao tirão seco de um dos ginetes abateu, escabujando, um jorro de sangue borbulhante. Devia-se renovar o corte; preparava-se já para fazê-lo Jango Sousa; porém Miguelito, que despira, num ápice, o casaco, achegou-se com surpresa de todos, pois não o conheciam, curvou-se sobre o corpo estertorante e, friamente, suavemente, afundou-lhe o facão no sangradouro, torcendo-o para tassalhar o músculo cardíaco. Era decisivo, esse: à dor, convulsou-se a vítima num sobressalto de morte, encolhendo-se toda, com um mugido soluçado, num respiro ortopneico de ar. As bordas sangrentas do talho, unindo-se, apertaram a lâmina cravada, cujo cabo repuxou a mão trigueira que o premava com os dedos recurvos, como grampos. Arrancada a folha enrijecida, gotejante, saiu ringindo nas cartilagens espedaçadas, de onde, mais grosso, aos coágulos, golfejou um resto de cruor. Limpou-a Miguelito passando-a algumas vezes no couro arrepiado: luzia-lhe cerrada, por entre os lábios entreabertos, a dentadura forte, muito alva; e saíra-lhe à cara o gozo íntimo, inconscientemente feroz, algo de sensualidade profunda, ancestral e sinistra. A novilha, entretanto, agonizava, extinta a consciência num último impulso baldado de fuga espavorida. Sacudiu-a o derradeiro arquejo; inteiriçou-se, rígida; a língua, de lixa, esbranquiçada, caiu mais, para fora, endureceu de um lado e os olhos foram-se embaciando aos poucos, refletindo na retina, como em uma guache minúscula, o espetáculo da planície com os salsos próximos e a figurilha do matador, inclinado, o braço estendido, a suster a arma, em que os raios de luz morrediça do ocaso deixavam agora, vez por outra, postremos revérberos. Um cachorro lambia docemente, às costelas, o sangue colado à pele, e, sobre a sangueira que empapava as ervas, o leitão de um dos carreteiros fuçava cheio de voracidade, coinchando. Foi além, avizinhou-se, introduziu o focinho, de cerdas úmidas de grúmulos rubros, na golpada hiante, bafejando-a, arreganhando-a, remorado a princípio, numa garícia de gula mansa, depois rapidamente, a grunhir, sôfrego, às cabeçadas. Espantaram-no para tirarem o couro. Os tecidos, quentes, riscados, fundo, pelas facas, estremeciam ainda, meio vivos; fêveras crispavam-se; havia repuxamentos demorados de músculos, remexer, contrações de nervos...

Uma irradiação postreira incendiava de todo cabo, no poente, as nuvens amontoadas; era mais terreno, atmosfera acima, atmosfera abaixo, o girar dos corvos contornando a carretama; adensava-se, da parte do arroio, o muro de sombra das árvores, de ramaria fundida na mesma soturna massa, impenetrável ao esguardo; e, à aproximação da treva, subia de ponto no acampamento o resfôlego de prazer da gente solta. Na praça formada pelos carros, acendera-se uma fogueira; negros, caboclos, homens brancos apertavam-se ao redor, atraídos pelos assados; manuseavam-se espetos; o bucho da rês, arrojado aos cães, exalava um cheiro acre de ervas esmoídas; e continuamente ressoava, entre risos, o lique-lique seco, áspero e frio das lâminas das facas passadas com rapidez nas chairas de aço.

                                                 [...]

                                                          (Ruínas vivas, capítulo VI, 1910)