Casa do Saber
O Acadêmico João Ubaldo Ribeiro profere hoje, dia 14, na Casa do Saber, uma palestra informal. O mediador será o jornalista Rodrigo de Almeida, Diretor daquela Casa.
O Acadêmico João Ubaldo Ribeiro profere hoje, dia 14, na Casa do Saber, uma palestra informal. O mediador será o jornalista Rodrigo de Almeida, Diretor daquela Casa.
Desde que me entendo, ouço falar em reformas e as únicas que lembro ter visto efetivamente realizadas são as ortográficas. Já devo ter pegado umas quatro ou cinco e ainda encontrei muitos livros em orthographias extranhas, na bibliotheca de meu pae. Aprendi a ler no tempo em que a palavra "toda" se escrevia "tôda", para não ser confundida com o nome de uma tal ave, jamais vista por quem quer que seja. Jorge Amado perdeu a paciência, depois de fazer força para se adaptar a diversas ortografias. Uma vez, quando ele estava acabando de redigir um artigo ou prefácio, como sempre incentivando algum escritor novato, eu cheguei e ele me disse, datilografando as últimas palavras do texto, arrancando o papel da máquina e o entregando a mim:
Sempre que saio do Brasil, volto um pouco apreensivo. Faltam notícias lá fora e aqui as coisas mudam muito depressa – onde havia um cinema brota à noite uma igreja, onde se enxergava um político honesto pulula um meliante, o que ontem era a via correta vira contramão e assim por diante. A partir de certa idade, convém ser precavido, acabar de chegar em casa com calma, não ligar a televisão imediatamente e deixar para abrir os jornais depois de falar com alguns amigos. Eles saberiam contar jeitosamente qualquer novidade inquietante ou capaz de nos abalar a fé no futuro da nação.
Costuma-se pensar que artistas de modo geral, inclusive os escritores, são ricos. Volta e meia sai uma reportagem que diz quanto um astro de TV famoso ganha e daí se difunde a crença de que artista é rico, quando, na verdade, matar cachorro a grito é atividade das mais exercidas pela maioria deles, mundialmente. Os escritores aparecem em notícias sobre como um romancista antes desconhecido vendeu para Hollywood, por zilhões de dólares, seu premiado best-seller. Ai de nós – escritor, quando é pago, recebe entre cinco a doze por cento do preço final do livro. E, não só aqui como no mundo todo, se vira em jornalismo, no ensino, na publicidade e em outros campos, já que de livro mesmo poucos conseguem sobreviver e ainda menos ficar ricos.
-E aí, cara, pensei que você não vinha mais! E agora chega com essa cara de quem comeu e não gostou, é ressaca de carnaval?
Homem sempre teve medo de mulher, mas eu acho que no meu tempo tinha mais. As relações entre os sexos eram bem mais complicadas e cheias de normas e preceitos nem sempre coerentes e isso, junto com o medo, contribuía para uma formidolosa coleção de mitos e histórias sobre o eterno feminino – pois, naquela época, não só se falava no sexo frágil, como no eterno feminino. A história que mais provocava calafrios e pesadelos era a da broxada. Um certo amigo, cujo nome a caridade mandava esquecer, conseguira, depois de meses de trabalho insano, seduzir uma certa senhora e levá-la a um encontro numa garçonnière, pois que na época não havia motéis, os hotéis exigiam certidão de casamento para casais e os bem de vida mantinham apartamentos para seus encontros galantes.
Saio de férias hoje e, se tudo correr como previsto, só volto a aparecer por aqui no dia 20 de fevereiro. Ou então nunca mais, se desta feita eu conseguir que Vavá Major me ensine a não fazer nada. Major era peixeiro com banca estabelecida no Mercado, mas, assim que completou o tempo mínimo, requereu aposentadoria, vendeu a banca e voltou para casa, no Alto de Santo Antônio, onde agora se dedica a não fazer nada. A primeira vez em que o vi depois dessa mudança foi numa visita que ele me fez. Não, não era verdade o que diziam, não era verdade que ele não fizesse mais absolutamente nada. Naquela hora mesmo, estava me visitando, isso não era fazer alguma coisa?
Não lembro se já tive a oportunidade de mencionar aqui determinados fenômenos, no campo da sexualidade e da reprodução, restritos, pelo que se sabe, à ilha de Itaparica. Devo ter dito alguma coisa, mas é tema sempre merecedor de atenção. Por exemplo, uma visita ao Mercado Municipal Santa Luzia, movimentado centro do comércio local, poderá, se bem conduzida, render preciosas informações sobre como certos criadores de galos de briga do Alto das Pombas e da Misericórdia, depois de afincadas tentativas, cruzaram galinhas de briga com urubus, obtendo linhagens excepcionais. Nunca consegui ver um desses híbridos, mas não vou duvidar da palavra de meus conterrâneos.
Não sei bem a que se pode atribuir a crescente moda de intervir na vida pessoal do cidadão brasileiro. Inclino-me a acreditar que isso se deve à falta do que fazer de um número cada vez maior de burocratas e tecnocratas. Todos eles detêm certezas sobre tudo o que julgam ser de sua alçada. Em matérias “técnicas”, não há espaço para posições divergentes. Afinal, a técnica provém da ciência e a ciência fornece certezas. E essas certezas são tão poderosas que devem sobrepor-se até mesmo aos valores de indivíduos ou coletividades. O conceito de normalidade, tão enganoso não só científica como filosoficamente, parece para elas assente e inequívoco.
Na semana passada, quando falei nos participantes do mercado de drogas, houve quem observasse que quase deixei de lado o consumidor, tido corretamente como o principal elemento, pois sem ele não haveria nem produção nem comércio. É ele a razão de ser do mercado. Ou seja, acabar com a demanda acabaria com a oferta. Certo, certíssimo, mas quem acaba com a demanda? Esse tipo de conversa termina parecendo, para algumas pessoas, que é uma defesa do consumo, mas não é. É uma constatação, tão despida de valores quanto possível. Não digo nem, o que é verdade sob outros ângulos, que sou contra o consumo. Aqui, agora, pretendo somente vê-lo.
Ao que parece, o ser humano (quase escrevo “serumano”, neologismo que, quem sabe, pode vir a ser adotado, pois outro dia ouvi na TV que um casal era “dois serumanos”) precisa, pelo menos de vez em quando, alterar sua percepção da chamada realidade, mexer com a própria mente e as emoções. Prisioneiro de seus cinco limitadíssimos sentidos, não consegue perceber, em condições normais, aquilo que suspeita ou sabe existir além deles. E quer sair da prisão, quer sensações que ordinariamente não estão a seu alcance. Outra necessidade, que corre paralela, é alterar o comportamento habitual e quem for tímido tornar-se extrovertido, quem for melancólico tornar-se alegre, a moça que hesita em dar resolver dar e assim por diante.
Publicada em 29/03/2011
Publicada em 21/02/2011
Publicada em 09/12/2010 (atualizada em 10/12/2010)