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Discurso de posse

DISCURSO DO SR. ALCÂNTARA MACHADO

Dentre as mercês que vos fiquei devendo, Srs. Acadêmicos, tenho por uma das melhores a longa e saborosa intimidade, a que me obrigastes, com a obra e a vida igualmente formosas de meu antecessor.

Vida muito simples. Obra que não peca pela abundância. A parcimônia desta, a discrição da outra, a nobreza de ambas estão a revelar, em sua unidade e coerência, como reflexos diferentes do mesmo lume interior, o feitio espiritual do homem. Foi ele uma dessas criaturas a quem o destino recusa o favor perigoso de acender entusiasmos mais ou menos provisórios, e concede a graça maior de suscitar simpatias perduráveis e unânimes. Poderá talvez quem lhe trace o perfil escapar àquele estado permanente de transe, àquele êxtase beato, que constitui, a acreditarmos no ensaísta inglês, doença profissional dos biógrafos. Ninguém haverá, todavia, que de seu convívio não saia enriquecido, e, depois de gozar a doçura de freqüentá-lo, se não confesse, como de público e reverentemente me declaro, discípulo do professor de honestidade no pensar, delicadeza no sentir e boas maneiras no dizer, cuja herança jacente nesta Casa houvestes por bem deferir-me.

RECIFE E COIMBRA

Em Recife veio à luz e viveu até à adolescência José Júlio da Silva Ramos.
O pai, médico de largo conceito, era nascido em Pernambuco, mas diplomado em Portugal e casado com portuguesa. Está assim explicado o fato de haver mandado o rapaz, logo depois de concluídos os preparatórios, a estudar leis na Universidade de Coimbra. Explicado, apenas. Porque não se justifica jornada tamanha em busca do diploma ambicionado, quando na cidade natal, a dois passos da casa paterna, existia em pleno funcionamento uma fábrica generosa e ilustre de bacharéis, que, se não sobreexcedia, também não sobestava à ultramarina.

Arriscado seria julgá-las tão-só pelo depoimento dos alunos. A caridade intelectual figura entre os poucos privilégios abandonados à velhice pela mocidade. Quando se tem vinte anos, nenhuma escola existe, que não seja hipogeu bolorento de verdades defuntas, e quase todos, senão todos os catedráticos se emparelham, no que toca à inteligência, com certos solípedes africanos de pelame vistosamente listrado.

Assim, não devemos fiar sobremodo no gesto de Benilde Romero, irmão de Sílvio e como ele desabusado e explosivo, que se despede naquele tempo da congregação atônita de Recife, com a declaração espantosa de que nada tem a agradecer-lhe, porque em postilas horrendas de carolice e pedantaria não se aprende patavina. Nem podemos tomar à letra a página de Eça, magnífica de ferocidade, transudante da “splendida bilis” horaciana, em que a Universidade conimbricense, mãe amorosa de tantas gerações insignes, aparece deformada, pelo malefício de palavras que silvam e mordem como víboras, em madrasta sem estranhas, toda entregue à volúpia sinistra de comprimir e escurecer as almas.

Basta a virulência de libelos tais para enfraquecer a acusação. Denunciam, porém, esses e outros sintomas a existência de alguma coisa de repugnante à consciência dos moços no espírito e nos métodos de ensino do Direito. As duas Faculdades andavam então esquecidas, como tantas se conservam ainda agora, dos deveres incumbentes a organismos de tamanha excelsitude na formação da mentalidade nacional. Abdicavam, por indolência, a dignidade soberba de centros de elaboração e irradiação do pensamento jurídico; e, tolhidas pelo teorismo dos programas e pela inépcia dos processos pedagógicos, não tinham sequer as vantagens suculentas, embora subalternas, das escolas meramente profissionais. Desviadas assim de sua missão de cultura como de sua função prática, patinhando e remanchando no atoleiro da rotina, com professores atrelados ao compêndio e discípulos prisioneiros da sebenta, haviam-se degradado a máquinas distribuidoras de graus acadêmicos.
Se ambos os institutos se limitavam a fornecer pergaminhos em vez de conhecimentos, por que adquirir no estrangeiro artigo equivalente ao indígena em qualidade e preço? É que um demorava muito próximo, alojado no pardieiro leproso da rua do Hospício, com os seus aleijões e deformidades bem visíveis; e o outro, aos olhos saudosos dos pais e à imaginação famulenta do filho, tinha o prestígio invencível das coisas distantes no tempo e no espaço.

Pouco se lhe dava, aliás, a Silva Ramos, a maior ou menor eficiência das lições que ia receber. Não o seduziam, nem a beleza difícil do que ele chamou depois as regiões enevoadas da jurisprudência, nem as perspectivas lisonjeiras das províncias reservadas à atividade dos juristas. Se optou pela escola de direito, foi confessadamente por ser aquela que ócios mais largos lhe consentiria aos devaneios de poeta “in esse” e de cronista “in posse”. Acertou na escolha. Em toda a parte o curso jurídico é estrada suave e batida, de rampas macias, e tão desimpedida de obstáculos, que nenhuma outra se lhe compara em facilidade e segurança. Recomendam-na singularmente aos espíritos romanescos as veredas extravagantes em que se desarticula e multiplica, de maneira que pode levar o caminhante às paragens mais imprevistas: ao parlamento, à literatura, à diplomacia, à lavoura e até, por vezes, ao Fórum.

Para escalar o Parnaso não precisava Silva Ramos de transpor o oceano. Poesia é função de certas almas, e não atributo de certas paisagens. Estará sempre e somente onde houver alguém capaz de justificar a definição de Emerson: o poeta é “aquele que diz”. As palavras que emprega são as mesmas de que nos servimos. Ganham, porém, em sua boca, um timbre, um sentido, um prestígio inesperados. Criam imagens novas do universo. Reintegram a carne no verbo. Libertam do estado larvário as idéias e os sentimentos, que o comum dos homens não pode exprimir. Aumentam-nos em todas as dimensões o espírito e o coração. Tudo porque o poeta sabe realizar a união hipostática do pensamento com o ritmo.
O estímulo da hora, tê-lo-ia o jovem pernambucano, deixando-se ficar em sua terra. Abandonou-a, precisamente, num dos momentos mais patéticos da vida nacional.

Havia chegado o tempo da guerra do Paraguai, farto de sangue e de lágrimas, que são a matéria-prima dos poemas imortais. Esvaía-se o melhor da substância do Brasil pelas veias abertas dos heróis, enquanto subiam de todos os rincões para o céu indiferente o soluço das viúvas e o rugido das mães.

Os tempos tinham chegado, propícios à criação artística, porquanto dominados pelo signo da inquietação. Inquietação na ordem filosófica, abalada até aos alicerces pela irrupção do comtismo e do transformismo; no domínio estético, pelo advento dos hugoanos, e, logo depois, pela importação da poesia parnasiana e do romance naturalista; na esfera política, pela ressurreição da idéia republicana e pelo problema cruciante da escravidão. Processava-se na alma da juventude uma dessas roturas definitivas e bruscas com o passado que, no conceito de Macaulay, tornam duas gerações consecutivas tão diferentes uma da outra, como se pertencessem a povos estranhos; e nunca, por isso mesmo, os nossos meios acadêmicos se mostraram mais opulentos de valores espirituais. Se houvesse ficado no lugar em que nasceu, naquela cidade que, “sorrindo à sombra dos coqueiros”, acenava a Gonçalves
Dias, e aos olhos agudos de Eduardo Prado se apresentava “clara e limpa, à beira de lagunas, de rios, de canais, muito branca, muito sossegada, com as suas casas de azulejos e de telhados vermelhos”, Silva Ramos teria sido condiscípulo de Joaquim Nabuco e Araripe Júnior, de Luís Guimarães e Inglês de Sousa, de Franklin Távora e Tobias, de Castro Alves e Rui Barbosa. Onde poderia encontrar uma ala assim numerosa e galharda de servidores da beleza?

ESTUDANTE COIMBRÃO

Depois de breve estágio na Escola Acadêmica de Lisboa, chega José Júlio a Coimbra em 1869. Não nos interessa, porque a ele nunca interessou de verdade, o seu currículo escolar.

Sai de casa, certa manhã, muito bem posto no uniforme, que veste pela vez primeira: capa traçada, batina curta e calção, tudo talhado a capricho pela tesoura impecável do Barata, alfaiate famoso, que tem a tenda no Arco d’Almedina: voltinha eclesiástica a vestir-lhe o pescoço; meias negras de laia; sapatos comprados ao Ervideira, ali no largo da Feira dos Estudantes. Vai seguindo, garboso e faceiro, até que, chegando ao canto da Rua dos Loios, ouve o berreiro da estudantada, que monta guarda à Porta Férrea, para pegar “de cara” os novatos. Só então dá acordo do perigo. Procura, em vão, nas cercanias, um quintanista benemérito, “caronte” providencial, que lhe ponha à cabeça a pasta de veludo vermelho, único meio de transpor incólume o passo fatídico. Ninguém. Que remédio? Investe, suando frio, a barreira infernal; e atravessa-a por entre empuxões, repelões, canelões, até dar consigo nos Gerais, dentro do recinto da Universidade, com as canelas em fogo, os cabelos em desordem, escalavrados os sapatos preciosos e amarfanhadas a batina e a capa.

À noite, mal refeito do susto, resolve espairecer um bocado. Salteia-o uma saudade lancinante dos rios quietos e dos mares raivosos de Pernambuco. E se fosse ao “Ó da Ponte” ver a dança do luar sobre as águas do Mondego? Segue; mas, à primeira esquina, uma revoada de asas negras se abate sobre ele. São alguns segundanistas, que andam à caça de calouros. Posto no meio do círculo, tem de bailar, e cantar, e discursar, e dizer a tabuada. Deixam-no, afinal, depois de o terem “esmonado”, ou tosquiado os cabelos, de uma banda só. Corre à casa, ansioso por ver ao espelho o estado a que lhe reduziram a cabeça. Que selvageria! Para distrair-se abre um livro, tomado ao acaso; e Quevedo consola-o da aventura nefanda, contando-lhe o que era o “trote” em Salamanca. Mil vezes a tonsura burlesca, do que o “gargajeo” imundo! 

Passados os primeiros dias, José Júlio começa a sentir-se mais à vontade. Não acreditamos tenha assentado praça no regimento dos “ursos”, estudiosos e pacatos, senhores e possuidores dos bancos da frente, submissos ao toque vespertino da “Cabra” e às badaladas matinais do “Cabrão”. Será preciso lembrar que a geringonça acadêmica assim batizou os sinos aborridos da torre universitária? Maldita seja a “Cabra”, que na véspera dos dias úteis interrompe a cavaqueira com os colegas ou o derriço com as tricanas, lembrando à gente que são horas de recolher à casa, acender o candeeiro de três bicos e mergulhar na sebenta! Raios te partam, “Cabrão”, que nos dias de aula obrigas o estudante a saltar da “rabeca”, leito humilde e gostoso de quatro tábuas armadas sobre cavaletes, confessionário de tantos sonhos e de tantas decepções!

O lugar de Silva Ramos não é também no fundo do auditório, no “poleiro” dos anfiteatros, na “coelheira” das salas rasas, onde, ninado pelo recitado pastoso e monótono do lente, pode o cábula dormir à vontade, após uma noite esbanjada na taberna do “Homem do Gás” ou na baiúca do “José Maria”, a comer sardinhas fritas e broas de milho, a esvaziar copázios de carrascão da “Bairrada”, e a inventar nos intervalos a melhor maneira de endireitar o mundo.

É bem no meio, a igual distância das duas bancadas, que estamos a vê-lo. Espírito feito de ponderação e equilíbrio, atento à medida nas atitudes e à decência nas palavras, avesso aos gestos excessivos e às soluções extremas, são as zonas temperadas que mais condizem com o seu caráter. A altivez não lhe consente fingir que bebe com delícia o verbo magistral. Ressonar francamente, veda-o a cortesia, que nele não é verniz superficial, mas alguma coisa de orgânico e instintivo. O recurso é fazer o que estais fazendo agora: ter os olhos fitos no orador, e o pensamento e os ouvidos alhures. “Peregrinantur aures”, dizia Cícero.

Para que dar atenção às preleções? Ali está a postos o “sebenteiro”, que as recolhe e vende por alguns tostões, depois de litografadas pelo Pacheco, da Rua das Cozinhas, ou pelo Manuel das Barbas, do Marco da Feira. Manuel das Barbas, o Venturoso, poderíamos chamar-lhe, se déssemos crédito ao epitáfio que em vida lhe fizeram:

Litografava sebentas
Mas foi feliz: nunca as leu...

Nenhum professor existe, na congregação daquele tempo, digno do nome. Nenhum desses espíritos de negação ou de afirmação, empreiteiros de demolições ou arquitetos de hipóteses, que imprimem para sempre na alma dos discípulos o selo de sua personalidade soberana. Existem docentes, o que é a coisa muitíssimo diversa. Alguns, simpáticos e esclarecidos; outros, porém, últimos espécimes de uma fauna odiosa e grotesca. Déspotas de beca, autocratas de borla e capelo, arrogam-se todos os poderes sobre a consciência dos alunos. Impermeáveis às influências do momento em que vivem, ensinam o que aprenderam de seus mestres e estes de seus predecessores; e reputam sacrílega e menor veleidade de autonomia intelectual. Não se limitam a transformar a Universidade em senzala de inteligências: obrigam os estudantes, dentro e fora da escola, ao regime vexatório dos presídios. As ruas da Alta, onde se concentram as “repúblicas”, são rondadas, dia e noite, pelos archeiros e verdiais, esbirros da polícia acadêmica. Ai do rapaz que se mostre publicamente com a batina desabotoada, ou tenha andado a perseguir os neófitos durante a Semana Santa, ou seja, convencido de delitos quejandos! Põem-no logo sob “paternal custódia”, eufemismo que disfarça o encarceramento na prisão dos Loios. Dentre esses megatérios do professorado, vários são francamente lunáticos.  Há quem reprove, por sistema, todos os primeiranistas que apareçam nas aulas “esmonados” ou tonsurados pelos veteranos; como existe quem não aprove examinando que tenha o desaforo de chamar-se Franco. Inéditos e nulos, deixam apenas de sua passagem pelo magistério uma esteira de odiosidade ou de ridículo; e é na literatura anedótica da Universidade que vamos encontrá-los sambenitados de alcunhas vingadoras pela juventude: o Marmelada, o Cãozinho de Regaço, o Pedro Penedo da Rocha Calhau... Ao conhecê-los fica a gente a pensar porque a deusa tutelar de Atenas, que, com uma esfera de granito na mão, se anichava acima da cadeira professoral, se obstinou sempre em desatender à exortação famosa:

Minerva, faz-nos a esmola,
Se o pai dos deuses consente:
Deixa cair essa bola
Sobre a cabeça do lente!

Pouco importa afinal o que ensinam os catedráticos. De Coimbra só interessa o que fazem os estudantes.
Que hão de fazer, senão versos? Desde que pelos “saudosos campos de Mondego” passou Luís Vaz de Camões, há grande fartura de lirismo nos “ares lavados e doces”, que vão “do Salgueiral até Celas”. Nascida dos “formosos olhos nunca enxuitos”, da linda Inês, a Fonte das Lágrimas é uma Castália em miniatura, que nunca se recusou a amamentar imparcialmente clássicos, românticos e modernos. Mais poetas se encontram à tarde, beberricando café na Delfina, passeando à sombra das tílias do Jardim Botânico ou sob os loureiros  da Quinta dos Crúzios, cavaqueando nos bancos do caminho da Beira, do que papoulas nas searas do vale de Coselhas ou pardais no Choupal. Em noites de luar o Penedo da Saudade transborda de trovadores; e basta um pouco de imaginação para emprestar a aparência de bosque sagrado à mancha escura dos olivais, que se estendem pela várzea, frementes de rouxinóis. Mas é principalmente nas bodegas oficiais da Academia que os cenáculos se formam e florescem.
A estas horas seria imprudência descermos pelo “Quebra costas” à cidade baixa, e, perdidos no labirinto das vielas sórdidas, irmos à procura das locandas do “Conselheiro Rodrigo” e do “Varão de Luxemburgo”. Estamos a dois passos do canto da Rua Larga com a do Borralho, onde as tias Camelas têm a tasquinha ilustrada por tantas proezas memoráveis.

Ei-la, anunciada pelo ramo de louro à frente da casa. Logo à entrada, alguidares de barro sobre caixões de pinho regurgitam de sardinhas maravilhosas. O salão está vazio. À luz mortiça de dois renques de candeeiros entrevemos o mobiliário composto de tripeças cambaias e ensebadas, em torno de mesas atoalhadas de estopa. Ao fundo, como um altar iluminado, o fogão flamejante. As labaredas começam a lamber gulosamente as frigideiras negras de fuligem. De envolta com a fumaça da lenha crepitante, o cheiro das peixadas que chiam no azeite foge para a rua, a convocar a freguesia; e, aos magotes, os rapazes invadem o recinto. 

Nem todos vestem o uniforme regulamentar. Alguns envergam burguesmente, “à futrica”, a jaqueta ou a quinzena. Outros, de carapuça encarnada, colete de Saragoça, faixa vermelha à cintura, e, na mão, o varapau tremendo, fingem de campônios. Cachimbos, charutos e “milícios”, que são os únicos e horríveis cigarros do contrato, empestam a atmosfera. Discussões. Piadas. Algazarra. E vinho à farta: o “vivo”, que sai borbulhante da pipa; o “carrascão”, leve e loiro como os seus primos da Renânia. Enquanto isso, a correr de uma panela para outra, no afã de mexer e remexer as enguias e as postas de sável, a mais velha das Camelas, toda engelhada, vestida de vermelho pelo fogaréu, lembra uma feiticeira em noite de Sabat. Tudo, com grande escândalo dos santos, que, pregados em efígie às paredes, levantam pudicamente para o céu os olhos pensativos.

Desenha-se de repente, em meio do tumulto, um movimento de atenção, como se diz nos anais parlamentares. É que acabam de chegar os poetas da Couraça. Que estudante há por aí que não conheça a casa de que lhes vem o apelido, sita à Couraça de Lisboa, com a porta e a janela escancaradas noite e dia para o patamar de pedra? Onde o calouro, que não sonhe imitar-lhe a vida estouvada e desperdiçada de estróinas? Qual o novato, que não afague a esperança de colaborar na “Folha”, semanário de pequena tiragem e larga nomeada, que, redigido por eles, desempenha no meio literário de Coimbra o papel de arbiter elegantiarum?

Espetaculoso e arrogante, de barrete húngaro à cabeça, mãos cruzadas nas costas, lábios franzidos por um sorriso mordaz, que sublima a impertinência de monóculo entalado no olho esquerdo, João Penha narra a história fabulosa do manjericão mofino e pálido, a que resistiu as cores e saúde, com regadelas de vinho. Ao lado do cantor dos paios de Melgaço e dos presuntos de Lamego, está um moço moreno, desbarbado, enxuto de carnes, máscara atormentada e revolta. É Gonçalves Crespo, que acaba de chegar das águas de Aljustrel. Toma do lenço, limpa devagarzinho os vidros da luneta e, grifando a narrativa com risadas largas que lhe desvendam a alvura dos dentes, agravada pelo trigueiro da tez, conta os episódios facetos da estação balnear. O último, não precisamos apresentá-lo: a pequenez do porte, os cabelos negros e curtos, a fronte escampada, os olhos cheios de faíscas, o nariz hebraizante, a petulância do bigodinho agressivo, o mento voluntarioso bastam para identificar Abílio Guerra Junqueiro. Parece preocupado. É que anda a premeditar o assassínio impossível de Dom João; e, inimigo pessoal do Padre Eterno, acaricia o projeto de abrir, como o Fídias de Charles Maurras, uma escola de sacrilégios.

Excluídos, naturalmente, do convívio dos triúnviros, formam rodinha à parte os noviços das letras. Deste ângulo podemos observá-los à vontade. Ali estão Silva Ramos, Garcia Redondo, Bettencourt Rodrigues, Antônio Cândido, em volta de um rapaz cabeludo e simpático. É alentejano, de Regüengos de Monsaraz. Deu-lhe a fortuna, por equívoco, o nome planturoso de Antônio de Macedo Papança, nome feito sob medida, não para um poeta delicado e fidalgo como ele, mas para um dos cônegos bojudos de Braga ou de Leiria. Qual o problema que estão discutindo, entre garfadas de sardinhas e goles de verde, esses rapazes mal saídos da impuberdade? O título do jornal, que lhes servirá de órgão. Escolhem-no ao cabo de caloroso debate. Chamar-se-á “O Peregrino”, tão inexplicavelmente como se chama Papança o chefe do grupinho literário.

POETA LÍRICO

Com que alvoroço, algumas semanas depois da noite vivida conosco sob o teto enfumaçado das Camelas, Silva Ramos vê impressos em “O Peregrino” os primeiros versos que lhe saíram da lira!
Da lira, sim. Que outros emboquem a tuba estridente da epopéia; ou rufem o tambor das reivindicações políticas ou sociais; ou, metendo simplesmente, dois dedos na boca, apupem os pecados e vícios do próximo; ou, como prescreve a moda atual, se ponham a bater canhestramente, de mãos enluvadas, em atabaques africanos, ou a trautear, muito a sério, toadas pueris em cornetins e gaitas de vintém.
Poeta lírico é ele então, e sê-lo-á durante a vida inteira. A seu ver, só um tema existe, digno do instrumento com que, rasgando nos horrores do inferno um parêntese de paz e suavidade, Orfeu imobilizou nas mãos das Eumênides o chicote implacável e calou nas fauces de Cérbero o latido medonho.

Confessa-o no limiar da brochura vestida de lilás, em que reuniu os poemas da adolescência. Aí está uma usança que devera ser obrigatória. Posta logo no ingresso do livro, a citação denuncia as amizades espirituais do autor e as fontes, ocultas no subconsciente, de sua inspiração. A mesma inscrição terá, conforme o leitor, sentidos opostos. Pode representar para este o mais amável dos convites: “queira entrar!” Para aquele constituirá possivelmente advertência minaz, equivalente à nuncupatória encontradiça no peristilo das antigas moradias romanas: “cave canem!”

A epígrafe dos Adejos diz simplesmente: “L’amour est tout... Aimer est le grand point”… Nestes dois versos, que certa vez gotejaram, como dois pingos de sangue, do coração “soberbo e solitário” de Alfredo de Musset, estão concentradas uma concepção do universo e uma filosofia da arte rasgadamente líricas. É natural que tais sejam as de Silva Ramos, quando contempla o mundo com os olhos novos e enfáticos dos dezoito anos, e, alma desarmada de malícia, acredita ainda nas promessas ambíguas do destino. Espantoso é que se lhes conserve fiel na idade amarga, em que todos sentimos o nosso tesouro de ilusões e de sonhos desbaratado e saqueado pela experiência.

“Sempre igual a ele mesmo, sem nunca se contradizer, sem nunca se desmentir”, com a sólida coerência que lhe é um dos traços marcantes da fisionomia moral, o septuagenário não vacilará em repetir, sem embargo de tudo quanto já viu de torpezas e padeceu de misérias “pela vida afora”, o credo magnífico do adolescente. “O lirismo não morre” (afirma-o bem alto no elogio de João de Deus), “porque o lirismo é o Amor, e o Amor a lei de atração universal, que rege as almas, infinitamente mais poderosa que a que rege a Natureza.” Que assegura, em suma, senão isso mesmo, quando, de outra feita, se propõe a “extrair das coisas a essência de ternura que elas contêm?” E quando nos ensina, em fórmula ardente e clara como um diamante, em palavras que a Virgem de Ávila não renegaria, ser o prêmio do amor o próprio amor?

Aquele empenho ruskiniano em nobilitar os elementos pobres e comuns da vida; aquela intimidade com a natureza, que lhe dá o direito de tutelar o sol como a um “bravo camarada”, à maneira do pobrezinho de Assis; aquela postura, que foi sempre a sua, mais contemplativa do que militante, mais de aceitação do que de reação, em face da fortuna, são outros tantos indícios de que em Silva Ramos o lirismo reflete a realidade interior; e o cravo inamovível que lhe sorri na carcela do casaco, será talvez, para os freudianos, a afloração do sentimentalismo censurado e seqüestrado pela hostilidade do ambiente.

AMIZADES LITERÁRIAS

Vôos incertos e prudentes de pássaro quase implume e ainda mal seguro do vigor das asas, servem-lhe os Adejos para aproximá-lo das figuras primaciais da poesia portuguesa. Das velhas e das novas.
Torna-se íntimo de Sabugosa, Teixeira de Queiroz, Macedo Papança. Deste, principalmente, que costuma levá-lo a saborear a primavera na quinta dos Colmeeiros. Admitido a galgar diariamente os seis degraus de acesso à casa de Crespo e de João Penha, pode admirar à vontade a alcova do primeiro, empapelada com estampas de jornais ilustrados, e, da janela do outro, o panorama tranqüilo de Coimbra, com os seus outeiros exultantes, como os do Salmo, às carícias do sol, ou aveludados e retocados pelo crepúsculo. Guerra Junqueiro dá-lhe a investidura de amigo vitalício; e não tardaremos a vê-los, montados cada qual em seu burrinho, pela serra de Cintra acima, onde a “musa em férias” vai tonificar-se.

Passar-lhe em revista as amizades equivale a evocar todos quantos, por volta de 1880, “jogam os malabares das letras entre o Martinho e a Havanesa”: desde João de Deus, macambúzio e meigo, com o seu sorriso unilateral de meia cara e meia boca, até o louro e doentio Cesário Verde, pintor delicado de realidades grosseiras; passando por Gomes Leal, de um pessimismo palavroso demais para ser sincero, e Fialho de Almeida, a quem falta em ironia o que sobra em acidez.

Vivendo assim com os novos, Silva Ramos não se julga obrigado a envolver os velhos no mesmo desprezo imparcial. Encarna então a velhice, a tradição, a literatura oficial, Antônio Feliciano de Castilho. É de ontem a ofensiva fulminante desfechada contra a sua autoridade pela escola coimbrã, sob o comando de Antero e de Teófilo; e percebem-se ainda os derradeiros lampejos de incêndio, que a revolução ateou, e o surdo rumor dos últimos desabamentos. Silva Ramos não vacila, entretanto, em transpor o pórtico do palacete da Rua do Sol, ao Rato, a fim de prestar homenagem ao sonhador de “Felicidade pela agricultura”. Com que efusão o patriarca, pálpebras caídas sobre os olhos mortos, acolhe o brasileirinho, vindo do território ocupado pelo inimigo! O apreço dos que vêm chegando tem para os que vão partindo o antegosto da imortalidade. Em torno de Antônio Feliciano estão Henriques Leal, Bulhão Pato, Júlio César Machado e outros de tomo inferior. Silva Ramos ouve a leitura de um drama em verso de Júlio de Castilho e a recomendação de seguir a trilha dos maiores. Ignoramos a impressão que lhe produz o drama, filho bastardo da tragédia de Ferreira. A recomendação, acha-a detestável; e vira-a pelo avesso, quando lhe chega com a idade a vez de confeiçoar e propinar conselhos.

“Fuja quanto possível de imitar os mestres, que mais depressa lhe pegarão os defeitos que as virtudes”, adverte ele com o seu claro entendimento ao neófito das letras, ansioso pelo roteiro da vitória. E ajunta: não se filie a nenhuma dessas escolas que por aí formigam, claustros onde os espíritos se escravizam à regra da comunidade, capoeiras em que não podem viver senão galináceos de asas mutiladas.  
Tem razão. Antes dele, já havia firmado, em sua linguagem cortante e rútila de espadachim da crítica, Barbey d’Aurevilly que a poesia genuína é essencialmente solitária e individual: as águias voam sozinhas; andam desacompanhados os leões. Os verdadeiros artistas não têm modelo e desafiam a imitação. Mal acaba de fabricá-los (podemos dizê-lo à maneira cabocla), Deus quebra a fôrma e rasga a receita. Assim, aos principiantes que não sabem como empregar a imensa riqueza, que é a liberdade, o poder formidável, que encerra a inexperiência, e perguntam com angústia o que devem e o que não devem fazer, a resposta não pode ser outra senão esta, de Georges Duhamel: “Sede o que sois, e nada mais.”

A sinceridade, eis a lição salubre dos que honram o espírito humano. Todos eles, por isso mesmo, sem distinção de épocas ou de gêneros, merecem que os conversemos, mão por mão, assiduamente. Dessa verdade compenetra-se desde logo Silva Ramos. Os parnasianos apresentam-no aos românticos. Os românticos, aos clássicos. Entre os autores de à cabeceira tem constantemente Camilo, Camões e Virgílio.

“O meu mestre Virgílio”, é dessa forma que chama, com deferência e carinho, ao mantuano, que disse a beleza da terra violentada pela charrua, engravidada pela semente, e a sorrir, na glória da maternidade, quando dos flancos incansáveis lhe rebentam floradas e colheitas.
Do comércio diário com o outro, que cantou como ninguém o “mal que mata e não se vê” a “dor que desatina sem doer”, a “ferida que dói e não se sente”, vem-lhe a predileção pelo soneto

diamante que reflete...
a alma de Camões e a alma de Petrarca.

Vem-lhe, sobretudo, a densidade lírica de versos como estes, marcados “com o contraste da arte soberana”, onde esplende a concepção mística do amor, a insatisfação da posse imperfeita, a fome do absoluto, a sede furiosa de imortalidade e plenitude:

Eu e tu. A existência repartida
Em duas almas. Duas almas numa
Só existência. Tu e eu. A vida
De duas vidas que uma só resuma.

Vida de dois, em cada um vivida.
Vida de um só vivida em dois. Em suma:
A essência unida à essência, sem que alguma
Perca o ser, – uma, sendo a outra unida.

Duplo egoísmo altruísta, a cujo enleio
No próprio coração cada qual se sente
A chama que em si nutre o incêndio alheio.

Ó mistério do amor onipotente!
Que eternamente eu viva no teu seio
E vivas no meu seio eternamente! 

É o lirismo português, no que tem de mais característico, tal qual o definiu recentemente João de Castro Osório: o culto da foram e a transposição do sentimento para o plano metafísico. Estará com a verdade Boccaccio, quando assegura que poesia é, em substância, teologia? Será o amor, como pretende Bernstein, forma particular de santidade?

O LUSITANISMO

Paralelamente com o curso de Humanidades, feito nos clássicos de hoje e de amanhã, que não concluirá senão com a vida, vai Silva Ramos seguindo também o de Direito. Esse, termina-o, quase sem dar por isso. Acabam por ultimá-lo os menos apressados, como o vate do Campo de flores, cuja formatura consumiu tantos anos quantos a guerra de Tróia.
Recebe o diploma; e, sem saber ao certo o que fazer dele, diz adeus ao eco do Jardim Botânico e às trouxas de ovos de Cebola, aos aventais rendados e às chinelinhas de biqueira envernizada das tricanas; abraça, longamente, com os olhos úmidos, o burgo doutoral, que, debruçado sobre as colinas macias, se namora no espelho embaçado e trêmulo do Mondego, e toma o rumo do Chiado.
Deixa-se ficar por Lisboa. “Poeta mais por aqui, mais por ali”, incorpora-se aos intelectuais, que fazem ponto na Livraria do Carmo e na Cervejaria Leão. Até que certo dia sente um apelo orgânico, a intimar-lhe o regresso. A observação é de Waldo Franck: depois de ter vivido verdadeiramente na Europa, compartilhando da existência de sua gente, o americano, para salvar a alma, tem de voltar à pátria.

Silva Ramos aproveita o ágape, que Fernandes Costa, Jaime de Séguier, Rafael Bordalo e outros lhe oferecem no restaurante da Mata, em Belém, para despedir-se, a um tempo, dos artistas, das letras e da culinária lusitanas. E parte para o Brasil.

Essa, e não outra, é a partida, que evocará mais tarde, comovidamente, em poema, que, pelo sentido dos valores e das proporções, riqueza discreta do colorido, elasticidade da perspectiva, e, sobretudo pela emoção que irradia, surda como o soluço abafado das dores condenadas ao silêncio, discreta como o sangue das feridas invisíveis rasgadas pela separação, ombreia com a “Mater Dolorosa” de Gonçalves Crespo:

Tenho-a presente, como agora, aquela
Dura noite da triste despedida.
A aragem levemente arrefecida
Da barca enfuna a desfraldada vela.

Distante, como em fundo de aquarela,
Some-se a mansa vila adormecida;
E a branda luz dos astros repetida
No rio as águas límpidas estrela.

Cena viva que a mente me descreve:
Dos amigos, em grupos pelo cais,
Vozes perpassam num sussurro leve.

Trocam-se as doces expressões finais;
E, enquanto os lábios dizem “até breve”,
Os corações murmuram “nunca mais”.
Nunca mais voltaria a Portugal. Para que voltar, se o trazia sempre no pensamento?

O espetáculo de outras paisagens, o atrito com homens estranhos, despertam às vezes, dentro em nós, apetites obscuros, que ignoramos, resíduos de fermentos ancestrais, que dormitam na modorra do subconsciente. Tal a virtude e tal o perigo das viagens. Quantos, em terra estrangeira, sentem de súbito a vontade absurda de gritar, como o poeta francês, ao defrontar-se com o desolado esplendor das solidões hiperbóreas: “Ô mon pays tout à fait natal!”

Silva Ramos explica pela preponderância da costela materna o entranhado lusitanismo, que nunca teve a fraqueza de desconfessar. Limitava-se, porém, a herança a desmoitar e adubar o chão para a semeadura, a carrear e amolecer o barro para o ceramista. Produto da multiplicação do fator hereditário pelas injunções do meio, cuja pressão robusta padeceu na quadra em que tem o espírito a plasticidade absoluta da argila, a paixão exorbitante de meu eminente antecessor pela grei e pelas coisas da banda de além justifica-se principalmente por motivos de ordem sentimental. Radiosa há de ser por força a visão que guarda de Portugal, no fundo da retina, porque é a imagem da própria mocidade; e as saudades que o alanceiam não são, afinal de contas, nem daquele pedaço amorável da península, nem daquela gente simpática, mas de si mesmo.

Tudo tem nele sotaque marcadamente lusitano: a prosódia, substância musical da língua, e a sintaxe, regimento interno do idioma; os hábitos e as inclinações; as tendências afetivas e intelectuais.
Daí, a ausência quase completa, em sua obra, da natureza e do homem brasileiros. A recordação da “alegre consoada das aldeias, ao pé do lume vivo a que se refogam os guisados”, obscurece-lhe a memória das festanças caipiras, em que ao calor das fogueiras estalam os pinhões e rebentam as pipocas, enquanto correm largamente no terreiro engalanado com bandeirolas de papel a gengibrada, a garapa, o quentão. Malgrado a distância, avista, do outro lado do oceano, alguém que “atravessa a levada, equilibrando-se a custo nas alpondras resvaladias para escutar a cantiga da moleirinha, que sobe de azenha próxima”; e não enxerga, ali pertinho, o caiçara que abandona o remo, o piraquara, que esquece a pescaria, o tropeiro, que sustém o matungo caducante, o colono e o caboclo, que descansam a foice, quando, na doçura morna da tarde tropical, ascende para o céu, como se fosse a própria voz da terra “desleixada e remissa e algo melancólica”, o gemido lascivo de um violão.

Cronista delicioso, conversador exímio (que é a conversa senão uma crônica improvisada?) as anedotas, que lhe acodem ao léu da palestra ou ao sabor da pena, são todas importadas. Em vindo à balha a susceptibilidade dos homens de letras, logo intervém: “sempre me há de lembrar o que me sucedeu com Fernandes Leal, numa quinta-feira santa, em que juntos andávamos percorrendo as igrejas de Lisboa”... Ou então: “certa vez, subíamos o Chiado, eu e o Cesário Verde...” Alguém alude à incompatibilidade formal da morte com o riso. Outro se recordaria da página perfeita, em que o autor de Quincas Borba descreve o trespasse de Rubião: “A cara ficou séria, porque a morte é séria.” Ele, não: “Júlio César Machado, por ocasião de um enterro, deu esta lição de seriedade...” Entra-se depois a discretear de matérias transcendentes, e ei-lo que atalha: “Conheci em Coimbra um filósofo, por nome Rosalino...”

A mesma inclinação transparece nos atos minúsculos e grandes da vida; na predileção pelas farsas temperadas à moda alfacinha e na escolha do patrono da cadeira acadêmica; no entusiasmo bem peninsular pelas touradas e na eleição da atividade social, a que se consagra durante meio século.

O PATRONO

Por que os povos que datam de ontem, os homens que conquistam de golpe a riqueza ou o poder, as instituições recém-nascidas, se não contentam com a posse do presente, e inventam, com maior ou menor felicidade, um passado?

Cerca-se o novo rico de telas, alfaias, mobílias de outras eras, pagando, sem regateio, a ilusão de ser contemporâneo das coisas antigas que lhe atravancam a casa. O filho do colono fabrica laboriosamente a prosápia que lhe falta, enxertando-se aqui nos “potentados em arcos” de Pedro Taques, ou nas “princesas” guaianases de João Mendes, e acolá nos “quatrocentos” do patriciado norte-americano. As novas Academias apressam-se em mascarar a geração espontânea, convocando e empossando sem consulta prévia mortos ilustres, e improvisando galerias de antepassados imaginários. Como explicar tudo isso? Um pouco, por vaidade. Muito, pela consciência lúcida ou obscura de que a falta de tradição acarreta, à maneira das moléstias de carência, inferioridade orgânica; e pela certeza experimental de quanto são instáveis as construções desservidas de alicerces profundos e vacilante se mostra a legitimidade de títulos que não trazem a chancela do tempo.

Será talvez por isso que os fundadores desta Casa entendem não bastar o prestígio de suas figuras insignes à robustez da criação, e porfiam em brasonar-lhe as cadeiras com os esmaltes, peles e metais da melhor nobreza. Escolhem os paraninfos entre os mais altos representantes da ficção, da crítica e da eloqüência nacionais. Nem se conceberia que fossem tomá-los de empréstimo a estranhos, quando a Academia se constitui precisamente para afirmar que somos um povo dotado de caráter e destino próprios, desejoso tão-somente da glória “que possa vir de seu gênio”.

Silva Ramos começa por eleger a Gonçalves Crespo. Lembram-lhe a abdicação feita por este da cidadania de origem, em troca de um mandado de deputado pela Índia às cortes de Lisboa. Decide-se então por Tomás Antônio Gonzaga, que nasceu e morreu português. Quem não percebe na substituição de um lusitano adotivo por outro de nascimento o imperativo das energias subterrâneas?

Sobejam, entre nós, bem o sei, historiadores e críticos apostados em abrasileirar compulsoriamente, contra a evidência resplandecente da verdade, o suavíssimo cantor de Marília. Esquecidos de que a probidade mais elementar nos intima a restituição do alheio, por muito empobrecidos que fiquemos, não se conformam com o empobrecimento que padeceríamos, perdidas as liras de Dirceu.

Para recusar ao poeta os foros do nosso compatriota, não seria eu tão leve, que me fundasse unicamente na circunstância de ter ele entrado o mundo às margens do Douro. Ninguém mais auriverde, sem embargo de bradarem o contrário os atestados de batismo, do que um José Clemente, um Vergueiro, um Barroso. Esses, todavia, fizeram ao Brasil o que Gonzaga sempre se absteve de fazer-lhe: a doação irretratável do coração inteiro.
Por mais que firme a vista, não descubro nenhures a prova de que se tenha desnaturalizado em nosso benefício.

Estará no fato de ser filha do país a sua inspiradora? Se valesse a consideração, ninguém saberia ao certo como classificar certos escritores, profissionais do amor, que, à maneira de Pierre Loti, andaram a espalhar campos de demonstração e experimentação de erotismo em todos os continentes.
Consistirá na influência do meio americano sobre a poesia de Dirceu?

Antes de apreciá-lo por menor, direi por maior que o argumento nos levaria a balburdiar toda a geografia literária. Poucos serão os artistas que, sem desfalque de um átomo das virtudes radicais, não tenham enriquecido a sensibilidade e a inteligência, pela anexação de impressões e idéias colhidas em ambientes forâneos. Quem há, por exemplo, que não perceba no estilo vistoso de Victor Hugo a marca da Espanha, cujos poetas, já nos tempos ciceronianos, eram averbados de “pingue sonantes?” Para ele, como para Musset, Merimée, e, entre os contemporâneos, Valéry Larbaud, o mundo castelhano representa, na confissão do último, a Terra Santa, a pátria de eleição. Nem por isso nos será lícito incorporá-los à literatura espanhola.

Mas o pior é que a premissa contravém à verdade.
Se remontarmos às fontes, em que não podemos incluir as Cartas Chilenas, uma vez que o enigma de sua autoria continua a desafiar a sagacidade e a paciência dos eruditos, e todos os indícios colhidos até hoje desautorizam a identificação de Critilo com o noivo de Marília, verificaremos com surpresa serem de tenuidade e pouquidade flagrantes os vestígios da presença do Brasil na obra de Gonzaga. Tão escassos e diminutos, que, em vez de sensibilidade permeável às energias ambientes, delatam resistência invencível à ação física e social da Colônia.

A conclusão está na lógica das coisas. O poeta não viveu entre nós senão quatro ou cinco anos da meninice na Bahia e cinco ou seis da madureza em Minas Gerais; de sorte que toda a sua formação espiritual se operou na metrópole.

Ainda sim, é de sobremaravilhar que nas Liras se não vislumbrem, nem a sensação, nem o sentimento da terra; nem a turbação dos sentidos educados em outros climas, quando agredidos pela aspereza das formas, pela crueza das cores, pelos perfumes violentos, pelo gosto incisivo, pela voz bravia do mundo tropical; nem a compreensão e a adesão, que vêm depois, com o conhecimento e a posse da natureza pelo homem.

Céus e águas, serras e descampados, fauna e flora não existem para ele nesta província do planeta. Só a um pedaço de nossa gleba alude com doçura, por ser o berço da desposada. Só uma onça aparece, ressabiada, a rosnar entre leões e tigres forasteiros. Só uma vez as palmeiras desfraldam, como bandeiras franjadas e esfarpadas na guerra contra os ventos, os ramos farfalhantes.

O ambiente bucólico dos árcades, falso e postiço, infunde-nos a nostalgia do que Marcial chamava o “rus verum barbarumque”. O cenário das “liras” é pintado em Portugal. Dá azeite e vinho o casal onde assiste Dirceu. Recolhem às herdades os pastores. Fulvas searas de trigo e de centeio, freixos copados, olaias frondosas e olmeiros povoam o horizonte. O que sonha o vate, carregado de grilhões, na escuridão da masmorra, é voltar, livre e feliz, não à “pátria aldeia” da namorada, mas aos “saudosos lares” lusitanos. A sua atitude em relação ao Brasil está cristalizada naquela antítese involuntária e por isso mesmo singularmente expressiva, que contrapõe o “claro Tejo” ao “turvo ribeirão” do Carmo.
Em abono da tese contrária, invoca Sílvio Romero as estâncias graciosas, em que o poeta anuncia:

Tu não verás, Marília, cem cativos
tirarem o cascalho e a rica terra,
ou dos cercos dos rios caudalosos,
  ou da minada serra.

Não verás separar ao hábil negro
do pesado esmeril a grossa areia,
e já brilharem os granetes de ouro
  no fundo da bateia.

Não verás derrubar as virgens matas,
queimar as capoeiras inda novas,
servir de adubo à terra a fértil cinza,
  lançar os grãos nas covas. 

Não verás enrolar negros pacotes
das secas folhas do cheiroso fumo,
nem espremer entre as dentadas rodas
  da doce cana o sumo.

Versos puramente brasileiros, comenta o sergipano egrégio. Não: página friamente descritiva; poesia de reinol displicente, sem nenhuma inflexão carinhosa, sem nenhum estremecimento humano.
Que diferença de vibração e de temperatura na linguagem de Alvarenga Peixoto, árcade também, mas brasileiro de lei, ao defrontar-se com o mesmo espetáculo! Ouçamo-lo celebrar na oitava rima camoniana o heroísmo inconsciente dos tapanhunos, galés da mineração, grilhetas da enxada:

Esses homens de vários acidentes,
pardos e pretos, tintos e tostados,
são os escravos duros e valentes,
aos penosos serviços costumados.

Eles mudam aos rios as correntes,
rasgam as serras, tendo sempre armados
da pesada alavanca e duro malho
os fortes braços feitos ao trabalho.

Sente-se aí o que falta a Dirceu: o timbre inconfundível da simpatia e da ternura. É bem o mazombo que fala, transportado de orgulho e de paixão por

isto a Europa barbaria chama
... bárbara terra, mas abençoada!  

GONZAGA E A INCONFIDÊNCIA

Adivinho a objeção que se arma no espírito de quantos me escutam: “e o papel de Gonzaga na inconfidência mineira?”
Revidar poderia que o fato não seria suficiente, só por só, para desnacionalizar o portuense ilustre. La Fayette, Byron, Garibaldi bateram-se pela independência de povos estranhos.
Prefiro, porém, seguir a tática de Regulus, causídico romano, de que fala Plínio o Moço, e desprezando os golpes preparatórios, saltar direito ao argumento e torcer-lhe o pescoço: “ego jugulum statim video, hunc premo”.

O conhecimento das devassas relativas à conspiração mais alarmante do que perigosa de 1789 leva-nos à certeza de que o poeta foi suspeitado e condenado injustamente.
Os autos aí estão. Da maioria das páginas, em que durante vinte e nove meses a alçada foi arquivando, com o vagar e a volúpia de um colecionador de misérias, as ignomínias dos delatores, as abjurações dos conjurados, as fraquezas dos juízes, saímos, não retransidos de horror, como o Florentino, ao despedir-se “della valle d’abisso doloroso”, mas com o coração a vomitar de nojo, talqualmente se houvéssemos atravessado o nauseabundo inferno de Swedenborg. Rasga-se felizmente, de onde em onde, uma clareira que descobre o céu. É que, laboratório estupendo de experiências “in anima nobile”, permite a justiça penal apurar com precisão a resistência dos materiais de que saio feitos magistrados e testemunhas, acusados e vítimas. Esfarelam-se ou derretem-se nesse poderoso cadinho as almas de fraco metal; enquanto que, libertas das escórias da fundição, ganham as outras a têmpera do aço ou a refulgência do ouro.

Quase todos os inconfidentes se desmoronam e sucumbem em apostasias e malsinações. Três homens, três apenas, guardam na provação a linha vertical, erguendo-se à maneira de píncaros solitários, sitiados por tremedais e precipícios: Tiradentes, o padre Carlos de Toledo, Tomás Antônio Gonzaga. Triturados no potro dos interrogatórios infindáveis, metidos no corpo-a-corpo dramático das confrontações, acusam-se os dois primeiros com intrepidez e defende-se o último sem baixeza.
O maior, não preciso nomeá-lo. A filosofia da hora atual parece conter-se no provérbio chinês, que manda apequenar o coração. Passaram de moda a indignação e o entusiasmo. Para servir-me da expressão de Paul Morand, detestamos o excepcional, temos o culto do não-herói. Não importa: confesso minha particular devoção por Tiradentes. A humildade de sua condição e a ingenuidade de seus recursos, a contrastarem com a magnitude da empresa; a paixão pela causa, que lhe comunicava a atividade explosiva dos apóstolos, tornando-o “tão inflamado na matéria que até chegava a chorar”; a magnanimidade em tomar sobre si toda a culpa do “horrorosíssimo e atrocíssimo atentado” e em atenuar a dos companheiros, sem embargo das recriminações e afrontas que estes lhe atiravam, como a “um pobre sem respeito e louco”; a serenidade e a simplicidade com que se houve no patíbulo fazem dele uma das figuras mais tocantes do nosso hagiológio. Não lhe faltam sequer a homenagem suprema, que é a injúria dos imbecis, e a amargura incomparável, que é a negação de um Capistrano. Porque existe ainda quem procure diminuí-lo, o que lhe confere a majestade melancólica de uma cruz apedrejada.
Gonzaga, no pretório, não parece aquele Dirceu que, sem pejo nem proveito, beija as plantas de quem desgraça:

Tu vences, Barbacena, aos mesmos Titos...
... honras a quem castigas.

Não parece. O seu procedimento perante a alçada é todo ele de uma bela nitidez retilínea. Nega, do primeiro instante ao último, com energia e coerência impressionantes, a responsabilidade que lhe imputa

a insolente calúnia depravada.

E tudo converge para dar-lhe razão. Declararam-no estranho ao conluio os principais autores do projeto. Os poucos que o acusam, postos em sua presença, ou titubeiam ou se desdizem. A própria sentença condenatória constitui a melhor prova da inocência do condenado, tamanhas são a fragilidade e a inconsistência dos indícios em que procura firmar-se.

O que dos autos se colige é o que Gonzaga reconhece lisamente desde o início. Mais de uma vez, diante dele, Cláudio, Alvarenga e outros balancearam os elementos de que dispunha a população da Colônia para organizar-se futuramente em povo, e discorreram sobre a ameaça impendente de vir a Capitania a rebelar-se, caso se efetuasse o lançamento da derrama. Para José Veríssimo, Dirceu teria sido ouvinte desinteressado dessas palestras, absorvido como andava nos aprestos do casamento e da viagem à Bahia. Há, entretanto, uma circunstância a denunciar que não se limitou a ser testemunha indiferente do que se passava: a decisiva atuação, que teve junto às autoridades no sentido de suspender-se a derrama projetada. A única explicação plausível de tal procedimento é que, ciente do que se tramava, pelas indiscrições ou confidências dos conjurados, o ouvidor se viu acuado por este dilema: ou denunciá-los, o que seria a maior das torpezas, ou calar-se, o que importaria em conivência.  Foi certamente para não trair, nem as leis da amizade, nem os deveres de súdito, que pleiteou e conseguiu o adiamento das medidas fiscais, removendo assim o perigo do levante, sem comprometer os amigos, nem se acumpliciar com eles.

Não temos o direito de pôr em dúvida a palavra de um homem, cuja integridade, certificada pelos contemporâneos, resiste a investidas e insídias de toda a casta no decurso do processo. Ora, entre os álibis morais que opõe à acusação, figura este: filho do reino, onde possui bens e está o desembargador seu pai, os da terra não o convidariam para a conspirata. Objeta-lhe o interrogante, na linguagem do lobo da fábula: “mas o desembargador é oriundo desta América...” Ao que o indiciado replica vitoriosamente: “Que importa, se casou na metrópole e nunca mais voltou à sua pátria... e lá teve ao respondente e aos outros irmãos... e esta razão de amor é mais forte que a do simples nascimento?”

Vítima de inimigos, que o levaram ao cárcere, Gonzaga continua a sê-lo de panegiristas que pensam glorificá-lo, desmoralizando-lhe as afirmações e as atitudes. Declara ter consumido “as cópias emendadas de quantos versos melhores” compôs durante a mocidade, transcorrida em Portugal. – “Estás muitíssimo enganado”, adverte-lhe um crítico, vindo cem anos depois: “foi no Brasil, muito mais tarde, que começaste a versejar...” Proclama-se lusitano castiço, vassalo fiel. – “Mentira”, bradam-lhe de toda a parte homens que não conhece: “rebelde a teu rei e à tua gente, és brasileiro, inconfidente, republicano...”
Que pensará de tudo isso o poeta, se lá no assento em que demora

memória desta vida se consente?

Talvez sorria, com aquele sorriso dos imortais, composto de mansuetude e malícia. Ou talvez se irrite contra aqueles que se atrevem, como eu, a demolir, em nome da verdade histórica, lenda tão amável e bonita, esquecidos de que a história não passa quase nunca de um tecido grosseiro de mentiras prosaicas.

O FILÓLOGO

Ao contrário do patrono, o fundador inesquecível desta Cadeira conheceu a tragédia íntima que é pertencer a duas pátrias, amando-as ambas com igual fervor.
O lusófilo impenitente estremecia sobremodo o pedaço do mundo que lhe foi berço e túmulo; o Pernambuco, de que sempre se ufanou; esta cidade mágica, onde passou boa parte da existência de labor, delicadeza e probidade; aquele bairro de Humaitá, que muito especialmente bem-queria.
Soube resolver, entretanto, com argúcia e donaire, o conflito sentimental em que tantos sucumbem. Como servir aos dois países sem atraiçoar a nenhum deles? Servindo-os na defensão do patrimônio que ainda conservam indiviso, na preservação e cultivo da língua comum.

Desgraça não há maior, assim para a coletividade como para o indivíduo, do que o desencontro da vocação com o emprego, brincadeira funesta em que amiúde se compraz a fortuna. Vem alguém à luz, fabricado, da cabeça aos pés, para obedecer, e dão-lhe as circunstâncias o comando e a onipotência. Outro, que é ator de nascença, atravessa a vida inteira como espectador. E assim por diante. Imagine-se o padecimento de um cérebro sentenciado a fornecer bile, ou de uma serpente condenada a elaborar, em vez de peçonha, favos de mel...

Por felicidade sua e nossa, lembra Silva Ramos um órgão fabricado acinte para a função que entre nós desempenha durante cinqüenta anos.
O comércio com os mestres contemporâneos da lingüística e a assídua freqüentação dos autores latinos e vernáculos fazem que poucos o igualem e ninguém o exceda no conhecimento do idioma.
Sabe-lhe as nascentes remotas, encontráveis naquele “sermo plebeius”, rude e sadio, que, trazido à Espanha pelos mercadores e legionários de Roma, não tarda a expulsar do tráfego diário os dialetos célticos, e sobrevive ao espostejamento do Império pelos bárbaros, terminando por submeter à sua lei os vencedores.

Acompanha-lhe a formação laboriosa, processada surdamente no seio do latim quotidiano, com a vitória progressiva do acento sobre a quantidade e a conseqüente deslocação para a sílaba tônica do centro da palavra; com a atrofia e queda das desinências casuais e as limitações que daí resultam à liberdade primitiva na construção da frase; com a morte, o nascimento, a migração de vocábulos; com um sem-número de modificações fonéticas, morfológicas, sintáticas.

Admira-lhe, transposto o período inicial de confusão criadora, o desenvolvimento harmonioso; o trabalho de fixação e polimento literários, por influência dos trovadores e letrados nos primeiros séculos da nacionalidade; a transmutação do português arcaico em o português moderno, levado a efeito pelos clássicos da idade áurea; o muito que, desde então, vem ele ganhando em plasticidade, precisão e riqueza, graças à contribuição de afluentes novos e generosos, ao subsídio dos eruditos e dos homens de letras, à colaboração caudalosa das forças anônimas.

Porque conhece tão bem o passado quanto o presente da língua materna, não incorre no desacerto comum de malfadá-la. A resistência que ela contrapõe no torrão nativo à infiltração do árabe e do espanhol e à deste e do holandês no continente colombiano constitui o mais seguro e expressivo dos índices vitais. Vemo-la manter, em toda a parte, as posições conquistadas ao tempo do poderio lusitano. Não se contenta em conservá-las: insinua-se nas espécies vizinhas, invadindo-lhes o vocabulário. O fenômeno verifica-se na Índia, em Ceilão, no Extremo Oriente, conforme a recente demonstração de Rodolfo Dalgado; e, ao que informa Salvador de Mendonça, reproduz-se na própria costa oriental da América do Norte, por influência de uma pequena colônia de pescadores açorianos.

O organismo é robusto. Ilimitadas são as possibilidades que lhe ensancham a América brasileira e a África lusitana. Os tempos se aproximam (afirma-o Charles Gide), em que a língua de Rui e de Camilo será falada por trezentos ou quatrocentos milhões de criaturas.
– Que importa, dizem os pessimistas, se vive e continuará provavelmente a viver desconhecida do resto do planeta, proibida de circular fora de suas fronteiras naturais, condenada a ocupar lugar secundário no concerto das vozes civilizadas?

Por brevidade abster-me-ei de discutir o ponto de vista desses que se doem de saborear sozinhos os frutos, o aroma, a sombra do horto, de que são colegatários, e reclamam a presença de gente vinda de toda a parte para admirar a excelência da terra e a perícia do hortelão. E, por lealdade, não formularei a hipótese de caber amanhã à língua portuguesa o primado, que a francesa arrebatou à latina, quando, na frase de Hipólito Taine, se tornou para os ocidentais “l’art vivant d’écrire et de penser”.

Direi simplesmente que contravém à justiça imputar-se ao vernáculo a culpa da displicência com que olha o resto do mundo para a nossa literatura. Se nos desconhecem é que não merecemos ser conhecidos. Só interessa ao universo o universal; e, em que pese à vaidade indígena, não tivemos ainda quem escarnasse um estado de consciência da humanidade, um momento do destino da terra. Túmulos tão profundos e cerrados como esse em que nos julgamos sepultos, são o russo, o bengali, o norueguês; o que não impediu a difusão do pensamento de um Dostoievski, de um Tagore, de um Ibsen.
Além de informada, a estima de Silva Ramos pelo idioma é judiciosa e inteligente.

Encarar os fenômenos da linguagem como fatos naturais, e não como criações arbitrárias, estudá-los com igual interesse nos textos dos grandes escritores e no linguajar do povo, pesquisar-lhes o sentido profundo e as leis que os governam, eis a atitude mental de que se não desvia.

Filólogo consciente de seus limites, não será ele que, tomando à letra as palavras de Santo Agostinho, acredite na “grammaticae pene divinam vim”. Nunca iremos surpreendê-lo ocupado em forjicar meia dúzia de regrinhas, pelo gosto de infirmá-las imediatamente com meia centena de exceções; ou entregue à tarefa subalterna de ciscar nos escritos alheios, à cata de cochilos e defeitos. Ninguém se parece menos com esses fiscais doentios da vernaculidade, vítimas desgraçadas e insuportáveis da fobia da impureza, que, desde o tempo de Horácio, vivem a atormentar o próximo e justificam até certo ponto o desabafo gaiato de Gomes Leal:

Quem é que manda no que é meu?
É a gramática ou sou eu? 

Todas as lições que nos deixa delatam largueza de espírito, lucidez e segurança de discernimento.
Vede como resolve o tormentoso problema da colocação dos pronomes oblíquos. “Não sou eu (esclarece o mestre) quem os coloca: são eles que se colocam por si mesmos, e onde caem, aí ficam.” Porque “a situação de tais elementos na estrutura da frase” não obedece a normas ditadas pela sintaxe ou pela morfologia, e sim “ao ritmo, ao número, à cadência” do discurso, “a princípios do domínio da fonética”. Na pronúncia lusitana são átonas aquelas formas pronominais. Sucede o contrário na fala brasileira. Daí o fato de serem enclíticas em Portugal e tenderem para a próclise no Brasil.

Admirai a superioridade com que ele, tão amoroso das coisas portuguesas, considera a hipótese da quebra da unidade lingüística. A dialetação é fenômeno, que se processa em plano superior ao da vontade humana. “Ao tempo, e só ao tempo, compete produzi-lo.” Dúvida, assim, não pode haver de que, em dia remoto, o nosso co-dialeto venha a tornar-se autônomo. A emancipação idiomática do povo brasileiro, já adiantada na prosódia, invadirá então a sintaxe e o vocabulário, em que principia a esboçar-se. Teremos aqui a mesma revolução, que, segundo o testemunho de Mencken, Lewinson, e tantos outros, se vai operando rapidamente nos Estados Unidos: não, deformações limitadas e esporádicas, mas o advento de uma nova expressão verbal, exigido pelo surto de um novo tipo étnico. Tanto assim que as edições inglesas de Babbit já se acompanham de glossários, para que se torne accessível aos insulares o norte-americano de Sinclair Lewis. Tempo virá, em que serão traduzidas para o português transatlântico as páginas dos sucessores de Valdomiro Silveira e Mário de Andrade.
Outro ensinamento salutar de Silva Ramos é o da temperança no apreço devido aos clássicos.

Versemo-los com o respeito de fiéis, sem o fanatismo de beatos. Não há reputá-los depositários das verdades eternas em matéria de linguagem: na igrejinha dos quinhentistas, “como na igreja de Deus, há perdão para todo gênero de pecados”; e quem se disponha a reunir e consultar os evangelistas do idioma tem de ficar indefinidamente “à espera de que eles concordem”. Não há imitar-lhes as galas e até os cacoetes de estilo: o ritmo vertiginoso da vida contemporânea não consente que adotemos como veículos das nossas idéias os coches suntuosos e pesados ou as liteiras tardonhas de outrora.

É exortando os alunos “a que leiam muito os que bem escreveram” antigamente e muitíssimo “os que bem escrevem” na atualidade, que Silva Ramos pratica o magistério. Um de seus discípulos, o grande poeta de Libertinagem, mostra-o sempre disposto a evadir-se do compêndio e a abrir as páginas de antologia, para dizer, com a fisionomia “subitamente remoçada” pelo entusiasmo, à classe maravilhada, estâncias de Camões e períodos de Vieira, Herculano, Machado de Assis. Aprende-se com ele a procurar nos novos e velhos padrões do vernáculo, não a “personalidade irregular de um infinito” ou “o atestado de bom comportamento de um pronome”, e sim as formas superiores de tradução das idéias, a flexibilidade e a força, a claridade e a graça, a naturalidade e a limpeza.

A limpeza e a naturalidade, especialmente. O pensamento de Silva Ramos, temo-lo bem transparente nesta imagem: “Eu me envergonharia de falar mal, como me ocorreria de trajar com desleixo.” Com desleixo ou com extravagância, poderia acrescentar. De algodãozinho ou de seda, conforme as posses de cada um, seja o fato que veste as idéias. Fiquem dependentes do gosto individual o corte e o colorido. Imperdoável é que em público se mostre alguém com a linguagem enodoada de solecismos e cacologias, ataviada ridiculamente de preciosismos, ou remendada com locuções peregrinas para disfarçar a indigência do vocabulário. Pode ser pobre o estilo. Nunca desmazelado ou menos decente.
Grandes, li não sei onde, grandes são os mestres que transmitem mais sentimentos do que conhecimentos. Silva Ramos ensina como poucos aquilo que se sente como ninguém: o amor da língua materna. Tem por ela atenções de filho e extremos de namorado.

Foi a primeira que ouviu no berço. Implora e obtém de Deus o favor de escutá-la no momento do trânsito supremo. Para louvá-la, quebranta a sobriedade habitual e esbanja desbragadamente adjetivos: “nobre, opulenta, vibrante, sonora, formosíssima...” Para defendê-la, torna-se combativo e intransigente, ele, o mais pacífico e tolerante dos homens; e perde o senhorio dos nervos, ele, tão moderado e calmo, se porventura não consegue evitar a consumação do atentado. Platão afirma que a infração das regras da música, isto é, da poesia e do gosto, alui os fundamentos da república. Silva Ramos parece pensar da mesma forma, quando estão em jogo o pundonor e o gênio da língua.

Quer-lhe tanto bem que confessa ter sacrificado “à pesquisa insensata do fenômeno glotológico” o melhor do seu tempo, imolando ao filólogo o poeta impecável de “Nós” e de “A Partida”, o cronista gracioso de “A Semana”, o evocador de João de Deus, o crítico avisado de Bourget e de Veríssimo.
Seria o caso de maldizermos a filologia, se lhe coubesse de fato a responsabilidade exclusiva de ser diminuta e fragmentária a obra deixada por Silva Ramos no domínio das letras floridas.

As fadas presentes ao nascimento de meu antecessor esqueceram-se de conferir-lhe o dom magnífico da confiança em si mesmo. É porque não confia nas próprias forças, que adota “a cauta filosofia do silêncio”, de que se não aparta, senão arrebatado no redemoinho da paixão. É a dúvida de quanto vale que lhe impõe abstenções imperdoáveis, até nos assuntos de sua predileção e especialidade. Recusa-se, por exemplo, a colaborar no dicionário de Santos Valente, sob o fundamento incrível de serem poucos os conhecimentos, que tem, do léxico português. É ainda e sempre o medo de afrontar a publicidade que o inibe de dar-nos produção correspondente às profusões de engenho e cultura tamanhas. A timidez, e, por influência do parnasianismo reinante ao tempo de sua formação estética, o desejo insaciável de corrigir-se, o requinte na lapidação da forma literária, com sacrifício da frescura, da abundância, da espontaneidade. A timidez a ânsia da perfeição e, também, a deficiência da vontade, que tem fôlego curto, e abdica diante do obstáculo.

Que a inspiração não lhe escasseia nem a facilidade, provam-no as admiráveis cartas íntimas, em que, liberto da ação paralisante daqueles fatores, dá largas ao pensamento e deixa correr a flux o que elas o obrigam a represar dentro da alma.
Dentro da alma, que lindas coisas tem ele! Se desenhar é suprimir, como pretende Max Liebermann, o retrato moral de Silva Ramos pode conter-se nestas poucas palavras: uma probidade inconsútil, uma bondade invencível.

De sua honestidade intelectual o melhor depoimento é este episódio. O governo de Floriano demitira-o do cargo de inspetor escolar por motivo de alguns comentários inocentes, que se permitira tecer, no semanário de Valentim Magalhães, em torno da situação política do país. Nesse momento de aperturas é convidado por Fernando Mendes a encarregar-se da seção bibliográfica do Jornal do Brasil. Aceita o convite de braços abertos. O primeiro livro que lhe cabe apreciar são os Estudos Brasileiros, de José Veríssimo. Ainda bem! Mandam-lhe, porém, a seguir, publicações estranhas às suas preocupações habituais. Renuncia o lugar. E não há demovê-lo “por mais que pessoas experimentadas lhe assegurem não ser condição essencial para ajuizar do mérito de uma obra entender do assunto que ela versa”. O aumento crescente do número de críticos demonstra, senão o acerto, a popularidade extraordinária da opinião dos homens ensinados pela experiência.

A magnanimidade de Silva Ramos é atestada, não por este ou aquele capítulo, mas por todas as páginas da existência. Teve a felicidade imensa de ser bom; de não conhecer a perfídia, o rancor, a inveja, a beleza equívoca dos amores inconfessos e as misérias em que se afundam e suicidam.
A sua indulgência não é apenas, como tantas vezes acontece, o desdém ou a preguiça de retribuir o mal. É a compreensão que absolve, a piedade que anistia. Bem-aventurado quem como ele não sabe a tristeza de ser amargo! Feliz quem tem o direito de dizer como ele que traz em sua prisão carnal a própria divindade!

“TODOS CANTAM SUA TERRA...”

Foi a esse espírito gentil, compêndio amável de elegância morais, que me chamastes a suceder, Srs. Acadêmicos.
Nas Academias, como no céu (houve quem o dissesse antes de mim), aparecem de quando em quando eleitos inexplicáveis. Designou-me a sorte para encabeçar a lista deles em o vosso grêmio.
Mas até nas maiores extravagâncias obedece o acaso a um determinismo secreto; e pode repetir a quem se mostra indignado ou aturdido com os seus decretos sem considerandos, a observação do demônio dantesco, ervada de malícia:

“Tu non sapevi ch’io logico fosse”...

Que motivo teria movido a Academia ao desacerto de escolher-me? Penso que o gosto bem feminino de variar. A paixão do contraste levou-a a preterir os postulantes mais dignos em proveito do candidato menos parecido com o fundador e com o patrono da sede vacante.

Assim, nem por gracejo se lembraria alguém de pôr em dúvida o meu brasileirismo. Paulista sou, há quatrocentos anos. Prendem-me no chão de Piratininga todas as fibras do coração, todos os imperativos raciais. A mesa em que trabalho, a tribuna que ocupo nas escolas, nos tribunais, nas assembléias políticas deitam raízes, como o leito de Ulisses, nas camadas mais profundas do solo, em que dormem para sempre os mortos de que venho. A fala provinciana, que me embalou no berço, descansada e cantada, espero ouvi-la ao despedir-me do mundo, nas orações da agonia. Só em minha terra, de minha terra, para minha terra, tenho vivido; e, incapaz de servi-la quanto devo, prezo-me de amá-la quanto posso.

Amo-a com a ingenuidade e a cegueira inseparáveis do verdadeiro amor. Em sua paisagem tranqüila. Em sua gente menos sobranceira do que retraída. Pelas qualidades que lhe constroem a grandeza. Pela dignidade com que suporta a desgraça. Preocupada com as coisas essenciais. Idealista e prática, mercê da fusão harmoniosa das almas de Marta e de Maria. Ávida dos bens materiais, porque tem horror à dependência; mas igualmente ambiciosa das riquezas imperecíveis; e por isso mesmo tão ufana de suas fábricas e lavouras, como de suas escolas e de seus poetas. Faminta de progresso e respeitosa da tradição; a algumas braças dos cafezais de São José do Rio Pardo, o rancho de Euclides; junto às chaminés de Campinas, a mansão das andorinhas; ao pé dos arranha-céus de São Paulo, a árvore das lágrimas. A tal ponto generosa e “benéfica aos forasteiros”, que se um deles chega, cheio de sanhas e de prevenções, logo se esquece de combatê-la e se põe a cortejá-la escandalosamente. Tenaz como a verdade. Paciente como a justiça. E, como a claridade, leal.

O nome varonil que no batismo recebeu dos jesuítas anuncia-lhe a predestinação radiosa. Nas primeiras palavras de Saulo, depois de siderado pela graça, preluz o temperamento dinâmico daquele que, sem perda de um minuto, vai conquistar o mundo para o cristianismo: “Senhor, que devo fazer?” A vocação histórica do paulista é, como a de seu patrônimo, a ação. Talvez se envaideça demais do que tem feito. Mas a modéstia é virtude eminentemente individual e quase privativa dos oradores...

O apóstolo das gentes não renuncia jamais as prerrogativas de cidadão romano. Ainda neste particular se lhe assemelha o povo que, sob a sua invocação, nasceu e cresceu no altiplano, à beira do Anhembi. Colonos e mamelucos afirmam-se desde logo “adversíssimos a todo ato servil”, no conceito expressivo de Antônio de Sande. Ciosos dos foros de homens livres, não sabem viver senão dentro da ordem jurídica; e de quanto querem à liberdade estão sempre dispostos a dar o que Demóstenes chamava o testemunho da carne. Ao donatário da Capitania fala de cabeça erguida, nesta linguagem cheia de altivez e de franqueza, o senado da câmara paulistana: “Os capitães e ouvidores que Vossa Mercê manda, como os que cada quinze dias nos metem os governadores gerais, em outra coisa não entendem, nem estudam, senão como nos hão de esfolar, destruir e afrontar... e não há quem sofra tamanhos desaforos”. Isso, em 1613... E, por sabê-la indômita e ingovernável senão por si mesma, alguém sugere (no século XVIII, bem se vê) a conveniência de ser comprada e arrasada a povoação “de San Pablo”.

Cada um de vós poderá sem esforço reconhecer a própria gente no retrato, enfeitado certamente pela piedade filial, que da minha acabo de esboçar. Plasmadas com diferenças mais ou menos sensíveis de dosagem nas mesmas substâncias étnicas, vinculadas pela comunhão das aspirações e dos sofrimentos, as nossas populações têm aquela parecença íntima na diversidade aparente, que é o cimento melhor da unidade política.

Para manter-lhes a coesão, basta um pouco de cordialidade e inteligência. Cabe à Academia, que é a expressão luminosa do pensamento e da sensibilidade nacionais, o dever, de que jamais desertou, de apertar os elos de solidariedade, por uma compreensão e um conhecimento mais perfeitos, entre os brasileiros de todos os Estados.

Tal o ensinamento oportuno da solenidade, em que recebeis, pela voz amiga de um baiano de Lençóis, para ocupar a Cadeira dignificada por um pernambuco de Recife, um paulista de Piracicaba, cidade que tinha ao tempo de meu nascimento o augusto nome de Constituição.

Assim entendido, o vosso gesto é daqueles que, na hora atual, sobressaltada pela conjuração de apetites impuros, ódios absurdos e ideologias dementes, nos impõem a coragem de não descrer e nos dão o direito de não desesperar.