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Sentimentos literários

 

Nélida Piñon lança livro de ensaios e anuncia volume de memórias para o ano que vem. Autora de romances reconhecidos internacionalmente, ela confessa que aprendeu a amar com a literatura

Carlos Herculano Lopes

Primeira mulher a presidir a Academia Brasileira de Letras (ABL), autora de romances como A república dos sonhos e A doce canção de Caetana, carioca filha de espanhóis, a escritora Nélida Piñon lançou recentemente a coletânea de ensaios Aprendiz de Homero. Nele, fala de seus autores preferidos, de suas leituras, dos livros que têm poder de nos transformar, “de fazer de nós seres humanos melhores”. Declara também seu amor a Machado de Assis, que considera o maior escritor brasileiro. Mas diz que ele, de uns tempos para cá, “foi injustamente excluído do rol dos maiores intérpretes do Brasil”. Os escritos de Nélida são sempre produto de uma longa e cuidadosa leitura e deixam entrever o diálogo da escritora com criadores de outras literaturas e épocas. Nélida confessa que tem a mania de escrever e ir deixando nas gavetas. Não foi diferente com o novo livro: “Vinha escrevendo com o seguinte propósito: um dia vou organizar meus ensaios, e isso aconteceu no ano passado”, conta. Cheia de planos, Nélida fala também do seu volume de memórias, Coração andarilho, que será publicado no ano que vem. E garante: toda memória é alimentada pela invenção.

Quais foram os seus grandes encantamentos literários?

No ensaio “A epopéia da leitora Nélida” eu demonstro a minha simplicidade em relação aos autores, além da minha crença em todo tipo de narrativa, desde que me encante. Por exemplo: eu falo das maravilhas de Os três mosqueteiros, de Alexandre Dumas; de Monteiro Lobato; enfim, de escritores que são modestos em relação ao grande panteão.

Os livros de Alexandre Dumas e de Monteiro Lobato podem ser considerados leituras de formação?

Ah!, sim, no meu caso, foram de formação da minha humanidade. Acho que a leitura, quando nos aventuramos por ela, como foi o meu caso em relação a esses autores, a gente não sente só prazer. Mas adquire conhecimento que entra pela vida do outro. O amor não nos dá essa propriedade, porque ele é um só, quando você o está vivendo, com uma única pessoa. A leitura, ao contrário, nos dá a propriedade de enveredar pela vida de toda uma coletividade, inclusive, cosmopolita, além da sua, provinciana. A leitura me faz crer que eu posso ser audaciosa, exigir tudo do mundo, pensar tudo o que eu quero e até atrever-me a ser a escritora que eu aspiro a ser. Pois isso é possível. Se outros foram, por que também eu não posso ser? Em suma, a leitura me ensinou que nada que vem do humano é estranho.

Pode dar um exemplo?

Quando jovem, ainda uma mulher interessante, eu costumava fazer um teste: entrava em algum boteco, me encostava no balcão, pedia alguma coisa e puxava conversa com algum homem que estivesse ao meu lado. Sempre gostei muito de conversar com estranhos, ouvir histórias diversas da minha. No decorrer do papo, vinha então a prova: eu dava um jeito de tocar no braço desse homem para ver a sua reação, se ele tinha interpretado o meu gesto de uma forma diferente, como uma espécie de cantada. Isso nunca aconteceu sem que eu quisesse, e aprendi esse fato com anos de leitura. A ambigüidade humana, que está nos livros, me ensinou que existe um código de comunicação e que esse me permitia, por exemplo, poder tocar naquele homem, como eu fazia, sem que ele pensasse que eu o estivesse seduzindo.

Isso aconteceu muitas vezes?

Várias. Mas aquilo era só um teste, uma espécie de jogo que eu fazia, pois também sou uma mulher de carinho. Gosto de ser beijada com delicadeza. Sou uma mulher que nunca teve medo do corpo do outro. A literatura me ensinou o suor, a amar, a sentir o cheiro do outro.

Você acredita mesmo que a leitura, a palavra tem esse poder transformador?

Claro que sim. A leitura é uma mestra. É uma constituição viva. Dom Quixote, por exemplo, é uma constituição dos homens. Tudo está lá: é a teologia dos seres. O grande poder transformador.

Quais outros autores têm esse poder?

No Brasil, Machado de Assis e Joaquim Nabuco, no que se refere a uma certa brasilidade. Outro dia, em um discurso, eu advoguei que Machado de Assis, ultimamente, tem sido injustiçado, excluído do rol dos maiores intérpretes do Brasil. A intelectualidade deste país, eu vou dizer, ainda não se deu conta de que a literatura, a invenção arrola os bens do mundo. Exuma os que talvez não interessem e restabelece as rotas. É uma coisa extraordinária. Por que, então, que Machado de Assis está excluído? Como não acreditar que ele é um intérprete excepcional da identidade brasileira?

Você vê algum escritor que se aparelhe a Machado na literatura brasileira?

Ninguém. Nenhum.

Neste ano dos dois centenários: 100 anos da morte de Machado e 100 do nascimento de Guimarães Rosa, que paralelo você traçaria entre os dois?

Agora eu não faria. Não teria sentido, nem seria justo. Mas, para mim, Machado é o mais completo dos escritores brasileiros. De Guimarães, a gente fala outro dia. Vamos nos ater aqui a Machado, que, no Aprendiz de Homero, está presente em dois longos ensaios.

Deixando então os dois gigantes para outra vez, vamos falar do seu livro de memórias, Coração andarilho?

Ele começa com o meu nascimento e prossegue nos contínuos rituais de passagem de minha vida até uma certa época. Eu diria que é uma grande travessia, na qual conto como vai se dando a minha formação, a minha arqueologia privada. Faço um grande passeio pela infância, pela minha família. E diferentemente de outros textos meus, nos quais sempre falei muito da minha mãe, agora me detenho também na figura do meu pai – pois eu devia a isso a ele –, que morreu muito cedo. Além do mais, papai exigiu isso, cobrou reconhecimento público, e eu paguei. As grandes figuras masculinas da minha família, que foram o meu avô Daniel e o meu pai, Lino, agora estão presentes nos meus escritos. Depois, há um grande hiato com a segunda parte do livro, que se chama “Santa Fé e outras aldeias”, prosseguindo com às minhas viagens. Santa Fé, é uma aldeia da Catalunha, na Espanha, aonde vou muito para escrever. Depois, falo também de Paris e de todas as outras cidades que me fizeram crescer.

Quantos anos você tinha quando o seu pai morreu?

Vinte e dois. Essa idade, hoje, significa muito mais do que quando eu a tinha. Quando ele morreu, eu era uma menina. Hoje consigo vislumbrar: meu pai teve pressentimentos do meu futuro. Foi ele quem me ensinou a ler Machado de Assis. Com ele aprendi a prática contínua da galanteria, que eu cultivo muito. Só para você ter uma idéia, depois que fiz 15 anos, todos os domingos ele me mandava rosas.

Escrever memórias é se desnudar?

A minha noção de memórias ampara-se na invenção. Não uma invenção às tontas, como um certo descontrole emocional. Nada disso. Acontece é que eu acho impossível compilar certos detalhes da vida com a total regência da veracidade, porque isso não existe. O que predomina na vida é a versão, é o que eu estou vendo naquele momento. Em Coração andarilho conto as coisas que foram importantes para mim, as que se destacaram. Mas também me protejo. Toda memória, no entanto, é uma aliada da invenção, porque não existe fonte fidedigna. Isso é impossível. Se vou contar minha história, além da verdade, tenho de inventar. Dar a versão, pois uma coisa não caminha sem a outra.

O Estado de Minas (MG) 15/7/2008

15/07/2008 - Atualizada em 14/07/2008