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Discurso de posse

Senhores Acadêmicos,

Minha primeira ambição consciente foi esta: ser acadêmico... e a vossa indulgência consagra hoje minha ambição de criança.

Assim falou Afrânio, no dia da sua posse, aos 14 de agosto de 1911, há, precisamente, 37 anos. E assim podia falar um homem de destino, pressentindo o mundo por nascer que trazia no espírito. Mas assim, em verdade não vos posso eu falar.

A Academia foi sempre, para mim, um alto céu resplandecente, para o qual não ousava erguer sequer os olhos. A este céu não me sentia chamado, nem eleito. Nascido tão longe da era e lugar das filas, fui sempre, entretanto, um adepto e respeitador da fila. Mas as filas muito longas me descoroçoam. E a que a minha imaginação, iluminada pelo espírito de justiça, enxergava às portas da Academia, era de tanta e nobre gente, que nem me passava pela cabeça incorporar-me a ela.

Conhecia-me o bastante, para saber que não havia em mim a pertinácia e constância no requestar que imortalizou a nosso pai Jacó.

Por isto, quando João Neves e Rodrigo Octavio, cuidando servir à Academia, mas entregues, de fato, à cegueira de uma afeição, que muito me honra e cativa, apareceram em nossa casa, e me intimaram a candidatar-me a esta vaga, que, em verdade, ninguém preencheria bem, senti um susto enorme. Apontei-lhes, de pronto, uma meia dúzia de grandes escritores, cuja falta na Academia era, realmente, uma falta; aleguei a altura da vida em que me achava, e o nada que se podia esperar, dali em diante, de quem tão pouco, até então, tinha dado a esperar. Disse-lhes a importância e grandeza especial da Cadeira, na qual um dos gigantes da nossa inteligência, Afrânio Peixoto, sucedeu a Euclides da Cunha, outro gigante: Cadeira a que o patrono, Castro Alves, emprestava singular majestade, pois foi o poeta por excelência, que ressuscitara, em nossos dias, os poderes órficos da Poesia, capaz de destruir e construir, e restabelecera a dignidade e o influxo social dos antigos vates e aedos que, imantando as almas, moviam e arrastavam os povos; Cadeira, enfim – já que estávamos entre brasileiros pitagóricos, que os números fascinam – em que até o número tinha o privilégio da atração, pois tem o número sete, que as religiões encheram de mistérios, excelências e virtudes. A tudo achavam resposta aqueles corações amigos, que a nada se renderam. E quando a eles se juntou o imenso coração de Olegário Mariano – menino de Casa Grande, que manda e não pede – minha vaidade não pôde mais resistir a tantas cócegas e amavios, e apelei para a vossa generosidade. Acolhido com uma benevolência sem precedente, aqui estou para fingirmos uma substituição impossível, acrescentando quem sabe – assim o disse, antes que o dissessem – mais uma página àquela Arte de Furtar que tanto e tanto estudei, e que parecia ter esgotado os ardilosos processos de agadanhar o alheio.

Quanto à Academia, já que os dignos de entrar não se apresentaram – nada mais fez, admitindo o menos digno, do que pautar-se pela sabedoria da natureza, que vive acertando as medidas e compondo médias. Nunca se viu estirpe ininterrupta de gênios, ou de heróis, ou de santos, ou de criminosos, parecendo haver nisto um processo indispensável à conservação da vida e de tudo.

E imitando a natureza, a Academia, que é versada em todas as letras sagradas e profanas, mostrou, ainda, conhecer o texto bíblico em que a divina sabedoria e piedade ordena que cada sete anos descanse a terra de ser cultivada para frutificar melhor: “Seis anos semearás o teu campo”, assim prescreve o Levítico, “e seis anos podarás a tua vinha, e recolherás os seus frutos. O ano sétimo, porém, será o sábado da terra, do descanso do Senhor. Não semearás o campo, nem podarás a vinha.” Lembrou-se, por certo, a Academia de que este é um dos textos sagrados que a presunçosa ciência dos homens ainda não ousou contraditar. E vendo que nenhum dos recantos dos jardins de Academo esteve cultivado por mais tempo e com mais intensidade do que este, que Afrânio submeteu, não seis anos, mas seis vezes seis anos, ao duro regime de cultura forçada, resolveu entregar esta Cadeira, cujo número sete estava a lembrar o preceito salutar, a quem a pusesse em alqueive. Escolheu, para isto, ao escritor bissexto de uma só obra, suada e tressuada no curso de dois decênios; e ordenou-lhe que substituísse, em gloriosa humilhação, ao mestre insigne que ilustrou, in eternum, este posto, com a produção de cem volumes, qual mais belo, interessante e valioso.

Assim o quisestes, senhores acadêmicos. E assim será feito. A Cadeira 7 vai entrar em pousio. Reinará silêncio na forja em que ecoaram, sem cessar, durante mais de um terço de século, os ecos de um labor ciclópico.

Por mais que reduzamos a influência do ambiente sobre o homem, que tanto se exagerou algum dia, temos de reconhecer que o ambiente fortemente diferenciado, em que o homem passa a infância, exerce poder indiscutível na sua formação intelectual e moral, na formação, particularmente, daqueles indivíduos em que preponderem a sensibilidade e a imaginação.

Lençóis, o berço do sensível e imaginoso Júlio Afrânio Peixoto (com que alegria de criança verifiquei que as duas primeiras letras dos seus três nomes coincidem com as dos meus...) o seu ninho do sertão, na Chapada Diamantina, coração diamantino da Bahia, era e, talvez, ainda seja uma dessas terras fortemente diferenciadas, que nos plasmam e vinculam, terras que têm visgo, para empregarmos a expressão cinegética do nosso grande mestre, o povo. Basta dizer que é terra de mineração, um daqueles fanais de esperança, que a Providência acendeu no interior da nossa Pátria, para que as mariposas da ambição e da cobiça arrostassem todos os obstáculos, vencessem todas as distâncias, e povoassem nosso imenso território. “Sem o engano das minas, a cobiça e a esperança de as lograr”, argumenta, como livro aberto, um dos personagens, tão vivos e reais, de Afrânio”, “quem, lá das costas do mar, teria chegado até aqui, além daqui, neste fundão de terras sem fim? Quem havia de tomar conta disto, que é hoje nosso, e foi conquistado e empossado por eles, os mineiros, caçadores de ouro e diamantes?” Palavras a que acode uma sertaneja “cujo espírito era aberto aos bons juízos”... “Também este tem razão. Botem uma esperança lá no meio do mato ou do deserto, e não haverá, com poucas, nem mato nem deserto”.

Estas terras de mineração, eu as vejo como um fundo de bateia ou carumbé, em que se apura o ouro ou o diamante da brasilidade. Gente de todos os quadrantes aí acorre, movida da auri sacra fames, e, à medida que se cruza e sedimenta, vai pintando no fundo da bateia a mais pura, a mais genuína raça brasileira, quinta-essência de brasilidade. Por isto, toda a vez que vi posto em dúvida o patriotismo de Afrânio, o seu amor ao Brasil, a quem tanto ilustrou e serviu, não pude deixar de sorrir desse mal-entendido de beira-mar, em que mora a gente do amor civilizado, incapaz de compreender e perdoar o amor selvagem do sertão, relicário em que se enquistou e se preserva aquele amor português da era do descobrimento, que a grande Carolina Michaëlis tão bem descreve como um “misto singular de ternura e de rudeza, ou mesmo de ferocidade”. Quando Afrânio dizia e repetia que era “sertanejo exilado no litoral”, quem sabe se não estaria dando a única resposta, que lhe consentia o orgulho de sertanejo, à afrontosa acusação? Quem sabe se não estaria a dizer aos injustos acusadores que o seu amor era como o amor enraivecido e fustigante das favelas, estes sertões no coração da cidade?

O mundo é, por certo, uma gangorra, une branloire, como dizia Montaigne. Em nenhuma parte, contudo, tem a gangorra do mundo mais oscilações e balanços do que em terra de minas. Chega gente fascinada pelo eldorado, e sai gente que se desencantou dele. As pepitas de quilo se alternam com as bateadas inúteis. Os diamantes de exceção, feitos para as coroas reais, com os olhos de mosquito, ou mesmo com os simples satélites de diamantes, que apenas o anunciam, para que a esperança não acabe. Mas a gente que cerra os dentes e fica, a gente que resiste e persiste, a gente sebastianista, que vive no mundo da lua, sonhando riquezas, minas que há de descobrir – ó se há de! – esta é a gente que poderá não descobrir grande coisa, mas cujo exemplo de energia e virtude vai formar um diamante da primeira água e grandeza: Júlio Afrânio Peixoto.

Muito desejei, senhores acadêmicos, e cheguei mesmo a planear conhecer de perto a terra e as gentes que Hércules infante contemplou. Mas vi, depois, que, aos 68 anos, o espírito é forte, e a carne, fraca. Vi, também, que, nos livros de Afrânio, encontraria, sempre presentes, os cenários e figuras de sua infância, o molde em que se formou. E vi, ao demais, que, para avaliar-lhes as formas e as forças, bastar-me-ia evocar a minha Santa Bárbara, que foi também, para seu mal e para bem da Pátria, um dos chamarizes e cartazes do Brasil. Bem sei, senhores acadêmicos, que são diferentes os reflexos da mesma luz na pedra preciosa e no seixo rolado dos rios, e não estou pensando em ridículo confronto. Mas a minha Santa Bárbara (o coração me impele a contemplá-la destes cimos, a que me alçou a vossa bondade) a minha Santa Bárbara foi, também, em dias que já vão longe, uma bateia de brasilidade, e caldeou, nos vaivéns da mineração, uma raça de homens resistentes ao esforço e à dor, dos quais me recordo com enternecida veneração e saudade.

Ê certo que, enquanto Lençóis, na meninice de Afrânio, ainda era, integralmente, terra de mineração, com suas marés enchentes e vazantes, sua contínua preocupação de diamantes e carbonados, lavras e cascalhos, informações e esperanças, sua chusma de capangueiros, faiscadores e pedristas, com fumaças de corte do sertão, de rainha do sertão, a Santa Bárbara de meu tempo de menino já não era a dos dias gloriosos, que só viviam em memórias adoráveis de velhos, dias em que “ouro era cisco, dinheiro corria que nem água, charuto se acendia em nota graúda, lavava-se cavalo com sabonete, e só se viam arreios de prata e vestidos de seda”, como aqui, pelo encilhamento, a mineração da Bolsa. Mas havia, no terreno material, o casario fidalgo e o mobiliário de luxo – alfaias, jacarandás, pratarias, porcelanas – que os compradores ambulantes, vindos da corte (todos -judeus, para a ira dos espoliados) foram ciganeando e carreando, por dez réis de mel coado; havia, ainda, no terreno moral, a mentalidade sebastianista, sempre à espera de novos dias “de se amarrar cachorro com lingüiça”, e havia, sobretudo, a fortaleza estóica, a blindagem moral, que a faina de minerar sempre forja, e que perdura por gerações.

Não hei de esquecer, jamais, a lição espartana, que ouvi, na minha infância, a um desses caboclos, bons como ouro, leais como tudo, empedernidos no sofrimento pelos azares da mineração. Era um faiscador, filho e neto de faiscadores, obrigado ao mister de carreira, porque o rio – é deles mesmo a saborosa expressão – já não estava pagando o mesmo jornal; mas que tomava férias de carreiro e voltava a batear, toda a vez que chuvas fortes e demoradas, provocando desmontes, enriqueciam as areias do rio.

Entrei-lhe no casebre, à hora em que a sua vasta tribo, raspando os pratos de ferro estanhado, terminava o frugalíssimo almoço. E ouvi que um dos meninos, meus companheiros e professores de estripulias, estava a se queixar, não sei de quê, com voz de choro.

“Não queixa não, menino” – atalhou o pai, entre rude e brincalhão. “Agüenta calado. Coma quiabo, e arrote melancia.”

Foi esta a escola espartana, senhores acadêmicos, que Afrânio cursou, nos seus primeiros nove anos, aqueles cuja estampa indelével nos afeiçoa, quase sempre, o restante da vida. E daí lhe veio a sua inexcedível capacidade de agüentar calado.

Todos nós sabemos a dor cruciante que, no fim da vida, lhe alanceou o coração de pai.

Todos nós sabemos o torturante declínio dos seus últimos dias.

Mas, não por ele, que trouxe os lábios selados, quando a Morte lhe arrebatou as esperanças de sobreviver na pessoa do filho; não por ele, que ao pressentir que Ela se aproximava de novo, já agora à sua procura, para o levar também, “fez de seu quarto uma cela” – estou repetindo o grande e generoso artista, que hoje me apadrinha a entrada: “Fez, de seu quarto uma cela, e defendia a sua porta como a última fortaleza dos que têm pudor de sofrer ou desfigurar-se em público, e se escondem, como os drusos, para morrer.” Quem o visse abaixo e acima, na infatigável labuta diária, depois de perdido o filho único, poderia, quando muito, surpreender o perpassar de alguma nuvem na limpidez de seus olhos mouriscos, quando a verdade é que a dor, no seu pobre coração, era como o cachoeirar das enxurradas nos socavões da sua Chapada Diamantina.

Só quem – deixai que a Poesia, que tudo compreende e sabe explicar, tome, aqui, a palavra:

Só quem no peito seu pusesse o ouvido,
ouviria o marulho endolorido
das lágrimas que caem para dentro.

Esta filosofia, esta atitude, inspiradas na ambiência inicial da vida, se encontram, como era de esperar, na obra de Afrânio. E sempre atribuídas às figuras mais chegadas ao coração do autor, como, também, de esperar. Quando, por exemplo, a mãe de Bugrinha, procurou consolá-la, por ver, no rosto da filha, subir e adensar-se uma sombra, como subia e se adensava a da tarde morena e tépida da Chapada pelos serros das cercanias, “Bugrinha”, escreve Afrânio, “não disse nada. Tomou o pote e seguiu em direção ao rio. Todas as tardes era a sua faina; não a esqueceria nem com uma expectativa alegre, nem com uma decepção sofrida: o dever é o recurso dos dignos, que se não curvam à dor, nem se expõem à comiseração”.

Leio isso, levanto os olhos do livro, e, de repente, não vejo mais Bugrinha, carregando o pote, em direção ao rio, para a faina de todas as tardes. E quem eu vejo é Afrânio, depois do grande luto, na Biblioteca Nacional, nas cátedras, nas conferências, nos inúmeros lugares a que o dever, a mola mestra da sua vida, o obrigava. E é, ainda, o seu retrato, com o seu lema espartano da vida, o que Afrânio nos dá, em Esfinge, quando Paulo de Andrade, retomando ao seu velho lar amigo, então deserto, do Barro Branco, põe-se a relembrar “a meiga e doce criatura, que fora sua mãe, frágil pela ternura e pelo sofrimento, branda e amável até no castigo”:

Tinha para ela carinhos sutis e de uma delicadeza infinita. Como era tímido e sincero, nunca ousou fazê-los claramente, ou confessar o bem que lhe queria, pela palavraSabia falar – prestai, senhores, atenção – falava até muito, mais não para dizer as coisas íntimas que sentia. Tem o coração às vezes pudor de falar: sente, faz-se adivinhar.

Quando sair publicada esta oração, vereis, senhores acadêmicos, que tive, aqui, a audácia de grifar algumas palavras, coisa que Afrânio em caso algum faria.

É que me lembrei daquela poesia “Como um presente”, com que Carlos Drumond de Andrade celebra o aniversário do Pai já morto, verdadeira prensa de esmagar corações, que assim começa:

Teu aniversário, no escuro,
não se comemora.

E assim termina:

Perdoa a longa conversa.
Palavras tão poucas antes!
É certo que intimidavas.

Guardavas talvez, o amor
em tripla cerca de espinhos.

Já não precisas guardá-lo.
No escuro em que fazes anos,
no escuro,
é permitido sorrir.

O espetáculo do faiscador solitário, do meia-praça, que recebe apetrechos e mantimentos, trabalhando para si e para seu fornecedor, o de tanta gente boa e rude “a viver na sóbria perseverança, que não poupa trabalho nem pena”; a epopéia sobre-humana do rompedor das grunas, entre miséria e esplendor; toda esta visão e experiência dos dias da infância terá depositado na alma de Afrânio os germes da constância no esforço e da bravura moral, que são os alicerces, o subsolo da sua vida esforçada e generosa. Assim, também, a honestidade exemplar, inseparável, nesses dias, de toda a atividade joalheira, ponto de honra dos ourives e do mundo a eles ligado, honestidade com que toda esta gente, sobretudo a miúda, fazia questão de trazer mãos limpas em meio de tanta riqueza minerada.

“Meia-praça nenhum”, relembra Afrânio em página de saudade e justiça, nunca achou diamante ou carbonado, que o sonegasse ao sócio... Positivos (trata-se do mensageiro, ou portador, que conheci na minha Santa Bárbara, onde também se chamava próprio, subentendida a palavra correio) positivos, desde sempre, carregam contos e contos de réis, partidas e dinheiro, e jamais houve um desvio... “Leais e íntegros como gemas da terra”, estes mineiros de Lençóis, os mais destemidos sertanejos da Bahia e de Minas, ao se esforçarem, heróica, insubmissamente, contra a terra, para lhe arrancar os tesouros, nos areões, nas grotas, nos barrancos, nos emburrados, estavam, sem o saber, a inspirar a vida reta, limpa, e cheia de Afrânio Peixoto.

Se a sua alma não foi jamais corroída pela acidez da inveja, se sempre se alegrou com os triunfos alheios, ajudando quanto podia a ascensão dos outros, é porque trouxe de sua terra essa nobre disposição. Quando, nos salões de Lençóis, corre a noticia de ter um garimpeiro apanhado uma grande pedra, o pesado diamante preto de Toca-dos-Noivos, todos festejam o achado, sinceramente contentes com a tacada do felizardo. E um dos circunstantes, observando essa rara e salutar alegria, comenta, numa síntese feliz da gente de terras diamantinas: “É talvez a gente única no mundo que se não entristece com a fortuna alheia...”

Quem é o Afrânio Peixoto dos incontáveis prefácios, quem é aquele prefaciador indulgentíssimo e habilíssimo, do qual nos falou aqui João Luso com tão delicada e penetrante afeição, quem é esse Afrânio, senão aquele Manuel Alves, pai de Bugrinha, que vivia a esburacar aqui e acolá, faiscando, experimentando, provando, na esperança de achar a mina da sua esperança, um cascalho virgem e engomado, que não deve faltar, pedras de diamantes tão grandes “como as de matar passarinho a bodoque”; mas, ao cabo de tanta labuta, trazia um punhado de pedras à toa, que exibia contente e orgulhoso, porque eram cativos do diamante, que “andam atrás dele como escravos”, e haviam, por força, de trazer diamante? Em quantos e quantos prefácios o nosso boníssimo e generoso Afrânio escavava na mediocridade e na sensaboria uma coleção de cericórias, pingos-d’água, caboclos lustrosos, pedras de anil, tanás de sangue, e procurava nos convencer que el-rei diamante estava ali perto, porque os seus batedores e arautos ali estavam, e que o autor (como as águas do São José e as lavras velhas do Manuel Alves) ainda tinha em si “um despotismo de diamante”, e não dera ainda um mindinho assim de seus pessuídos... Ó como se vê bem, nesses adoráveis prefácios, que o sertanejo de fardão acadêmico, filho de um pedrista, respirou a plenos pulmões, na sua infância, a atmosfera mágica dos garimpos, e encheu o peito da esperança imorredoura dos mineiros, aquela esperança graças à qual, até nos delírios da agonia, sobrenada o sonho, que lhes encheu a vida,

e do céu todo verde as esmeraldas chovem.

O lar de Afrânio, lar em que, além dele, o primogênito, se criaram mais nove filhos, para o trabalho, o bem, a honra, a observância do decálogo divino, foi um feliz complemento educativo do ambiente.

Ao convidar os ouvintes, na conferência do bimilenário de Horácio, a saudarem comovidos o pai do poeta, é para seu Pai que Afrânio está pedindo o aplauso, pois foi a reedição, a dois mil anos de distância, do Pater optimus de Horácio, com quem Afrânio poderia repetir: “Se minha vida foi honesta e pura, se sou caro a meus amigos, causa fuit pater his, a meu pai o devo.

Depois que Dona Chiquita confiou à discrição de minha amizade alguns rascunhos de memória de Afrânio, posso, com efeito, assegurar-vos que é uma evocação da sua a que ele atribui a Paulo de Andrade, protagonista de Esfinge, na sua peregrinação de saudade, evocação que ides ouvir:

Já a encontraria deserta a velha casa... Já não veria enchê-la a serenidade grave e pensativa do pai, sempre indulgente e bom, sem uma palavra mais alta... Desde muito cedo foram grandes amigos, procurando-se todos os dias, para longos passeios na sala, para lá e para cá, de mãos dadas, conversando como dois homens... Contava-lhe histórias, ensinava-lhe coisas, que ele ouvia atento ou interrompia para novas explicações ou contos já conhecidos... E sempre, no fim, achava meios de dizer coisas sérias, das quais saía dignificado, porque o pai afirmava que ele era um homem de bem. Os homens de bem não faziam isto, não faziam aquilo... não brincavam com fogo, não responderiam aos mais velhos, não faziam má-criações, não judiavam com os animais, não tiravam nada às escondidas, bebiam os remédios que as mães lhes davam, não mentiam, eram obedientes, tomavam banho frio. E ele fazia ou devia fazer tudo isto, porque era um homem de bem... A sua pequena vaidade assim fora criada. E tanto como os conselhos, lhe agradava o fato mesmo da conversa com o pai, a sós, os dois, passeando seriamente como gente grande... Assim o fizera homem, desde cedo. Não era muito que se enternecesse, agora, como uma criança, evocando a grande figura amada, boa, simples, amiga e indulgente, que se fora e que não passearia nem conversaria com ele, para convencê-lo de que devia ser um homem de bem...

Esta página da Esfinge, que não transcrevi por inteiro, deveria recolher-se em antologia, pois é sacada da realidade e da vida e não conheço nenhuma com maior poder educativo (coisa preciosa quando a educação parece desertar do mundo).

O pai de Afrânio, Francisco Afrânio Peixoto, foi um daqueles sertanejos autodidatas, que os viajantes estrangeiros de outrora mencionavam admirados. Mas, foi, acima de tudo, um apaixonado da educação; e pelas adivinhações do amor, antecipou-se a muitas das conclusões pedagógicas de bem mais tarde. Punha-se ao nível da inteligência dos filhos, para melhor dirigi-las, com persuasão e brandura. Afrânio nascera muito franzino, o que ele atribuía ao fato de “ter sido filho de uma menina, apenas quinze anos mais velha do que ele”, explicação que, por mais que a tenha em dúvida, não ouso contraditar e tão grande sabedor... Tinha a cabeça grande, a avultar no franzino do corpo, capacitada pela natureza do muito que havia de coletar pela vida em fora. E, por isto, o chamavam de cabeça de comarca (lugar, para os sertanejos, em que moram os mandões e impera o mandonismo) toda a vez que ele, opinioso, procurava impor suas vontades. Penso que, apesar de débil, já teria os ombros largos para a imensa carga de trabalhos e responsabilidades, a que estavam destinados. Certo é que as suas precárias condições físicas, além da primogenitura, lhe valeram maiores cuidados do pai, do qual diz, ele, nas memórias, que não foi apenas o melhor dos pais, mas verdadeira mãe; e que, por isto, em todo seu passado, a lembrança enternecida dele se mistura à de hábitos de bondade inteligente, algumas de cujas delicadezas só mais tarde compreenderia.

Acompanhemos, senhores, algumas das surpreendentes intuições afetivas deste Paier optimus, alguns dos seus delicados processos educativos.

Afrânio, como todos os meninos de seu tempo, tivera a escola como o castigo de artes e má-criações. A cada mal-feito, ouvia sempre gritar: “Deixe estar, que para o ano você irá para a escola.” E seu coração se encolhia todo com a ameaça. De sorte que, ao se aproximarem os seis anos, tinha a impressão de que era chegada a hora da grande punição acumulada. Mas o pai vigiava, compreendendo os estragos de tal pavor. Levou-o, como por acaso, a ver escolas e, ao passar por elas, comentava, com acento de amorosa verdade: “Veja como as crianças são felizes e bem tratadas pelos professores; e como têm prazer de viver umas com as outras. Assim será com você. Todos os homens de bem passam pela escola”, e Afrânio, que adorava o pai, e nunca o vira mentir ou faltar no seu afeto, se punha a refletir, quase convencido: “Meu Pai não me deixaria ir a um lugar, onde não fosse muito bem tratado.”

“De sorte que”, rememora ele, “foi com o coração menos apertado que, numa manhã de fevereiro, fui levado por ele à minha primeira escola, minhas primeiras professoras.”

(Aqui, sou obrigado a interromper a narrativa, tomado de uma dúvida: É a Afrânio ou a Horácio que esse Pater optimus está levando aos mestres, para assistir-lhe às lições:

Ipse mihi custos incorruptissimus omnes
Circum doctores aderat...

– Tive a espontaneidade de escolher – continua Afrânio: “É esta”. Era D. Maria da Purificação, segunda das três irmãs do Vigário, que, em Lençóis, minha terra natal no sertão da Bahia, tinham escola de meninos, e a ela fui bem recomendado. Abraçou-me, disse-me as palavras que as mulheres sabem dizer aos homens e que os comovem; de modo que, ao partir meu Pai, e ao deixar-me só, a aflição, que eu esperava, foi bem menor, porque começava para mim um novo afeto. Estudava as minhas lições menos para sabê-las, do que para lhe dar prazer. Uma aprovação sua era, para mim, o melhor prêmio. Ganhei, nos primeiros dias, plena confiança, e a escola-castigo, graças a isso, foi um prazer, que se continuou pela vida inteira.

Estou, hoje, convencido de que, se há maus alunos, é que não tiveram um sorriso ou uma carícia, para os acolher à entrada da escola. Vem-me agora, uma palavra de ouro de Michelet : “A educação é uma amizade”. Por isso, fiz dos meus professores meus amigos e, mais tarde, quando fui mestre, fiz, amigos, dos meus alunos. Amigos, até a franqueza: Não sei; não pude estudar. Tão sinceramente, que essa confidência abrandava a rigidez do ensino ou do exame...

Mais de meio século após esta acolhida mágica de sua primeira escola, Afrânio, como paraninfo de novas professoras, evoca no Instituto de Educação do Distrito Federal, para edificação de suas afilhadas, esta educadora de sua infância, com palavras dignas de gravação em ouro. E estou certo, senhores, de que as suas afilhadas de 1915, e todas as professoras que leram sua oração de paraninfo encontraram nela um pão espiritual para a áspera jornada da vida; de que terão aprendido, nos lindos exemplos da professora de Lençóis e de Afrânio, a profunda verdade do pensamento de Madame Necker-de-Saussure: “Tem sempre acesso ao coração da criança quem a ame sem fraqueza e sem simulação”. E confio que, lembradas de que os maus são, quase sempre, desgraçados que ninguém soube amar, tomem como lema de educadoras o verso de Lamartine:

Mon coeur dans leurs coeurs se verse goutte à goutte.

Um sinal da inteligência dessas duas criaturas, o Pai e a Mestra, amoráveis construtoras da sua personalidade privilegiada, só depois de educador o percebeu Afrânio. Ele era trêfego, irrequieto, incapaz de estar assentado e imóvel muito tempo. Seu Pai, que observara isto, conseguiu da professora que o deixasse, sempre que pudesse, ir ao jardim ou ao quintal espinotear um pouco, voltando, isto feito, ao seu lugar. Só ele gozava tal favor, porque só ele teve um pai, que notara no filho a necessidade de movimento, que todas as crianças sentem. O pai adivinhou, por amor, o que a pedagogia levaria tempo a descobrir. E Afrânio teve assim, a seu jeito, uma precursão da escola ativa.

Terá havido, senhores, memória mais pronta, mais feliz, e mais tenaz que a de Afrânio? Admiramos, sem restrições, sua inteligência, que era aguda e vasta; mas temos de reconhecer que sua memória concorreu muitíssimo para os encantos da sua palestra, do seu ensino, dos seus escritos; e isto porque, como observa a malícia de Montaigne, por maiores que sejam os armazéns da inventiva, mais fornidos são os da memória, em que eles se abastecem.

Pois bem: ainda aqui intervém, por forma original e pitoresca, o benemérito pai de Afrânio, exercitando, e aguçando essa memória do filho que, desde os primeiros anos, era angélica.

Mandava, por Afrânio, criança de cinco anos, se tanto, a um farmacêutico, seu vizinho e amigo, um recado que era apenas a descrição completa do rio São Francisco. E o farmacêutico, depois de destampar o boião do açúcar-cândi e de dar à criança um torrão, respondia com a descrição do Volga, recomendado muito não esquecer as palavras difíceis. Tão inocente era Afrânio nesses exercícios, que, mais de uma vez, confidenciou à Mãe essas conversas atrapalhadas. “Só mais tarde”, diz ele, “vim a saber, ao reencontrá-la, que isso era geografia, que eu já havia aprendido, como exercício de memória.”

Com o casamento de uma das irmãs do Vigário, fecha-se a escola das três, o jardim encantado de D. Maria da Purificação, e Afrânio tem de ir para a única escola pública de Lençóis, regida por homem. “O ambiente só de meninos” é ele quem fala – “era frio e duro. As minhas companheiras de escola, amenas e brandas, me faziam falta à natureza sentimental.” Prestem atenção os críticos a esta aura em que respira e precisa respirar a vida de Afrânio – já não ganhava prêmios de sorrisos; eram prêmios materiais os que se davam às boas lições; “acostumei-me a ganhá-los muitos, porque faziam prazer a meu Pai”.

É numa das ocorrências desta escola fria e dura de marmanjos que vamos ver até que ponto, aos nove anos, Afrânio já era varonil; até que ponto o Pater optimus já lhe havia forjado o caráter, que, penso, se poderia definir: a aptidão a resistir à maldade e à injustiça. Havia nela um aluno, que, sendo péssimo em todas as disciplinas, era, entretanto, um prodígio em cálculo mental, e capaz, num átimo (estou empregando, impetrada a vênia da Academia, o vocabulário da minha zona do Mato Dentro, relembrando-vos que sou genuíno matuto) de dar o resultado de “oito vezes vinte e quatro, nove fora vezes dois”. De modo que, na sabatina e argumento de sábado, ele, que não tinha conseguido um só prêmio nas outras matérias, desfechava nos outros os cálculos, em que – e só neles – era exímio, e dando-lhes quinaus sobre quinaus, não só lhes arrebatava os prêmios de toda a semana, mas, esgotados estes, ainda tinha o direito e o gostinho de chamá-los a bolos. E Afrânio, que “dava para tudo, menos para matemática” (só mesmo nesta confissão de suas memórias, ficaríamos conhecendo esta falha em sua armadura enciclopédica...) recusou-se, terminantemente, a terçar armas com o tal calculista “que só dava para matemática, e para nada mais”. Declarou que não tinha pendor para esses cálculos e que não se humilharia a ser batido por um mau aluno, inferior a ele em tudo. Se este o quisesse, que se abastecesse, à vontade, na sua coleção de prêmios, nos prêmios dele, Afrânio. E como o professor repetia que se devia observar a injusta rotina, Afrânio teve a coragem de dizer-lhe que não voltaria à escola, se insistisse. Seu pai, certamente, estaria por ele... É fácil de calcular a emoção da escola, com esta aparente rebeldia. Estamos na era burguesa e pacata de 1885, e não nos tempos de agora, em que autoridade e disciplina são palavras vãs...

Pater optimus, em longa e cortês discussão com o professor, o convence da erronia pedagógica. De sorte que Afrânio continua na escola; “mas nunca” – conclui ele nas memórias – “o tal Artur Pereira logrou encontrar-me, para a humilhação de seus argumentos”.

Pergunto-vos, senhores acadêmicos, se já não estaria, nesse guri de Lençóis, o mesmo Afrânio, definido, consciente, veraz e corajoso, que a Academia, as Faculdades, o Parlamento, todos os centros de sua atividade conheceram, um dos diamantes mais resplandecentes e rijos que a Chapada Diamantina da Bahia já deu ao Brasil?

Tudo o que, de agora em diante, lhe acontecer, na zona dos sentimentos, idéias, e feitos, daqui promana, por aqui se explica. Nas ascensões humanas, o que, sobretudo, interessa e preocupa, como – creio eu – nas da aviação, é a decolagem inicial, e a aterragem final, com a diferença, apenas, que nas dos homens, o poiso nada tem de terreno, e se há de fazer para a banda do céu... Ergamos, pois, nossos corações, em reconhecimento e louvor, para aqueles, graças aos quais Afrânio decolou: para aqueles sertanejos, aquele Pai, aquela Mestra... Permiti, contudo, que associe a essa humanidade, a paisagem, só aparentemente inanimada da sua terra: o sítio de seus avós no São José (seu encanto dos sábados à tarde, até a tarde de domingo), o Lavrado, a Lagoa Encantada, e tantos e tantos lugares dos arredores de Lençóis, tão bem descritos, aqui e ali, nos seus livros, sobretudo em Bugrinha; paisagem que lhe fez a alma de menino tão definitivamente rústica – assim a diz Afrânio nos seus dias finais – que todo o tempo da vida civilizada não foi bastante para calar o refrém ou leitmotif dessa vida rústica, que aparece em todos os seus escritos. Ó como o posso eu compreender, eu que, aos 68 anos de idade, ainda tenho nos olhos e no ouvido (este, já agora, quase que só mental, todas as cores, todos os cantos dos céus, dos campos e das matas de minha terra, alimento de minha pobre estesia!

Não há bem que sempre dure... E Afrânio, aos nove anos, tem de deixar o seu paraíso sertanejo, “os seus Lençóis”, para o Salobro, às margens do Rio Pardo, em Canavieiras, porque o Pai fora atraído para as novas minas do sul da Bahia, os diamantes do Salobro, e os cacauais do Rio Pardo. Abençoada, para nós, a hora em que este mal lhe aconteceu, porque vai se aproximando de nós, e colhendo, de caminho, a larga experiência das coisas brasileiras, com que nos há de instruir e deleitar. Já a viagem da família, verdadeira caravana de tribo, desde o sertão até o sul do Estado, com passagem por São Félix, Cachoeira, e a Capital, – esta Cidade do Salvador, que, depois, tomaria conta dele até à morte – o consola, inteiramente, da amarga separação; porque é cheia de coisas nunca vistas; e o garoto amarrado ao selim de Passarinho (o seu tordilho, famoso no esquipado, que ele havia de incorporar, um dia, aos personagens de um de seus livros) é aparentado àquele João Ponce de León, que descobre a Flórida aos oitenta anos, e só se lançou aos riscos e incertezas dessa descoberta, por mares nunca dantes navegados, acicatado do anseio de mirar algo de nuevo... Quanta e quanta coisa nova: as dormidas em couros, nos ranchos ou ao relento (“o sono dormido à toa, sob a tenda de amplidão” como cantara o seu Castro Alves” mais seu que de ninguém) as manhãs alegres de preparo, para recomeçar o caminho; os meios- dias de repouso, à beira de algum riacho cantante e fresco, para a refeição e o descanso da tropa; os crepúsculos à chegada de um pouso; a vadiagem de um rio imenso, o Paraguaçu; o trem de ferro, primeira impressão forte da civilização; a ponte Pedro II sobre o Paraguaçu, trezentos metros de ferro, tão impressionante, tão majestosa a seus olhos de criança, que, depois de ter visto, no último quartel de vida, a ponte George Washington, sobre o Hudson, em Nova York, Afrânio estava pronto a apostar, com quem quisesse, que esta não chegava ao calcanhar daquela... E eu, que ao ler as descrições das velhíssimas sequóias gigantes dos Estados Unidos, as referia sempre a um jatobá de meu quintal de Santa Bárbara, o meu metro do mundo vegetal, posso compreender muito bem essa confiança apostadora de Afrânio, até o dia – bem entendido – em que voltasse à ponte da sua infância; porque, no dia em que, já homem feito, tornei a ver o meu jatobá, perguntei se o haviam substituído por uma planta de estufa, e acabei convencido – como, aliás, cada um de vós outros – de que os gigantes de Brodignac da nossa infância se tornam liliputianos na idade adulta, e que da primeira à última fase da vida as coisas do mundo se apequenam muitíssimo, embora – é de supor – não tanto como quando as contemple a alma, um segundo após a morte...

No Salobro, o Pater optimus, sempre vigilante, consegue, para iniciar o ensino secundário de Afrânio e seus irmãos maiores, a colaboração de um engenheiro agrônomo, Glicério Lino de Santana, cujo nome tem de figurar na lista de nossa gratidão, pois Afrânio confessa que “muito lhe ficou a dever”.

E, agora, para a Bahia, a Capital; para o pleno saber, e a glória, com a fatalidade de um astro, que tem de percorrer a sua órbita! Nunca me tira de cabeça que só então o mineiro de Lençóis e do Salobro se vai tornar baiano; mas só hoje me animo a dizê-lo, hoje que Afrânio não está mais aqui, para me condenar...

Na Capital, o seu anjo-da-guarda, sob a figura de seu tio Filogônio de Souza, tão carinhoso que Afrânio e seus irmãos o chamavam de Papai-Filó, o conduz ao Colégio Florêncio, dirigido por um educador de escol, Manuel Florêncio do Espírito Santo, um desses pretos honrados, dos quais costumava dizer a filáucia dos senhores de escravos que eram “pretos na cor e brancos nas ações”, como se virtude tivesse pigmento... O colégio, ali no topo das Ladeiras da Gameleira, da Montanha e da Conceição, ocupava o prédio do antigo Colégio Sebrão, que Castro Alves freqüentara, passando, no ano seguinte, para a Rua do Sodré, no grande casarão em que viveu seus últimos anos, e morreu o poeta patrono da Cadeira acadêmica de Afrânio. O fundo do casarão dava para a Rua do Areal de Cima, onde moravam as meninas Estela e Semy Amzallak, namoradas dele e para as quais versejara (os poetas, como é sabido, namoram e versejam por partidas dobradas...). O que tudo nos convence de que também eles, os colégios, habent sua facta..., sobretudo ao sabermos que quase todas as aulas de Afrânio se davam no grande salão, em que o Poeta morreu.

Quando Florêncio, que o acolheu benignamente nesse 3 de fevereiro de 1888, lhe perguntou que matérias pretendia cursar, e Afrânio disse que se inscreveria em sete preparatórios: português, francês, inglês, latim, geografia, história, e história do Brasil, Florêncio, que o via tão pequeno e franzino, procurou dissuadi-lo de tal criancice; e Afrânio lhe responde, gravemente, que era capaz de fazer, honradamente, esses estudos. E o velho educador, ao ouvir este “honradamente”, de que muito gostou, percebeu logo no menino um homem, e assentiu nas inscrições, dizendo: “Quero ver, até o fim do mês, se, ‘honradamente’, você cumpre as obrigações.” No fim do mês, só havia, nas cadernetas, notas boas e ótimas. Afrânio passou, então, a ser considerado pelo velho preto um menino honrado; e as palavras honrado, honradez, honradamente, entraram a figurar, amiúde, nas suas conversas com o aluno.

Nesse primeiro ano, prestou ele os exames das disciplinas que cursara, obtendo quatro notas plenas e três distinções. No ano seguinte, completa os preparatórios, já então como aluno laureado, isento de contribuições ao colégio, prêmio que, antes dele, só uma vez se concedera.

Só Deus sabe o que lhe custaram, a este gigante do querer, as quatro matemáticas, às quais, como já vimos, tinha ojeriza. Ojeriza tão aguda, que chegava a evitar, na História, as datas, e, na Geografia, as superfícies e populações, toda a estatística, enfim. Mas, em compensação, as ciências físicas e naturais, lecionadas pelos melhores professores que conheceu – Pedro da Luz Carrascosa e José Porfírio de Sá – caíram-lhe no goto.

O professor de Geografia, História, e História do Brasil, Odorico Octavio de Odilon, tinha a arte de tornar atraentes essas matérias. E Afrânio, graças à memória prodigiosa e notáveis faculdades discursivas, é o seu aluno de mostra. Por isto, no exame de Geografia, escreve tal página sobre Genebra, que o examinador, Cônego Ludgero dos Humildes Pacheco, lhe disse que “ou ele tinha memória de anjo, estudando em livro que ele, examinador, não conhecia, ou, então, era um cínico, e copiava esse livro, que desejava saber qual era”. Sertanejo não leva desaforo para casa... Afrânio responde, no clarão do tiro, que não tem memória de anjo; mas, também, não pode ficar com o insulto de cínico atirado injustamente contra um pobre examinando por um examinador e sacerdote idoso. E intima a este que “mude de expressão, se quer que continuem”. Houve na sala um grande silêncio. O velho olhou longamente Afrânio, cujos quatorze anos pareciam dez, de tão pequenininho era, e disse, brandamente:

Meu nome é Humildes. Humildemente peço perdão. Fui excessivo. Mas sua prova, de tão surpreendente, me fez acreditar que fosse surripiada. E como lhe atribuí inteligência vulgar, seria cinismo tal petulância. Perdoe-me: quero apenas a prova de que isto que escreveu é seu. Diga-me, por exemplo, os homens célebres, filhos dessa cidade de Genebra.

Afrânio, sem titubear, mencionou todas as celebridades genebrinas, dignas de lembrança, e as foi identificando uma a uma; de sorte que o Cônego, pasmado, confessou: “Menino, você não é cínico: eu já o disse. Mas é angélico... .”

E perguntou-lhe (“aqui para nós”) onde aprendera essas coisas. “No Dicionário de Boiuillet, de Geografia e História”, respondeu o menino. “Leia Vossa Reverendíssima, nele, o artigo sobre Genebra, e verificará que fui aluno aproveitado... Sobre Paris e Roma, se me der tempo, posso escrever um caderno.”

Ludgero – escreve Afrânio – fez um discurso, compensando-me das más palavras, que me dissera no começo; e terminou declarando que estava feito o exame, e a nota já sabiam todos qual seria...

Depois, nos meus longos anos de estudante de Medicina, nunca o encontrei, que não me parasse, abraçasse, e dissesse: – Ainda hoje, meu filho, me dói aquela suposição de cinismo, que lhe atribuí. Nunca mais fiz dessas temerárias suposições a ninguém. Você me curou da malícia. Mas não imagina, meu filho, como, por isso, eu tenho sido enganado, por aí... .

Ao ingressar na Faculdade de Medicina, Afrânio, que se tornara popular nos meios escolares, levava o prestígio de sua extraordinária carreira colegial, a que se juntava o louvor constante de seu velho mestre Manuel Florêncio ao “orgulho de seus últimos dias”. Sentia-se obrigado, diz ele, a ser aluno de primeira ordem na Faculdade.

Tudo isto, e mais o seu frágil aspecto menineiro (dezesseis anos, que aparentavam doze) lhe valeram, de entrada, um abrandamento na rudeza coimbrã do trote. Limitaram-se os implacáveis veteranos a condenar o franzino e glorioso novato a entrar na Faculdade, durante o primeiro mês, debaixo de vaia, pela mão da tradicional Sabina, a preta das laranjas, a quem Afrânio pagou cinco mil réis (50, ou mesmo 100 – ai de nós! – dos cruzeiros de hoje) pelos seus serviços de Babá...

Daí em diante, é uma brilhante rota batida até o fim do curso. Nós todos sabemos que, se Afrânio se propunha a ser “de primeira ordem”, fosse no que fosse, era mais fácil vir o mundo abaixo do que aparecer seu nome na segunda ordem, ou, mesmo, em chave, na primeira... A supremacia era a sua rotina. E, assim, foi passando, triunfalmente, de um ano para o outro, a conquistar gloriosas amizades que o exaltam e afirmam: a de Nina Rodrigues, aquele que “de uma ciência de reservas prudentes, abolorada na praxe forense, fez a aplicação judicial ou legal da Medicina”, aquele que desfazia a distância, o fosso de separação entre mestre e discípulos; Ramiro Monteiro, aquele cuja polpa digital competia com o esfigmógrafo: Anísio Circundes, o que transmitia aos alunos doenças imaginárias, tal a eloqüente perfeição com que as descrevia; Juliano Moreira, o africano, que mais me pareceu sempre um hindu fascinador de cobras, com a malícia de um sorriso bondoso nos olhos luminosos, com quem Afrânio compartilharia a glória da reforma do Hospício Nacional. E outros, e outros...

Entre os estudantes, citarei apenas os dois maiores amigos da sua vida, cuja omissão, nesta hora, Afrânio não me perdoaria; Egas Muniz Barreto de Aragão e Manoel Bernardo Carmon Du Pin e Almeida, que com ele formavam uma trinca inseparável (Jap, Nip, Esag), a ler os mesmos livros, ter os mesmos gostos, escrever no mesmo jornal... Quanta literatura compartilhada: francesa, portuguesa, nacional; mas quanto estudo também...

Feito o terceiro ano, Afrânio é nomeado interno do professor Frederico de Castro Rebelo, e como este grande clínico, querido e honrado na Faculdade, não ia, absolutamente, ao hospital, Afrânio, que tudo levava a sério, e não aceitava a filosofia da irmã da enfermaria de crianças: “É melhor, meu filho, que eles se vão nesta idade; são anjos que o céu ganha”, vivia numa atribulação constante, a procurar pela cidade o mestre, para expor-lhe os casos aflitivos, que não faltavam...

Sua tese de doutoramento, “Epilepsia e Crime”, em cuja defesa quase se engalfinha com os examinadores, dois grandes amigos seus (porque, em exame ou concurso, é outro Afrânio, e perde a cabeça, ficando “meio alienado”) não é uma peça de rotina, destinada, como tantas e tantas outras, à escuridão e mofo dos arquivos. É um livro vivíssimo e de combate; tanto assim que, logo depois, encontra editor, traz prefácio de Nina e Juliano, duas sumidades, e recebe aplausos dos maiores especialistas: Benedikt, Morselli, Lacassagne, Feré, Toulouse, Christian, Tarde, Bombarda, Clóvis, Viveiros de Castro... Jackson de Figueiredo, o meu Jackson, que estaria aqui entre os quarenta, se a fatalidade não o roubasse tão cedo ao serviço das letras e do Brasil, que era a sua paixão, observou, com grande acerto, que Afrânio, ao escolher essa tese para a sua meditação, em tal época da vida, dava o traço de sua personalidade de imaginativo por excelência, porque nenhuma das realidades do mundo, a não ser o amor, tão de mistura, aliás, com o crime, fere mais do que este a imaginação e é causa de espantosos momentos, em que a vida interior acolhe todas as cores do inferno, e é sujeita a alucinações sem fim...

Formado, tenta a clínica em Canavieiras e, ao cabo de um mês, retira-se, doando a um incipiente hospital um famoso arsenal cirúrgico, que a Mãe, para fazer-lhe surpresa, fizera vir da Europa, à custa de muito dinheiro e grandes canseiras, mas sem maior critério, pois continha instrumentos para vários especialistas de uma capital. Com os únicos sessenta mil réis, que lhe paga espontaneamente um cliente generoso, enfeita de flores, muitas flores, o túmulo do Pai, seu grande educador.

Vai, depois, ao Estado de São Paulo, induzido por João Américo Fróes, que clinicara em Água Vermelha, e ali tinha o cunhado, Oscar de Abreu. Ao passar pelo Rio, “sentiu logo que aqui seria o seu pouso definitivo”. Vai, ainda assim, até uma estação de via férrea, Visconde do Pinhal, que lhe dizem ser Canaã... Mas tais coisas lhe acontecem no dia da chegada, que nem desarruma a mala, passa a noite sem se despir, e, no dia seguinte, está de volta para a Bahia.

Aí chegando, encontra uma conspiração de Góis Calmon e Nina Rodrigues para que entre, candidato único, em concurso de preparador de Medicina Legal, para a cadeira de Nina na Faculdade. Unanimemente aprovado e nomeado, declara a Nina que prefere ir disputar a seção de Higiene e Medicina Legal na Faculdade do Rio, onde a sucessão do catedrático, Sousa Lima, estava para breve, ao passo que não podia nem devia desejar a dele, Nina, seu amigo, ainda moço e com poucos anos de professorado. Nina, todo estima e bondade, o convence de que, para vencer tal concurso, deve sistematizar estudos. Para esse efeito, Afrânio, durante dois anos, como preparador de Medicina Legal, foi o mais estudioso de seus discípulos; e tendo entrado a reger a mesma cadeira na Faculdade de Direito, teve a fortuna de juntar, intensamente, a teoria à prática, Com Juliano Moreira iniciou indispensáveis estudos de psiquiatria, e com Alfredo de Andrade, no Laboratório Municipal de Análises, preparava-se em Química Bromatológica e Toxicológica, que seria o forte do concurso no Rio. E era, ainda, médico da Saúde Pública.

O Governador Severino Vieira, empenhado em guardar na Bahia tal valor humano, procura dissuadi-lo, oferecendo-lhe “qualquer outro lugar, no Estado, de que precise”; mas Afrânio faz-lhe ver que já tinha três, e, na sua idade, não podia ambicionar mais, como estipêndio. Não duvidasse de seu idealismo, pois ia arriscar um concurso em meio estranho, para vir a ganhar a quarta parte do que já tinha, sem maior esforço, na terra natal. E concluiu: “Se, na minha idade, não tentar esta imprudência, não será na velhice que hei de cumprir o meu ideal, que é ser professor na Faculdade da Capital do meu país...” Quarenta anos depois, Afrânio escrevia, no livro de ponto das suas aulas: “Minha honra na vida é ter sido professor na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro.” Que presciência, e que constância, a desse grande coração!

Foi por esse tempo, antes da vinda para o Rio, que Afrânio publica em Leipzig a Rosa Mística – Símbolo Trágico, de Júlio Afrânio, remetendo um exemplar a José Veríssimo, com estes preciosos dizeres a tinta carmim, numa simpática e clara caligrafia (a informação é do ilustre crítico): “j. a. (Júlio Afrânio) dá esta rosa ao senhor J. V., contentando-se em vê-la esfolhada por suas mãos de justo”. Graças a isto, senhores, coube a um dos maiores desta Casa o papel de gajeiro para dar a todo o Brasil o brado de “talento à vista!” Brado alvissareiro, que nós, os Jardineiros do Ideal, de Belo Horizonte, para os quais Veríssimo era juiz, sem igual, das partidas literárias ouvimos com alegria. Mas por mais que fizéssemos, não obtivemos das mofinas livrarias locais a vinda do livro, a tal ponto eram compartimentos estanques, na grande Pátria, os Estados do Brasil. Só agora pude achar, aqui na Academia, um exemplar carimbado por ela em 1919, e pude ver até que extremo o criador pode repudiar a criatura. Vê-se, com efeito, aí, que Afrânio, depois de tentar, em duas páginas, emendar a obra, riscando, a lápis vermelho, adjetivos excrescentes, substituindo redundâncias e expressões menos felizes, entrega afinal os pontos, escrevendo à margem da terceira página: “Incorrigível. Só o fogo. A. P. 1914.”

Nas memórias, é também em tom de zombaria que a ela se refere: “Para ocupar o resto do tempo (isto é, o que lhe sobrava dos estudos e cargos... Que Hércules!) fiz literatura e agitei a Bahia com a propaganda simbolista. Cometi, então, a Rosa Mística...” E por aí vai, a desfazer na filha, numa resenha trocista da obra... Não me parece tenha razões para se envergonhar dela, pois contém muitos pensamentos de grande elevação e beleza, pensamentos a que o amor volta, com prazer, em outras obras. Tiradas as esquisitices tipográficas e as descrições impressionistas dos cenários, com aspecto de dramalhão, o livro não é muito diferente de outros livros de Afrânio, e nada tem, a meu ver, de simbolista, tanto assim que o autor lhe acrescenta elucidário, o que me parece a negação do Simbolismo. Para este não fora feito Afrânio, como não o fora para os números...

Contou-me o Xavier de Oliveira que Afrânio, já disposto a vir para o Rio, recebeu de Juliano Moreira, que viera antes dele, o seguinte chamamento, da mais fina malícia: “A aldeia, aqui, é um pouco maior; e os caboclos, mais espalhados, se fazem, uns aos outros, menos mal. Venha.” Como o concurso ainda não estava marcado, e lhe era precisa alguma permanência no Rio antes dele, Afrânio obtém, graças a Severino Vieira, um dos novos lugares de médico, na reforma da Saúde Pública, e parte logo para aqui, hospedando-se na Pensão Schray, em frente ao Palácio do Catete. Foi isto nos últimos dias do governo Campos Sales; e Seabra, que ia ser ministro de Rodrigues Alves, acamaradou-se tanto com Afrânio, que passava todas as noites pela pensão e o levava a passear a pé. Certo dia, Afrânio lê no Jornal do Commercio a notícia da nomeação de Osvaldo Cruz para diretor geral da Saúde Pública e a dele, Afrânio, para Secretário da Diretoria Geral. Era uma surpresa de Seabra ao seu jovem amigo; mas sem prévia consulta a Oswaldo, o qual declara não aceitar a nomeação, pois havia convidado outra pessoa para seu secretário... Afrânio, num encontro dos três, que Seabra, aflitíssimo, promove, põe os dois à vontade com um elogio caloroso à escolha de Oswaldo para a obra do saneamento, acrescentando que seu louvor é desinteressado e sem suspeição, pois não estava mais falando como Secretário da Diretoria Geral, nem mesmo como médico da Saúde Pública.

“Fiquei sem posto no Rio de Janeiro”, comenta Afrânio, “mas tão bem comigo, e sobretudo com o Dr. Gonçalves Cruz, que continuamos o resto da vida namorados um do outro...”

Mas Deus escreve direito por linhas tortas, e Afrânio estaria recebendo dele uma de suas bênçãos disfarçadas... Afastada a colaboração com Osvaldo Cruz, propicia-se a colaboração com Juliano Moreira, que se apressa em juntar este astro de primeira grandeza à constelação de grandes médicos, que iriam se empenhar na reforma da assistência aos alienados, um dos muitos serviços do governo Rodrigues Alves. Juliano, gravemente enfermo, tem de ausentar-se para a Europa, e é a Afrânio que ele faz confiar a direção, de 1904 a 1905, para a execução material e técnica das obras e planos, que o Mestre projetara, com a sua esclarecida e diligente colaboração. E Afrânio pôde dizer, no seu relatório ao Ministro. Seabra, que “de uma prisão insalubre, onde havia licença, desleixo, maus tratos à desgraça humana”, se fizera “um hospital moderno, onde existe a disciplina, o conforto, o respeito à insanidade humana”. Entre os serviços então prestados por Afrânio nesse problema que supera os nossos recursos e que, como tantos outros, depende de corajosos saques sobre o futuro, sob pena de se transformar em terrível círculo vicioso, está o impulso à organização e instalação da Escola Profissional de Enfermeiras – que Afrânio não podia viver sem ensinar e aprender. Foi, ainda, por este tempo, que Afrânio, a pedido de Seabra, elaborou um regulamento dos serviços periciais da Polícia, que mereceu, aqui e no estrangeiro, calorosos aplausos e que é o primeiro pregão nacional das doutrinas do insigne Nina Rodrigues, de quem Afrânio é o primeiro discípulo e evangelista. E como, por misoneísmo burocrata e outros motivos, o regulamento fica letra morta no sarcófago da legislação, é ainda Afrânio, quatro anos depois, no Governo Afonso Pena, quem o vivifica quando organiza o Serviço Médico-Legal, cuja direção lhe é confiada; e inicia, ensina e guia os seus companheiros em toda a técnica pericial. Foi este um dos seus melhores serviços à causa da Justiça e à cultura nacional, pois o belo exemplo irradia para os Estados e se traduz em um dos melhores livros de Afrânio, o seu Tratado de Medicina Legal, em dois tomos, o livro de Medicina, em língua portuguesa, de mais edições e maior influência...

Daí em diante, durante quarenta anos, até os últimos dias da reclusão, à espera da morte, Afrânio é o sujeito dos dois verbos privilegiados: agir e criar, silabicamente tão curtos, mas nos quais, no dizer elegante de Lion Bérard, “se condensam alguns dos poderes mágicos dos mistérios primitivos”.

A projetada reforma do ensino médico, que jamais se realizaria no quatriênio presidencial, motiva o adiamento do concurso, em que trazia fito o coração, desde a Bahia. E tendo regressado Juliano, Afrânio passa ao Mestre o leme, que governara na perfeição, e parte para a Europa, para freqüentar cursos especiais, a fim de se tornar invencível, quando se reabrisse o concurso. Cuida que vai em busca, apenas, do saber altivo e forte, que, tanta vez, nos amarga; mas o que lhe vem ao encontro é a esquiva e doce felicidade, pois a bordo do Danúbio (que predestinação romântica de nome!) viaja também, ainda menina, aquela que, sete anos depois, o vai tornar vitaliciamente ditoso, e desde então começou a exemplar afeição entre os dois...

Desempenha, primeiro, a incumbência oficial de visitar as colônias de alienados da Escócia, e a experiência única do open door, de Gheel, na Bélgica, vindo da Idade Média, e, não se sabe bem por que, quase impossível de se implantar alhures, tanto assim que Juliano e Afrânio dão cabo de casas-fortes e camisas-de-força, mas não conseguem abater as grades.

Passa, depois, com encarniçamento, aos seus estudos: a Medicina Legal em Viena, a técnica de autópsias em Berlim, a bacteriologia no Instituto Pasteur de Paris. Em Viena, onde o ensino é “uma fraternidade amável e pouco dispendiosa”, estuda histologia e microscopia aplicada à Medicina Legal com Karl Landstein; e tal camaradagem se estabelece entre os dois, que, quase trinta anos depois, Landstein, maioral da Rockefeller, e já aureolado pelo prêmio Nobel que lhe valeram suas descobertas dos grupos sanguíneos, deixa a Flórida, onde gozava férias, e vem a Nova York só para rever a Afrânio, a quem abraça comovido.

No Instituto Pasteur, Afrânio e mais cinco brasileiros, por se terem descuidado de inscrições a tempo, ficam para cima do número trezentos, quando os admitidos serão, apenas, cem. Mas Afrânio que, no dizer do Mestre Rodolfo Garcia, teria artes de seduzir a corte celeste, atraca-se com o diretor, o sábio Emílio Roux; e este, lembrado de que Pedro II, acreditando, desde muito cedo, em Pasteur, doara os cem mil francos, com os quais se deu começo ao Instituto, levou Afrânio até o busto de D. Pedro na Biblioteca da casa famosa, e deferiu o seu pedido, com a nobreza destas palavras: “Quis trazê-lo até aqui para dizer-lhe que jamais um brasileiro baterá em vão à nossa porta.” E até o fim do curso indagava sempre pelos brasileiros, tendo perguntado, mais de uma vez, a Borrel se Afrânio se mostrava tão capaz e perito em bacteriologia, como na advocacia da causa comum... É fácil imaginar que estímulo teria sido tudo isto para o chamado “quarteirão dos brasileiros”, e, particularmente, para Afrânio, já, de si, tão estimulado.

É, portanto, armado cientificamente de ponto em branco que ele volta ao Brasil, entra, afinal, no suspirado concurso, revela novidades à banca examinadora (o que não é para esta vergonha alguma, pois revelara no Instituto ao grande Laveran, o Papa do impaludismo, um novo corante, trazido da Alemanha, para o exame do sangue do impaludado) e obtém estrondoso triunfo, sob o aplauso da mocidade, que, no começo, lhe era um tanto hostil. Em sua prova escrita, sustentou a datiloscopia, contra os processos, então oficiais, de Bertillon; o que lhe vale a honra de figurar essa prova no Museu Vucetich de La Plata, como uma das primeiras afirmações de fé no sistema dactiloscópico, depois vitorioso. Até o fato de ser canhoto (“este canhoto é um dos homens mais direitos do Brasil” ouvi eu a alguém que o via, na Biblioteca Nacional, escrever com a esquerda...); até o fato de ter usado uma das primeiras Waterman Fountain Penn, a hoje tão banal caneta-tinteiro; até essas coisas de nada concorreram para o prestígio do candidato, que era vindoiro nesta terra... Rocha Faria, o catedrático hors ligne, toma-se por ele de grande estima, dá-lhe logo metade do curso a lecionar, impõe sua participação nas bancas de exame, adota como o da cadeira o livro que Afrânio escreve, não cessa de o exaltar, em particular e em público, provas de amizade que Afrânio considerou sempre “o seu orgulho na Faculdade de Medicina”.

Agora, sim, estava afinal, Afrânio nos seus gerais, ou mesmo no seu geraizão, como talvez se dissesse no linguajar dos seus Lençóis, onde havia geralistas vindos de Minas, de minha Minas... Porque, embora perlustrasse todo o universo da Cultura e do saber (menos – já se sabe – a matemática...) e aí se sentisse inteiramente à vontade, a sua província ou campo de eleição era a Educação e o ensino. Tanto assim, que estava sempre excogitando meios e modos de aditar ensino e educação a todos os serviços e atividades a seu cargo, e sempre aceitou, de rosto alegre e braços abertos, por mais sobrecarregado que estivesse, qualquer tarefa educativa que lhe parecia, antes recreio do que trabalho. Nunca se multiplicaram, com tanta generosidade, as sementes do bem que pais e mestres depositaram em algum espírito e coração. É o que proclamam, sem discrepância, os maiores educadores pátrios. Eis, com efeito, o que depõe sobre ele o inesquecível Venâncio Filho, que, pelo muito que amou e serviu ao Brasil, era da estirpe de Afrânio:

Ele poderia ter sido, se o quisesse, somente homem de letras. Poderia ter sido, tanto lhe sobravam aptidões, exclusivamente homem de laboratório, de ciência experimental, e especulativa. E não o foi, porque pressentiu que lhe estava reservado, antes de tudo, um alto lugar, um imenso papel de educador de nossa cultura. Por isso educou a todos desse Brasil imenso, cujo conceito de civilização reabilitou... Na multiplicidade dos aspectos que apresenta a personalidade de Afrânio Peixoto, o que domina é o de educador.

No homem de letras como no de ciência, no higienista como no psiquiatra, no médico legista como no parlamentar, no ensaísta como no professor, no homem de sociedade como no amigo, Afrânio Peixoto é antes de tudo o educador... Educou-se para educar, e ninguém, no seu tempo, o excedeu nesse nobre mister.

E eis o luminoso depoimento de Lourenço Filho, outro grande líder da educação brasileira, este, graças a Deus, ainda entre nós, para serviço e honra da Pátria:

Essencialmente, Afrânio era professor. Dos mais completos, dos mais bem dotados, dos mais apaixonados pelo ensino. Professor ele o era na cátedra, no livro, na tribuna de conferencista, na simples conversa... A unidade subjacente a toda a sua grande obra advinda do sentido educativo que o animava. Nela se transfundiam a argúcia do cientista, os ímpetos do artista, a coragem e a pertinácia do cidadão. Afrânio foi Afrânio, tal como agora o vemos, no esplendor da imortalidade, porque condescendeu em exercer, de forma a mais humana, esta humilde tarefa, que ele tanto exaltou: a de ensinar e educar.

Não é possível, senhores, arrolar por completo as instituições e ocasiões em que Afrânio satisfaz seu inato pendor de educar. Quando a gente cuida ter esgotado todas as manifestações dessa veia generosa, descobre novos filões de grande riqueza. E muitos, não desvaliosos, ficarão, ainda, no esquecimento. As migalhas da mesa de um nababo sustentariam um milhar de pátrias. E em todos os postos, seu estímulo e exemplo são impecáveis. Não é um ocupante dos cargos: os cargos é que o ocupam. E jamais dormiu à sombra dos louros conquistados.

Lourenço Filho, seu companheiro de cada dia, durante anos, no Instituto de Educação, asseverou-nos que “não deu uma só falta, nunca chegou um minuto atrasado, nunca despediu a classe um instante antes da hora. Ao contrário, por vezes, o professor da aula seguinte deveria reclamar, pois os alunos seguiam Afrânio, pelo corredor, em animadas perguntas ou em comentários aos problemas propostos”.

E assim é, por toda à parte, sem exceção: Na Faculdade de Medicina, onde – no dizer autorizado do Professor Couto e Silva – “trabalhou afincadamente, amando e engrandecendo, com sua presença contínua, a tradicional e gloriosa Casa centenária a que deu lustre invulgar”; na de Direito, onde – atesta Madureira de Pinho, seu discípulo e, agora, grande Mestre – foi filósofo, sociólogo, jurista, dos mais notáveis professores de Direito que temos tido, “trazendo no temperamento e no caráter a altivez ante o poder e a paixão da liberdade”. Na Diretoria da Instrução Pública, a que o chama o benemérito Azevedo Sodré, revela-se seu coração vicentino. Percorrendo, uma a uma, todas as escolas da Capital, descobre uma tão indigente, que os meninos se assentam em caixotes de querosene; e transformado logo em Aladim das Mil e Uma Noites, traz às escondidas, alta madrugada, mobiliário e material decente, amorosa surpresa, que comove professores e alunos. Nos cursos especiais de conferências, deixa esgotados os assuntos: Camões, Castro Alves, e tantíssimos outros, tudo reduzido aos lavrados dos seus Lençóis, em que nada mais fica para explorar.

Os que lhe freqüentam os cursos o adoram, como, outrora, os que ouviam a Sócrates, a Platão, a Aristóteles, a todos os que aiment à limer sa cervelle à la cervelle d’autrui. Porque os estudantes gostam do mestre que está aprendendo, gostosamente, enquanto ensina. Gostam do homem que não seja livresco e rotineiro, e não lhes atoche, perpetuamente, o compêndio ou a sebenta. E Afrânio está sempre ruminando o que leu com poderosos sucos digestivos próprios; passa as noções pela fieira da realidade, extraindo o que nelas se contém de vida. Não é o livro, absolutamente, a sua força inspiradora: é o conhecimento direto das coisas e a longa meditação dos fenômenos. Não é um compilador. É um homem que sabe ler, e que tem autonomia mental, e originalidade.

Por isto numa época em que tudo, absolutamente tudo, talento, aptidões, imaginação e gosto, se escraviza à especialização, sua curiosidade ardente e infatigável (espécie de fome canina da inteligência) e conseqüente saber onímodo o põe a salvo desse mal da época. Dir-se-ia, antes, um daqueles cérebros universais da Renascença, ávidos de omni re scibili, quando os homens, ao devassarem o mundo, alargando-lhe as raias, sentiam a necessidade de ampliar, ao mesmo compasso, a capacidade de compreensão e a massa dos conhecimentos.

A mocidade, que adora essa sabedoria sem dogmatismo, enraizada na vida, capaz de resolver o mais intrincado problema histórico e da Literatura, ou de falar sobre violeiros, capadócios, quitutes e frutas da Bahia; essa sabedoria que quer eretas e não vergadas as colunas dorsais presta-lhe homenagem absolutamente inédita: impede que ele deixe a cátedra antes do fim do ano, quando aposentado, após 42 anos de serviço público e 35 de professorado, exigindo das autoridades superiores essa exceção única, que foi, para o Mestre, a paga de um longo e profundo amor.

Não conhece Afrânio quem pense que aposentadoria o fez parar. Ele sabe muito bem que a quietação é dificílima na ociosidade; e pensa, como Sêneca, que “o ócio sem as letras é morte é sepultura do homem vivo”. E a sua lida continua mais ativa e benemérita do que nunca.

Estou certo, senhores, de que é, ainda, como posto educativo, que Afrânio recebe, em 1910, sua entrada para a Academia. Esta, para ele, é posto cultural, em que trabalha pela Cultura do Brasil. É ele, durante largos anos, “o acadêmico para quem a Academia é o número um de suas preocupações”. Na sua presidência, em 1923, obtém, por intermédio de Alexandre Conty, que Poincaré e Millerand, então dirigindo a França, nos façam doação desse belo prédio, que desde então nos abriga e relembra a generosidade francesa. Nela, ainda, se inicia a magnífica Biblioteca de Cultura Nacional, inestimável serviço aos brasileiros, a que a justiça da Academia chamou Coleção Afrânio Peixoto, na qual não há livro que não traga prêmios ou notas de Afrânio. É da entrada para a Academia, que começa, verdadeiramente, a obra literária de Afrânio. Não como obrigação ou encomenda, mas porque, em Afrânio, tudo vem a tempo e a hora. Não há, com efeito, obra menos obrigada e artificial, e em que mais circule a seiva da vida. Agitam-se, nos ensaios, idéias e sentimentos da hora, num anseio de construção e aperfeiçoamento. Aparece, nos romances, a realidade de todo o Brasil, a do sertão e a da beira-mar, com suas gentes e paisagens, fazendo da obra de Afrânio precioso documentário de nossa História e Cultura. Neles traça o espírito de Afrânio, tão cheio dos mistérios, intuições e delicadezas da alma feminina, perfis de mulher que hão de apaixonar os homens de todos os tempos, como agora nos apaixonam, por mais que repitamos o inumano protesto da impassibilidade de Sully Prud’homme:

E sob o rijo arnês de minha Arte sagrada,
saberei contemplar a mulher mais amada,
como o trigal, a rosa, e o mar, e o firmamento.

Sendo dois, pelo menos, os gêneros literários de Afrânio, claro é que pelo menos dois hão de ser os seus estilos: O estilo dos romances, autos e loas, com os punhos de renda de Mr. Buffon, para o trato de alta sociedade com o leitor amável, ou com a leitora amável (porque Afrânio, como todo educador, sabe que a Mulher, que pôs o mundo a perder, é quem o pode salvar. Perdido em Eva, resgatado no Ave! – diz o meu Sousa de Macedo...). E o estilo dos ensaios e algumas das conferências, que é o saboroso estilo descosido e conversado de Montaigne: tel sur le papier qu’à la bouche, o qual exige a voz alta e a evocação do escritor, para se entender bem. Não seria, por certo, Afrânio quem tomasse como lema aquela fascinação da forma, que lhe sacrifica o pensamento, e tão bem traduzida no verso conhecido:

A tortura da Forma é o Calvário do Artista,
Em que o Esteta agoniza entre dores de morte.

Seu espírito realista, para o qual a Arte era instrumento e meio, não se entretinha em esculpir o cabo do martelo ou da enxada. Se, para educar o Brasil, deve, aqui ou ali, primar a Arte, que sempre seduziu e conduziu os povos, Afrânio escreve páginas, cujo primor é inexcedível. Mas se, de quando em quando, a multidão a educar dispensa favores, Afrânio deixa o Stradivarius, e pega a viola, ou o tantã. Porque o que ele quer não é a glória: é construir o Brasil.

Dois triênios seguidos, o manda a sua Bahia ao Parlamento, para o qual o destinavam o muito saber, a grande virtude, o extremado amor à sua terra e à sua gente. Sertanejo, viajado, educador, criminólogo, higienista, era o homem talhado para este cenário. Mas o filisteu, aquele que, na feliz observação de Schopenhauer, “desconhece as necessidades espirituais e vive com a maior seriedade, ocupado, só e só, com uma realidade, que não é realidade coisa nenhuma”, lança-lhe a pecha de romancista, como se esta sua superioridade o incapacitasse para as coisas da vida, e fosse o poder de imaginação uma torre de marfim em que se isola a impassibilidade subjetiva. Tais acusadores, pelo jeito, contestariam ao autor do “Navio Negreiro” e das “Vozes d’África”, ou ao de A Cabana do Pai Tomás o direito de apresentar e defender no Parlamento uma lei de libertação dos escravos. Afrânio vingou-se deles oferecendo e sustentando projetos de importância capital, um dos quais, convertido em lei que traz o seu nome, o nome do romancista...

Enquanto isto, o sábio, o romancista e o parlamentar, em que pese ao filisteu, é uma das afirmações mais decisivas de nossa cultura no estrangeiro. “Acaba de receber agora na Argentina”, escreve, em 1936, o seu grande discípulo Leonídio Ribeiro, “uma verdadeira consagração, tendo eu próprio logrado a fortuna de testemunhar o assombro e a admiração que ele causou, por toda a parte, com suas conferências e discursos, todos improvisados, mas nunca superficiais e sempre cheios de idéias, demonstrando, a cada passo, a sua grande cultura e capacidade de mestre, de orador e de homem de ciência”.

Na derradeira fase da vida, exaltam-se, na alma de Afrânio, dois antigos amores fundamentais: o amor a Portugal e o amor à Bahia, duas linhas convergentes em cujo vértice refulge o amor ao Brasil. Muito foi atacado, muito sofreu nos recessos do espírito, por conta desses dois amores. Mas, agora, que o batalhador já não empunha as armas, e jaz em terra, aqueles mesmos que o chamaram a contas, terão compreendido, em boa consciência, as verdadeiras fontes e os nobres impulsos desses dois amores. Seu amor a Portugal, “Pátria da sua Pátria”, do qual, como neto de Português, participo e participarei, sofra embora par ele a que por ele sofreu Afrânio, significa apenas que ele amava o Brasil, mas não um Brasil de herbário ou de museu, separado e esquecido de suas origens, e sim um Brasil sobre suas raízes, cada vez mais profundas e vivas. É, por isto, devoto de Portugal e dos Jesuítas, raízes mestras da nossa cultura.

Ouvi o que nos ensina Sérgio Buarque de Holanda, que, desde o nome, é insuspeito:

Nem o contato e a mistura com as raças aborígenes fizeram-nos tão diferentes dos nossos avós do além-mar como gostaríamos de o ser. No caso brasileiro, a verdade, por menos sedutora que possa parecer aos nossos patriotas, é que ainda nos associa à península Ibérica, e a Portugal especialmente, uma tradição longa e viva, bastante viva para nutrir até hoje uma alma comum, a despeito de tudo quanto nos separa. Podemos dizer que de lá nos veio a forma da nossa cultura: o resto foi matéria plástica, que se sujeitou, mal ou bem, a essa forma.

Quanto ao amor à Bahia que, nos últimos dias, lhe inspirou dois livros de tocante piedade filial, e chegou a parecer instinto de animal ferido em busca da querência, tomou aspecto tão exclusivista, que não sei se ele perdoaria que a sua Cadeira, a Cadeira de Castro Alves, saísse da mão da Bahia, onde há tanta gente digna dela, mais digna, por certo, do que o eleito da vossa generosidade. Mas é possível que ele perdoasse a escolha, ao saber que metade da minha alma me veio da Bahia; que a Bahia me deu uma das sinhás-moças, uma daquelas sinhás pequenas que, no dizer do mesmo Afrânio, são mais que rainhas, são a tradução nacional

Du rêve d’or de la chimère humaine.

De repente, naquela vida tão cheia e animada, tão necessitada de comunicação e movimento, faz-se a inércia, e o vácuo. Naquela vida tão venturosa, se implanta, definitivamente, a Dor.

A Dor, misericordiosa, veio interpor, entre o tumulto do mundo e a eternidade, alguns dias de meditação, para aproximar de Deus o espírito desta criatura eleita, que tantas virtudes destinam ao seio do Incriado, seu Criador. E parece que ela o vai preparando para quando chegar a Hora. Eu estou muito mais perto de Deus do que vocês pensam, disse ele à esposa, “certa madrugada em que um estranho repouso descera sobre aquele corpo retorcido de dores”.

Sou católico, senhores acadêmicos, embora vos declare como nas confissões públicas da Igreja primitiva, que o sou malissimamente. E sendo, de coração, católico, é esta hora a que sobre todas me interessa na vida de Afrânio.

É esta a hora em que o apaixonado, que tomou de assalto na terra quanto quis, poderá conquistar, chegando-se a Cristo apressado, com grande cuidado e desejo, o único bem, com que se não compadece mal algum, aquele em que concerne a união de todos os bens, e que por ser mantimento natural à alma, nos satisfaz de tudo, perdurando eternamente. Nosso Senhor Jesus Cristo ensinou que o apaixonado poderá fazer esta conquista suprema: “Já o Reino do Céu padece força, e os violentos o roubam” – está dito no Evangelho de São Mateus (XI-12).

Pode a Morte, agora, aproximar-se. Virão, com ela, os Santos que Afrânio sempre amou e exaltou na vida: São Bento, São Francisco, Santo Inácio, Santa Teresinha do Menino Jesus, e a minha Santa Bárbara, que ele, mais de uma vez, chamou sua, ensinando-me que ela é a santa desta hora, padroeira dos agonizantes.

Os que não conhecem a Morte, por não terem meditado sobre Ela, cuidam que se aproxima a escuridão e o nada. Mas não há maior engano. O que se aproxima, realmente, é uma iluminação, um clarão revelador, a luz final do conhecimento. Com a Morte, caem todos os véus, abatem-se as pesadas barreiras da carne, para o pleno domínio do espírito. Por isto, Ela é uma aurora, um arrebol. O poeta que mais de perto com Ela privou, que mais se enamorou dela, chegando, desgraçadamente, a antecipá-la, disse ser Ela um

verbo velado,
misterioso intérprete sagrado
das coisas invisíveis, muda e fria,
e afirmou, com razão, que

é, na sua mudez, mais retumbante
que o clamoroso mar, mais rutilante,
na sua noite, do que a luz do dia.

Quando esta “formosa Beatriz de mão gelada, mas única Beatriz consoladora” se acercou de Afrânio, com sua celeste coorte,

na mão de Deus, na sua mão direita
descansou, afinal, seu coração.