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Discurso de recepção

Discurso de recepção por Rodrigo Octavio

RESPOSTA DO SR. RODRIGO OCTAVIO

Senhor Alcides Maya:

É sempre com acentuada satisfação que a Academia se adorna e se ilumina para festejar a chegada de um novo eleito.

E isso porque ela, nesse ato, não só acolhe, com extremos de mãe, o novo filho que adotou e vem, completando o ciclo da gestação gloriosa, exercer a função de assegurar a perpetuidade de sua vida, como porque, vaidosa, assiste à glorificação de outro cuja ausência não chora, pois que ele, desertando o mundo, imergiu na vida imorredoura dos que se esgotaram e tombaram na luta pelo ideal.

Vós, que agora nos chegais, trazendo-nos a exuberância sadia e rubra dessa vida da campanha gaúcha, cuja perspectiva pitoresca e agitada as páginas de vossos livros estereotipam numa viva impressão de água-forte, em que as minúcias do desenho de pequenos recantos não comprometem a realidade flagrante do quadro, vós que nos chegais, melhor do que outros, fazeis jus ao nosso regozijo porque, se moço ativo, sois a esperança de um contingente de esforço, consagrado e já glorioso, sois a certeza do êxito dessa expectativa.

Acabais de dizer no primoroso discurso, com que viestes enriquecer, desde logo, os anais da nossa Academia, que a função dela é ligar o Brasil de norte a sul, sistematizando e consagrando todas as manifestações da alma coletiva.

Disseste-lo e o dissestes bem. A Academia aspira exercer na formação e apuro desse idioma nosso, tão opulento e flexuoso, a ação paralela de o preservar de desvios que o deturpem e desfigurem, e de lhe enriquecer o mealheiro de vocábulos e expressões típicas e sugestivas, que o gênio de nossa raça por toda parte engendra, transmite e perpetua. Assim se formaram, em todos os tempos, as línguas nacionais, que a cultura depois, tomando-as no tosco de sua criação original, lavou do pecado com a sua água lustral da vernaculidade.

E ainda sob esse ponto de vista adquirindo-vos, assegurando para a sua obra o contingente de vossa colaboração efetiva, a Academia andou acertada, porque vós vos constituístes o eco dessa terminologia cantante e onomatopaica com que, nos rincões e descampados de vossa província guerreira e campesima, se encontram expressões, peculiares e múltiplas, para toda a gama das cousas de guerra e de campo.

As páginas de vossa obra de ficção, acentuadamente provinciana e bairrista, podem constituir a célula de uma literatura nova, o cânon de uma nova língua. Há períodos em vossos livros nos quais, expurgada uma terça parte de vocábulos nossos, o resto não é nem português nem brasileiro, e não só por isso, como pela natureza das cenas que se sucedem nas páginas das Ruínas vivas, fizestes bem em dizer que elas eram um “romance gaúcho”.

Por toda a vossa obra, página a página, se encontram exemplos, que eu me dispenso de citar, mas que me não deixariam mentiroso. E de períodos tais estão urdidos capítulos de novela e romance.

Através, porém, dessa selva oscura, onde não raro se perde a esperança de penetrar no entendimento nítido e perfeito do sentido, muita vez ressumbra, na eloqüência de uma linguagem, a que não prejudicam os vocábulos exóticos, porque a verdade do quadro revela a significação das palavras, a flagrância da vida da região onde vossa inspiração nasceu, se criou e se apraz de ficar, num sentimento de verdade e humanismo que empolga e comove. E é ao ar livre que ela fica, à vista dos vastos, infindáveis horizontes onde irradia e ululante voga a canção dos ventos, ora brandos, ora impetuosos, e em cuja vastidão, descampada e nostálgica, a mancha corpulenta do umbu surge e cresce como um acidente do terreno, que prende a atenção, que caracteriza o sitio.

E aí, é a existência incerta e desolada dos tristes e dos desamparados, que de preferência desenhais.
Ruínas vivas chamastes vosso romance gaúcho, porque todos os que no cenário se movem, o próprio cenário mesmo, tudo não é mais do que restos, restos de velhas crenças, de velhas construções, de velhas raças.

Esse romance vosso em que se encontram reunidas, no consórcio ideal da beleza e da verdade, todas as qualidades do Romantismo, sem os exageros sentimentais da escola, e de um sentimento naturalista, discreto e limpo, esse romance vosso é a flagrância mesma da vida gaúcha, apanhado nas noitadas insones do rancho, na azáfama rubra e fumegante das charqueadas, na agitação apaixonada e emocionante das carreiras, nas lôbregas barracas das chinas impudicas, nas estações das carretas para repouso das longas viagens solitárias, dispersos os bois nos aramados próximos. Perpassa por suas páginas um sopro de rebeldia e de liberdade que nenhum preconceito ou sujeição respeita, como por entre as frondes e ramarias de um matagal cerrado, impávido minuano que abre, ovante, caminho à sua correria infrene e vai a se perder além. Esse Miguelito insubmisso e altaneiro, em cujo sangue “rolavam inimigas almas de mortos”, é a alma mesma dos pampas, nômade, vagando de restinga a coxilha, de rincão a descampado, na peregrinação infindável atrás de um pouso inatingível, impulsionada sempre pela fatalidade ancestral da raça.

* * *

Na Tapera, esse mesmo espírito vive. São páginas soltas, pequenos episódios, trechos de paisagem, retratos, que poderiam ter entrada para avolumar o lindo e forte livro das Ruínas vivas.
E isso principalmente porque os contos e a novela são na verdade cenas da vida real do grande romance da campanha gaúcha. Na sinceridade do narrador, na fulgurância da linguagem, rútila e às vezes bárbara, que enroupa a idéia, sente o leitor, mesmo que não conheça a terra e a gente, sente o leitor a palpitação real da vida. Aquilo deve ser assim.

Não resisto ao desejo de proporcionar ao seleto auditório o prazer de uma leitura. Não respingarei, porém, aqui e ali, aspectos de campo ou fisionomia de gente, que os há, magistrais e impressionantes, nas páginas do livro. Desejaria tomar um conto, e tomá-lo todo, para que, ao mesmo tempo, se tivesse a impressão da forma nítida e sugestiva e do conjunto harmonioso e inteiriço. Mas alongaria de mais esta oração. E, para dar uma simples impressão da linguagem e do estilo, leio apenas a invocação que abre o livro da Tapera. Ei-la:

“Morta, mas ainda de pé, em debuxo ao fundo ermo dessa imensidão triste, que sensações estranhas provocas!
Abandonaram-te, talvez, por velha; sucumbiste, quem sabe, a algum pampeiro: não tens o passado de glória dos lares que tombam heróicos por entre chamas ou despovoam tumultuariamente numa tragédia de ciúme, de vingança, de ódio.

Neles, evocativo, perdura o prestígio de paixão e de poesia que anima e consagra a poeira.
– Foi aqui! – murmura quem passa, e logo o gênio do amor e da guerra embelece de idílio, enche de rumores de luta, decora de simpatia, de saudade ou de terror a habitação derruída.
Como um nome de mulher em lenda triste aformoseia um sítio agreste! Como sonoro reboa num silêncio de ruínas abrutalada o apelido de um bravo!
Nada, porém, te resta, merencório tijupar.

O tempo irônico, depois de dispersar aos acasos da sorte a raça modesta que lutou e sofreu sob esse teto humilde, deixou erguidos no anonimato da morte, sem sombra de tradições, os teus muros solitários, que ora parecem rir para o caminho, pelas janelas e pelas portas escancaradas, um riso escarninho, doloroso do vazio que és sob o firmamento radiante, ora ameaçar soturnamente, enoitecidos e torvos, o horizonte remoto.

No sertão, ao menos, não é assim: a mataria invade as mansões derruídas. Ao sol que magnífico resplende ou nas longas noites perfumadas e tépidas, árvores e raízes avançam, lutam firmam-se no solo conquistado, apagam os vestígios do homem. Flores olentes crescem à sombra das paredes arruinadas; pelas vigas apodrecidas enroscam-se trepadeiras virentes; colméias regurgitam de abelhas de ouro; borboletas volitam multicolorindo a paisagem viva; há colibris através as frondes, circulando troncos, vibrando por entre túmidos rebentos tenros; ergue-se das folhagens o epinício luminoso das cigarras; onde palpitaram humanos corações, os pássaros aninham; e a verdura atenua com o seu úmido relevo luxuriante, sob os reflexos do céu, a ausência das almas que se foram.

O homem passa, porém, não passa a vida, panteisticamente afirmada no colorido opulento das pétalas, no frenir leve das asas, no balbucio das auras mansas, no fagulhar dos feixes de luz sobre os arvoredos enseivados, no espasmo fecundo da natureza em fogo, a arder, a chispear, a fulgurar. Não mais lágrimas, risos, brados de vitória, imprecações sentidas; mas ao braço que vessava a terra e as selvas desbravava sucedeu o tatalar das aves módulas; aos gemidos e aos brados, aos suspiros e às juras, o sussurro da mata.
No pampa!

Sozinha entre solidões áridas, ponto mais deserto e mais nu da paisagem deserta e nua, a tapera fica, perdura nos escombros, sarcasticamente ereta e descolmada, altivamente serena, morta e de pé.
Ao vê-la, desolada e informe, batida sempre do vento, dos nossos ventos sibilantes do Sul, lembra-me (amontoamento orgulhoso de pedras no cinzento das tardes), lembra-me consciências tristes de vencidos, firmes no desespero, impassíveis na ferocidade das resistências.

Às vezes, a coloração de alguma aurora, quando o estilo fulgura no firmamento ou a primavera esplende nos campos, ilumina os destroços mudos no longe indeciso dos panoramas amplos. E há como uma ressurreição: despertam legenda e sonho; tremulam de novo as palas no horizonte; condensam-se na espira arrítmica dos fogões os vapores pampianos; vai recomeçar a vida...
Brumas, brumas efêmeras, em combinações de íris, que se dissipam apenas o sol ascende esbraseado no espaço, impondo, na realidade do dia, a miséria da ruína...”

É interessante registrar que vós, nesse impenitente regionalismo em que, orgulhoso, vos acastelais, viestes, entretanto, ocupar a cadeira que aqui ocupou quem pretendeu dar à sua obra um largo cunho de generalização dos aspectos da vida nacional. Aluísio Azevedo começou, como vós, escritor provinciano, isto é, tomando o assunto de seus livros nas cenas da vida de província. Logo, porém, transportado para a antiga Corte, o romancista de O mulato sonhou com a glória de ser o historiador da vida social brasileira. E, como Zola escrevia a história natural e social de uma família no segundo Império, Aluísio quis também escrever a história de nossos Rougon-Macquart e esboçou o plano da seriação de seus romances sob a denominação genérica de “Brasileiros antigos e modernos”.

O que foi ele como escritor, como artista sensível e verdadeiro, vós o dissestes com uma sinceridade que vos honra e com uma simpatia que merece os nossos comovidos agradecimentos. Dele não direi, pois, como artista e escritor. Mais velho que eu e mais antigo na luta, mas generosamente amigo e companheiro, desde o momento em que principiei a terçar as primeiras armas numa arena que não a saudade de tempos idos, mas a justa apreciação da verdade, me faz ver digna, convidativa e compensadora, e a que nada do que hoje existe se parece de longe como emulação aos que começam, solidariedade aos que trabalham, acoroçoamento eficaz aos que triunfam; amigo e companheiro, não me abalançarei a um exame para o qual a amizade me tornaria suspeito; apenas deixarei falar o coração, dizendo de quem tanto mereceu na simples linguagem de minha saudade.

Foi um bom, foi um desinteressado, foi um generoso. Não existe quem dele haja recebido uma palavra má; quem lhe guarde o ressaibo de um mau movimento. Afável e insinuante, no fastígio da popularidade, lisonjeado e procurado, Aluísio jamais se despiu da simplicidade de seu modo, atraente e caricioso.
A ele, pela persistência do bom humor, não se poderia aplicar o hemistíquio de Virgílio que a Briseux coubera pela triste e confrangida expressão do poeta armoricano: cui non risere parentes.
Ao nosso, por certo, a mocidade correu alegre, não lhe deixando na alma o travo das tristezas vistas e sofridas, a desconfiança no futuro pela aspereza do prólogo da vida.

Armando estremecidamente essa terra sua que o viu nascer e que queria grande, ele se quis libertar da contingência do trabalho de dia a dia, para, desafogado, produzir, pelo só prazer de a compor, a obra que fosse digna dela; ardia na louvável ambição de dotar nossas letras dos livros que se sentia capaz de escrever, cujas cenas lhe tumultuavam no espírito enchendo-lhe a vida do pensamento. E essa libertação sonhada não se fez esperar; veio numa nomeação de Cônsul. Aluísio partiu. Levava no espírito um programa de trabalho para uma longa existência de esforço. Partiu; permaneceu ausente anos e anos.
Andou por várias terras, por lindas terras. Depois da graça e do calor vivificante da Andaluzia travessa, teve os cenários exóticos das Ilhas Nipônicas; amendoeiras a se desfazerem em chuvas de pétalas, campos estrelejados de crisântemos e lírios. Daí o levou o destino para a sombra do Vesúvio, à margem do golfo onde à flor das águas azuis vaga na barquinha leve a poesia das canções de amor.

E apesar dessa mutação de perspectiva, desafiando a imaginação, estimulando o sentimento, os anos passaram e o livro esperado não chegava. Calou-se Aluísio, vos o dissestes, reconhecendo, generosamente, que ele tinha o direito de o fazer.

Sim, calou-se, mas o silêncio para lê representava uma dolorosa renúncia. Eu recebi, contristando, a impressão de seu estado de alma, quando em 1907 o visitei em Nápoles. Nossos primeiros encontros foram para matar saudades; falamos de tudo e de todos; eu desejoso de tudo contar, ele ansioso por tudo saber. Rimo-nos da recordação de alegres episódios, e choramos também, que muitos dos nossos haviam fugido à vida, deixando-nos a saudade. A nossa companhia literária de então era quase uma família. Frères, plus encore que confrères, na incisiva expressão de Hugo. Do convívio e da solidariedade nasceu que nós nos amávamos, vivendo na comunhão das glórias e das tristezas e dores comuns. Mas, passadas essas primeiras expansões da curiosidade, falamos de trabalhos. Aluísio tinha sempre seus planos, sua exuberante ambição de produzir. Certa manhã, nesse insaciável anseio por tudo ver, que me domina, quando viajo, quis ir a Capri, e Aluísio me acompanhou: ao almoço, num tosco albergue mal protegido do sol pelas largas folhas de um parreiral que sobre nós se estendia como um pálio esfarrapado, perguntei-lhe pelo livro que devia ter na forja.

Aluísio olhou-me longamente, e contendo a natural vivacidade do gesto e dos olhos, respondeu: – Não tenho escrito nada. – Houve um instante de constrangimento. A visível comoção do meu amigo se me comunicou. Entretanto, a rapariguinha que nos servia, – belo e vivaz exemplar da flora feminil da ilha, – aproximou-se de nós trazendo-nos um prato de figos que colhera no momento, enormes, roxos, arrebentados como beiços úmidos, que sorriam.

E a atração gulosa das frutas frescas e orvalhadas, cheirando ainda à árvore de onde acabavam de ser desprendidas, nos salvou. A chucharra riu de nosso entusiasmo ante o prato apetitoso e aceitou, num gesto arisco, a fruta que Aluísio lhe oferecera.

Eu não insisti na minha questão indiscreta, mas o romancista voltou ao caso, e explicou longamente, particularizadamente, como quem quer achar argumentos para si próprio. Queria trabalhar, por certo ansiava por produzir, mas faltava-lhe a paisagem, o ambiente, o espetáculo. Se fora um poeta, faria versos em que falaria a saudade que tinha da terra; mas não era senão um pintor e faltava-lhe o modelo. Estava estudando, acumulando elementos espirituais, mas que só se poderiam materializar no livro quando voltasse à sua terra e à sua gente.

Escrever assim, longe é de memória, não devia; e tinha força para resistir ao desejo sôfrego que o queria arrastar, como se resiste aos prazeres do fumo e do ópio. Mas sentia que o livro sairia artificial e imprestável.

“Artiste on donne sa propre vie à ses créations, ou bien l’on taille des marionnettes, et l’on habille des poupées”, observou um dia o autor do Crime de Sylvestre Bonnard. Aluísio, para não fazer bonecos e vestir manequins, renunciou à produção literária.

Seria uma simples explicação? Seria uma confissão disfarçada de esgotamento e impotência? Não sei. Mas, foi dolorosa essa acalorada exposição em que a insistência nas minúcias e nos argumentos denotava a insinceridade inconsciente de quem se defende ou se explica, querendo convencer-se, primeiro, a si próprio da sinceridade de seus argumentos.

O que me pareceu verdadeiro, era que a Aluísio faltava a inspiração, que talvez, como ele dizia, só lhe pudesse dar de novo a vida ao sol vivificante do torrão amado.
A obra que escreveria seria o simples fruto do engenho, sem a participação do coração, e não quis fazê-lo, esse puro trabalho de esforço. Talvez, como a mim, se lhe houvesse deparado, em suas peregrinações pela Itália central, na recolhida capela do convento de Greccio, perto de Assis, tão cheia das tradições de Santo, a nítida inscrição esculpida na parede do coro:

Si cor non orat
In vanum lingua laborat.

Convenceu-se da verdade do velho dístico monacal e a língua não trabalhou, não quis que trabalhasse em vão. Anos ainda passaram sobre essa pitoresca, frugal colazione de Capri; anos passaram e a obra não veio e já agora não virá mais, que a luz de onde podia jorrar empalideceu e se extinguiu.
A terra amada, a que tornou alfim o filho pródigo, apenas lhe recebeu o corpo inanido e frio, para o guardar no seio em que se operam as transformações misteriosas da matéria e o trazer de novo à luz nas manifestações exuberantes da natureza tropical, que ele tanto amara.

***

A Academia vos agradece, Sr. Alcides Maya, o magistral perfil de seu querido morto. Ele foi dos da primeira hora, entrou para esta casa quando a iniciativa de Lúcio de Mendonça frutificou e a todos convenceu da necessidade de se criar a Academia Brasileira; mas, não é só por esse trabalho de simpatia por Aluísio Azevedo que vós vos fizestes merecedor da gratidão de nossa companhia. Outro serviço de maior vulto lhe prestastes já, com vos terdes ocupado, e longa e minuciosamente, de outro dos nossos e primeiro de todos por todos os títulos. Escrevestes um livro sobre Machado de Assis, a que modestamente chamastes “ensaio de crítica” e “esboço de livro”. Foi esse certamente o elemento decisivo da vossa acolhida triunfante nesta Casa. Esse livro em que delineastes, como fino espírito crítico e um perfeito sentimento de verdade, o humorismo doloroso de Machado de Assis, sobranceiro à nossa vida social, apercebendo-se de suas pequenas misérias e lastimando-as com jeito de quem ri delas, esse livro me dá ensejo para apreciar outro aspecto de vosso talento e talvez mais promissor que o de novelista, embora humano e sugestivo. Nele não se encontra uma biografia do mestre querido; não há ali datas e genealogias.

Em compensação, toda a alma de Machado de Assis ali está. Vós procurastes penetrar no espírito do inimitável autor de D. Casmurro para transmitir ao vulgo o vosso sentimento e não vos esquecestes do conceito de Balzac: “Pour juger nm homme, au moins faut-il être dans le secret de sa pensée, de ses malheurs, de ses émotions; ne vouloir connaître de sa vie que les événements matériels c’est faire de la chronologie, l’histoire des sots!”

Destes como subtítulo do vosso estudo – algumas notas sobre o humour – e, desta arte, desde logo fixastes a linha característica da fisionomia do grande escritor. Não viu ele, certamente, o mundo através de vidros cor-de-rosa, o travo de circunstâncias fatais que lhe doíam intimamente: as reminiscências das primeiras horas de esforço para ascender de um mundo onde o destino o depusera; a consecução das lutas que constituem a vida do ideal; as tendências do espírito que procurava de preferência o convívio dos espíritos azedos e rebeldes; tudo criou, desenvolveu e lhe manteve na alma essa bruma de pessimismo que nenhum raio de sol, mesmo pálido e atrasado, veio de leve espancar.

Fundamentalmente bom e caridoso, porém, seu pessimismo não conseguiu infundir-lhe maldade. A maldade que era, no sentimento dele, entretanto, quase um elemento de êxito. “Se alguém lesse isto achar-me-ia mau”, disse Machado, no Memorial de Aires, o derradeiro de seus livros, onde confessou cousas que em outros não tivera coragem de afirmar: “Se alguém lesse isto achar-me-ia mau, e não se perde nada em parecer mau, ganha-se quase tanto como em sê-lo.”
Entretanto, ele não foi mau, nem irônico, sendo a ironia uma forma dissimulada e amável da maldade, nem maledicente. “Jamais lhe surpreendi um gesto de maledicência”, escreveu dele Mário de Alencar, o mais dileto de seus amigos.

“Do mal que pensava, todo o quase todo provinha da suspicácia própria de um tímido e de um experimentado que sabe discernir e raciocinar o sofrimento... Sabia que o que é, é porque tem de ser... Admirava o idealismo da regeneração humana, entendendo a sua inutilidade e ineficácia; não tinha nenhuma forma de religião e admitia e respeitava todas as religiões. Tudo era expressão humana, e não lhe cabia senão olhar e comentar os homens. Não os acusava, reproduzia-os; e à natureza má opunha o sorriso inteligente que é o gesto adequado à beleza, melhor que as lágrimas indiscretas...”

Foi justamente este Machado, bom e compassivo, que às tristezas circunstantes sorria para não chorar, foi esse o Machado que surgiu nítido e triunfal de vossa análise sincera e conscienciosa, que é também uma defesa intencional contra injustificáveis ataques. Assinalastes o sentimento de humour que domina seu espírito. E o humour para vós, como psicologia, encontra dous elementos notáveis no “enfado e tristeza do mundo e do homem, mas tristeza mista de impassibilidade e de pena à percepção das cousas, e enfado que o prazer da análise tempera de orgulho”.

“O humour é revolta, melancolia e piedade”, escrevestes ainda, “fora apenas revolta e não se exprimiria em forma artística, embora irregular; mas também é sombra de alma, humanidade que não se resignou de todo, que ainda sonha”...

E no desenvolvimento interessante e vivo de vossas idéias chegais à definição de Paulo Stapfer, que Eduardo Scherer resumiu: “O humorista é o pintor tragicômico do homem e do absurdo humano.” Por isso, achais que Machado de Assis avulta singular nas letras nacionais, e a parte que teve na evolução delas é toda ideal, no sentido humano da palavra; sendo o domínio que lhe cabe o homem e o seu absurdo.

“Ele não era um colorista local”, vós o dissestes também, “e pensava que, qualquer que fosse a latitude, o homem lhe apareceria sempre idêntico, tendo apenas de nacional o feitio exterior. Em essência, palmilhe este ou aquele solo, os mesmos instintos vibram nos mesmos órgãos e invariáveis exercem-se, sujeitas a limitações intransponíveis, as mesmas transitórias faculdades. Entretanto, a esse mordente caricaturista de almas devemos alguns tipos de romance, de conto e de novela admiráveis de verdade como representação social. Resulta-lhe nota predominante no desenho e exagero cômico; não descreve costumes; raro delineia um panorama; e nada obstante, das suas páginas poderá extrair o crítico – se curioso de tal assunto – preciosos documentos sobre a nossa índole coletiva, pelo menos nos centros de cultura. Certas classes, resumiu-as em indivíduos completos, alguns dignos da firma dos grandes naturalistas, tão bem lhes dissecou os caracteres predominantes e tanto os depurou do postiço que, em geral, lhes atribui uma literatura de reflexo.”

São de toda a justiça estes conceitos. Tendo educado o espírito e disciplinado a arte no estudo dos grandes mestres e nos ensinamentos das literaturas estrangeiras, as criações de Machado de Assis, arrancadas à própria vida sem intenção de escola artística, estampam como poucas, apesar do pessimismo do autor, a psicologia real da sociedade.

A obra de Machado é essencialmente nacional. A gente que o seu gênio animou é positivamente a nossa gente; e se esse grande fim ele conseguiu, o de, imbuído de educação estrangeira, mais do que isso, universal, vazar tipos de natureza, aspecto, sentimento e ação, nossos, inteira, perfeitamente nossos, nós lhe devemos ainda, graças à ductilidade maravilhosa de seu espírito, o benefício do seu exemplo num largo trecho da nossa vida literária, afazendo-se ao sentimento da época, amoldando-se ao feito contemporâneo.

Por isso escrevestes com muito acerto que ele “não se dobrou a escolas nem se dedicou a uma literatura de proselitismo; ao surgir, manteve-se sereno entre os exageros clássicos e românticos, e quando, após as obras iniciais, se afirmou integralmente em arte, surgiu cultivando novas formas. Era um humorista. Impressionara-o a cultura das grandes nações: adquirira uma concepção geral do mundo, da vida e da história; ocidentalizara o seu gênio. Dispondo de vastos recursos picturais, pudera ter feito quadros de gênero; preferiu analisar caracteres, casando com o próprio temperamento na figuração moral do homem o espírito de ceticismo, que é uma das notas próprias de nosso tempo”.

Tantas e tão belamente ditas são as passagens em que no livro sobre Machado de Assis assinalais um traço da fisionomia personalíssima do mestre, ou se insinua uma observação original e profunda sobre sua obra e sua maneira, que mal me tenho contido do prazer de transcrever ainda. Os meus ouvintes me agradecerão sem dúvida o encher eu o tempo destinado à minha oração mais com o lavor daquele a quem recebo do que com o desalinho da minha linguagem própria. Não devo, porém, abusar, nem quero incidir na censura dos que possam ver neste discurso, que se não quer enfadonho, um desrespeito ao oportuno conceito horaciano.

Fecho, pois, o ciclo das transcrições dando os meus agradecimentos ao novo companheiro pelo ensejo de ter feito ecoar sobre o simbolismo da nossa cúpula o entre todos querido nome de nosso primeiro e glorioso Presidente. A justiça vai-se fazendo lentamente em torno dele; mas vai-se fazendo, e ela nunca vem tarde. A justiça pode escolher a sua hora, na frase desse místico pagão que foi Luís Menard, a justiça pode escolher sua hora, pois que ela é eterna.

***

Eis, ditas com a sinceridade desativada de minha convicção, as razões por que a Academia atendeu ao vosso desejo de pertencer ao seu grêmio e hoje vos acolhe com o ritual do costume, mas com acentuada satisfação e justificada esperança. Tendo-vos esforçado, na preocupação do ideal, por merecer a escola da Academia, tivestes a satisfação de ver esse esforço coroado e vosso nome harmonioso é hoje levado aos quatro cantos do país pelas auras da fama. É isso certamente a glória, que a precariedade da nossa condição permite aos eleitos o destino. Contentai-vos com ela, entretanto, procurai manter-vos nessa latitude, prosseguindo na obra sob a inspiração dos mesmos sentimentos que até aqui vos têm animado. Se vos sentis glorioso, não desejeis ser popular. Da glória para a popularidade não há senão alguns degraus, disse com seu fino espírito aristocrático Barbey d’Aurevilly; mas degraus que descem. Permanecei, pois, onde vos achais e continuareis a ser digno.

Montalembert, num famoso discurso em sessão pública do Instituto de França, em que se fez o elogio de companheiros desaparecidos, observou: “Ces grands morts nous rappellent des grands devoirs. Il ne suffit pas à notre renommée d’avoir été leurs confrères, d’avoir vécu – avec eux et après eux; il nous faut encore vivre comme eux; il faut, comme eux, aimer et servir la vérité.”

A Academia Brasileira ambiciona destacar-se do espírito predominante do utilitarismo em que hoje se vive mergulhado. Reunindo em seu convívio alguns dos nomes que a cultura literária possui de mais significativo entre nós, ela procura manter acima das preocupações gerais de riquezas, de bem-estar material, de epicurismo, que tudo avassalam, aquele sentimento ideal que Montalembert chamou – la passión des choses élevées – e com a qual se queria armar para opor ao declínio contemporâneo que se ousava apregoar como progresso, as altas e livres meditações do pensamento; aos triunfos efêmeros de Plutus, as derradeiras vitórias puras e magnânimas da inteligência.

Vós, com vossos livros, com a ação que já soubestes desenvolver em vossa terra natal, agremiando em torno de um ideal de arte, alto e desinteressado, uma plêiade brilhante de jovens engenhos, o que vos valeu ali um título honroso de leader dos novos, vós nos destes seguras arras de que vossa colaboração no prosseguimento dessa obra será profícua.

Soubestes fixar a fisionomia literária e moral de dous grandes mortos de quem a saudade vive nesta Casa; sois, pois, apto para os imitar e dar continuidade àquelas vidas a que um ideal superior impunha a diretriz.

Zombem os imponentes da aristocracia que querem ver em nossa sociedade; proclamem outros, mal avisados, a inutilidade da instituição que dizem anacrônica e inócua. Ela que continue a existir. Basta que ela exista como um simples núcleo de escolha, ao qual se ambiciona pertencer, cuja acolhida nos dê, subjetivamente mesmo, de nós para nós, uma parcela, pequena que seja, de convicção de superioridade; basta isso para que a Academia seja um elemento de aperfeiçoamento social.

Perpetuemos, pois, a existência dela, a despeito de tudo, e teremos assim estimulado esforços isolados que refletirão sua influência benéfica na coletividade, procurando fazer com que se queira ser melhor, para que cada qual se sinta digno de levantar os olhos até ela; continuemos a ser, no conjunto de nossa organização, esse pináculo a que nem todos podem pretender elevar as vistas; e, quando nada mais fizéssemos, isso bastaria para defender a oportunidade de nossa existência; para justificar a conveniência de nossa perpetuidade. Mas para nos mantermos nessa desejada altura, é preciso que não nos contentemos em ser os simples companheiros de nossos colegas, os meros sucessores de nossos antepassados espirituais. É mister que queiramos ser os continuadores de sua obra, e que, absorvidos pela paixão das cousas elevadas, nos saibamos conservar isentos de cumplicidade na depressão moral e intelectual de nossos tempos, assegurando, pela imitação da vida dos que foram grandes e nobres, as perspectivas de um futuro melhor.