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ABL promove recital "Poesia na Academia", com as atrizes Beth Goulart e Maitê Proença

 

A Academia Brasileira de Letras abriu sua série de eventos culturais públicos de 2023 com o recital "Poesia na Academia", na terça-feira, dia 7 de março, às 16h, no Teatro R. Magalhães Jr.

O recital, com as atrizes Beth Goulart e Maitê Proença, apresentou poemas de 11 acadêmicos contemporâneos e do fundador da Casa, Machado de Assis.

Confira o programa:

Alberto da Costa e Silva: Soneto de Natal –Soneto – O amor aos 60

Ana Maria Machado: Gala solar – Dúvida – Maré baixa

Antonio Carlos Secchin: O galo gago

Antonio Cicero: Brasileiro profundo – Guardar – Ícaro

Carlos Nejar: A pedra de Jacó – Judas Iscariotes – Tomé ou a incredulidade

Domício Proença Filho: Pandemia – Quarentena – Encontro

Geraldo Carneiro: O tal total – Ilíada – O elogio dos soníferos

Geraldo Holanda Cavalcanti: Andante molto tormentato – O homem reto – O inimigo do povo

Gilberto Gil: Metáfora – Não tenho medo da morte – Se eu quiser falar com Deus

Machado de Assis: Uma criatura – Soneto de natal – A Carolina

Marco Lucchesi: Clio (fragmento)

Paulo Coelho: “Minha dança” – “Lutar contra certas coisas” – “Grande parte”

 

Serviço

Data: 7 de março

Horário: 16h

Local: Teatro R. Magalhães Jr.

 

Leias as poesias recitadas


1) “Soneto de Natal”
 

Como esperar que o dia pequenino,
com a mesa, a cama, o copo, as cousas simples,
desate em nossas mãos os lenços cheios
de canções e trigais e ninfas tristes?

Menino já não sou. Como de novo
conversar com os pássaros, os peixes,
invejar o galope dos cavalos
e voltar a sentir os velhos êxtases?

A linguagem dos grãos, do manso pêssego,
a bem-amada ensina e novamente
sinto em mim o odor de esterco e leite

dos currais onde a infância tange as reses,
sorve a manhã e permanece neste
cantor da relva mínima e dos bois.

1) “Gala solar”
 

calor
coral
colar de pura marola
no alvo colo da praia
decote sem gola
nas costas de gala.

rola
roda
em baile de aberta sala
e toda a baía enrola
na luz que estala
solar

2) ”Dúvida”
 

Água-viva
quando morre
fica sendo
água-morta?
Ou água só?

3) “Maré baixa”
 

Onde anda a onda
se a lua rotunda
se acende redonda
se brilha precisa
na calma tão lisa
da pele do mar?

Em que fenda se finda?
Em que rede se enreda?
Em que sonda se afunda?
Onde trama sua renda
de espuma tão fina
de puro luar?

1) “O galo gago”

Era um galo gago, por isso
a Noite não se despedia:
ficava num gargalo,
enquanto o canto não surgia.

Os bichos, para ajudá-lo,
fazem logo mutirão:
zurros, miados e mugidos
começam a soar, em vão.

Foi tanta zoeira
que a Noite tapou o ouvido:
“Preciso dormir sem demora,
desse jeito não consigo.

Para que possa chegar o Sol,
e o escuro ir para o ralo,
nem galinha, nem bem-te-vi:
eu quero é a voz de um galo”.

Disse uma antiga coruja
dirigindo-se a todo o bando:
“Ou ele começa a cantar
ou acaba em fogo brando.
Parece que um bom susto
acaba com a gagueira.
Quando ele encarar a panela
vai cantar a vida inteira” .

“Não estou de acordo”,
protestou o bicho da goiaba.
“Se ele canta o dia todo,
aí é o dia que não acaba!
E pra que assustar o galo?
Vamos chamá-lo mais tarde.
Quem sabe com nosso aplauso
ele vira um cantor de verdade”.

O galo andava estranho,
envergonhado e jururu.
Já pensava em fugir de fininho,
disfarçado de urubu.

A Noite, impaciente,
bocejava no infinito:
“Agora topo qualquer canto,
até de um periquito.
Garanto que me recolho,
digo adeus e vou embora.
Mas se o Sol virá depois...
isso já é outra história”.

Toda a mata matutou:
se a Noite vai e o Sol não vem,
qual seria a cor de um céu
habitado por ninguém?

De repente a tartaruga
teve uma ideia brilhante.
Chamou o galo e outro bicho
pra conversar um instante.
Nada de periquito
para cantar ao Sol!
Bastava o papagaio soltar
um cocoricó bemol.

Dito – e efeito:
o papagaio cocoricou.
Um feixe de luz intensa,
livre, límpida, logo jorrou.

A bicharada em peso
pôs-se também a cantar.
Era a voz do boi, da araponga,
junto ao som do sabiá.
Até o galo, quase sem gaguejar,
uniu-se àquela folia,
e di-disse que o melhor remédio
não era o susto, era a alegria.

Acontecia uma festa clara,
que reuniu todo o povo:
o elefante dançava com a pulga,
a raposa bailava com o corvo.
Chegando de Guarapari,
o siri, de tão contente,
esqueceu o seu passado,
e passou a andar pra frente.

A cigarra, maravilhada,
falou à formiga, em cicio profundo:
“Uma canção também é trabalho,
ela também move o mundo”.

Mas, ao ver que até eu cantava
de carona na vinda da aurora,
o papagaio me mostrou o bico
e me pediu para eu dar o fora:

“Hoje a festa é só dos bichos,
nosso esforço valeu a pena.
Você, seu bicão, saia logo,
e vá cantar noutro poema!”

1) “Brasileiro profundo”

Um brasileiro profundo
É o que sou.
Tenho em mim todas as raças
E nenhuma.
Tenho em mim todos os sexos
E nenhum.
Tenho em mim todos os deuses
E nenhum.

. 2) “Guardar”

Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la. Em cofre não se guarda coisa alguma. Em cofre perde-se a coisa à vista.
Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado.
Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por ela, isto é, velar por ela, isto é, estar acordado por ela, isto é, estar por ela ou ser por ela.
Por isso melhor se guarda o voo de um pássaro Do que pássaros sem voos.
Por isso se escreve, por isso se diz, por isso se publica, por isso se declara e declama um poema:
Para guardá-lo:
Para que ele, por sua vez, guarde o que guarda:
Guarde o que quer que guarde um poema:
Por isso o lance do poema:
Por guardar-se o que se quer guardar.
3) “Ícaro”

Buscando as profundezas do céu
conheceu Ícaro as do mar

Adeus poeira olímpica
grãos da Líbia
barcos de Chipre

Adeus riquezas de Átalo
vinhos do Mássico
coroas de louro
flautas e liras

Adeus cabeça nas estrelas
adeus amigos
mulheres
efebos
adeus sol:
ouro algum permanece.

1) “A pedra de Jacó”

Dai-me uma pedra,
onde pousar a cabeça.
E se não for como a de
Jacó, que seja na dureza
do pó. Mas se Jacó eu sou,
que anjos subam
e desçam como escada
sobre a pedra. E ali
me esqueça.

De Labão a terra
abandonei ,com Lia,
Raquel, filhos, ovelhas.
E – pedra vi – contra o Anjo
lutei até um amanhecer,
que não envelha. Lutei
no riacho de Jaboque
e tive deslocada
da coxa esquerda
a pedra. Nunca mais andei
sob vontade solta. Outro
me levava. Sou Israel
e a Deus combati.
Abracei o inimigo,
Esaú , meu irmão.
E da progenitura
a graça eu tive.

Dai-me uma pedra,
onde a luz reside.
Que o humano pesa
e não posso voar.
Dai-me uma pedra:
que pouse nela
a palavra. Dai-me
a palavra , onde
me assente, como
em pedra viva.
E a dor da espera,
a guerra de o tempo
não passar.

Dai-me uma pedra,
onde a noite comigo
se deite, com lascas
de estrelas na fresta.
Dai-me a pedra do soluço
para chorar, que sou
Jacó, com o peso
de não poder voar.

2) “Judas Iscariotes”

Desta árvore
a humanidade pende
calada.
Pende a teia
e sua larva.
Pende a negra aranha
dos dinheiros.
Pende o beijo.
Pende o escárnio,
a delação
como um broto
esvaído no ramo.
Pende a vida
que escolhi
e está suspensa
entre os dias e mim.
E o amor perenemente
penso
neste recado a ti:
Também sou preso
na mesma cruz.
Mas não ressuscitei.

3) “Tomé ou a incredulidade”

Tomé pôs os dois dedos
junto à chaga, ao lado
esquerdo, na clareira
ardendo, era preciso.
Pôs os dois dedos errantes
pelo interior da noite,
na tristeza de quem não tinha
onde pousar a cabeça.

Pôs os dois dedos
na macia madrugada,
no Sete-Estrelo.
Os dedos nos séculos,
no movimento das marés
e da lua, carta
das esferas.

Dois dedos como dois
corações sobre a figueira:
sentia a fundura do universo,
o entranhado amor.
Não era o menino? Não era
o que espreitava pela fresta
a luz brotando?
Tomé compreendeu.
A luz é poliglota.
Acreditou. Viu, tocou
o paraíso.

1) “Pandemia”

Um algoz invisível
e coroado
expõe sem piedade
escancara
o efêmero
da existência
e o limite fatal da finitude.
O absconso inimigo
desvela a cada dia
a fragilidade
da humana condição
e, abrigado em águas
microscópicas,
sorri dos negativistas
e sussurra
nos sintomas do silêncio:
“lembra-te de que és pó
E ao pó retornarás...”

No horizonte
matizes pretos
e amarelos
desenham esboços
estranhos,
etérea e metafórica
montaria
E seus encapuzados
Cavaleiros.

Isolado
Na angústia
Do medo
E da incerteza
o ser humano
repassa o curso fatal
do rio navegado
e aguarda, impotente,
do milagre da Ciência
a misericórdia
dos inescrutáveis
desígnios
de Deus.

2) “Quarentena”

Horas mornas
densas
a tarde
cai lentamente
do alto dos
edifícios.

Na escureza
Da paisagem,
luzes recém-nascidas
indiciam
indiferentes
que há vida
nas casas
ensombrecidas
de silêncios
amedrontados.
No deserto
das ruas e avenidas
a vida
estaciona.

E no entanto,
segue
nas telas da tevê
nos aparelhos
eletrônicos
carente
de comunicação
de convívio
de alegria.

Nas águas frias
do tempo
lento
indiferente
navegam solidões
sofrências
depressões
angústias
e os lutos absurdos.
Banaliza-se a morte
A dor coletiva anestesiada
Pelo opioide dos números.

A cidade
e a gente
sonham
desesperadamente
o amanhecer
do dia novo.

No alto,
longe,
os Braços
abertos e silentes,
o Redentor dos Homens
mantém acesa
a rememória
da Cruz da Esperança.
O Criador, em sua misericórdia,
Ainda uma vez
Adverte paciente a Criatura.

3) “Encontro”

Prontos, um para o outro.
Como duas mãos que se aproximam
Abertas e alertas
Os dedos sem conflito
Ou farpas pontiagudas

Duas mãos que se abraçam duradouras
E se fundem num laço inarredável
Para além de arestas e falésias,
Seguras, eternas, carregadas de ternura.

1) “o tal total”

o amor é o tal total que move o mundo
a tal totalidade tautológica,
o como somos: nossos cromossomos
nos quais nunca se pertenceu ao nada:
só pertencemos ao tudo total
que nos absorve e sorve as nossas águas
e as nossas mágoas ficam revoando
como se revoltadas ao princípio,
àquele principício originário
onde era Orfeu, onde era Prometeu,
e continua sendo sempre lá
o cais, o never more, o nunca mais,
o tal do és pó e ao pó retornarás.

2) “Ilíada”

nunca andei diante dos muros
de Tróia
a não ser como parte do pensamento
de Zeus, que jamais dorme.
amei no entanto uma mulher que foi
morar do outro lado do Oceano
por quem chorei uns dois mediterrâneos
embora fosse um choro sem lágrimas.

não conheço a alegria do regresso.
meu coração perdeu todas as guerras.
meus navios partiram para nunca.
mas confio que os deuses são benignos
e os meus adeuses formam a cidade
em que ancorei meu barco:
e fico aqui na minha ilha-Ílion
enquanto eles desfilam em triunfo.

3) “o elogio dos soníferos”

soníferos eu lanço contra as feras
que me devoram a solidez do sono.
a solidão em si não me apavora.
os outros são o inferno, o purgatório
e às vezes são também o paraíso.
não sei do inverno que virá ou não
virá, ainda não formei juízo.
aliás, juízo sempre me faltou
e há de faltar, espero, até a morte,
esse capítulo da história natural,
contra o qual não farei rebelião.
amparo metafísico? não tenho.
invejo o céu, a dança das esferas,
morro de inveja do Ptolomeu,
vagando a salvo nas cosmologias
com Deus no centro, o resto ao seu redor.
não tenho centro, cetro ou direção.
a mim só não me falta coração

1) “Andante molto tormentato”

Vivo à beira da queda
por um nada me abismo
Um raio de sol me turba
uma frase de Haydn
um som de acordeão
ou a moça que passa de bicicleta
no viaduto por cima de mim
fazendo-me mais só
no silêncio do meu carro fechado
de onde espio o mundo.

2) “O homem reto”

A pretexto de sábio
covarde escolho
o caminho do aplauso
Com o riso falso
mascaro o grito
já entorpecido
Morno atravesso
Os anos prescritos
Sem o gosto novo
do amor incontido
Um outro fabrico
mais real que o morto
que comigo vive
sepulto e fictício

3) “O inimigo do povo”

Talvez tenha esperado algum dia
roçar o humano nas calçadas
ouvir convites, rir em companhia
dividir o suor, a laranjada
amar a espécie, ser droit na vida
Já de tais esperanças me hei curado
Me fizeram de culpas e esquivanças
e o prazer só sinto se medido
e se com outro somente partilhado
no silêncio do que é subentendido

1) “Metáfora”

Uma lata existe para conter algo
Mas quando o poeta diz: lata
Pode estar querendo dizer o incontível

Uma meta existe para ser um alvo
Mas quando o poeta diz: meta
Pode estar querendo dizer o inatingívelv Por isso, não se meta a exigir do poeta
Que determine o conteúdo em sua lata
Na lata do poeta tudo, nada cabe
Pois ao poeta cabe fazer
Com que na lata venha a caber
O incabível

Deixe a meta do poeta, não discuta
Deixe a sua meta fora da disputa
Meta dentro e fora, lata absoluta
Deixe-a simplesmente metáfora

2) “Não tenho medo da morte”

Não tenho medo da morte
Mas sim medo de morrer
Qual seria a diferença
Você há de perguntar
É que a morte já é depois
Que eu deixar de respirar
Morrer ainda é aqui
Na vida, no Sol, no ar
Ainda pode haver dor
Ou vontade de mijar

A morte já é depois
Já não haverá ninguém
Como eu aqui agora
Pensando sobre o além
Já não haverá o além
O além já será então
Não terei pé nem cabeça
Nem fígado, nem pulmão
Como poderei ter medo
Se não terei coração?

Não tenho medo da morte
Mas medo de morrer, sim
A morte é depois de mim
Mas quem vai morrer sou eu
Derradeiro ato meu
E eu terei de estar presente
Assim como um presidente
Dando posse ao sucessor
Terei de morrer vivendo
Sabendo que já me vou

Aí nesse instante, então
Sentirei quem sabe um choque
Um piripaque, um baque
Um calafrio ou um toque
Coisas naturais da vida
Como comer, caminhar
Morrer de morte matada
Morrer de morte morrida
Quem sabe eu sinta saudade
Como em qualquer despedida

3) “Se eu quiser falar com Deus”

Se eu quiser falar com Deus
Tenho que ficar a sós
Tenho que apagar a luz
Tenho que calar a voz
Tenho que encontrar a paz
Tenho que folgar os nós
Dos sapatos, da gravata
Dos desejos, dos receios

Tenho que esquecer a data
Tenho que perder a conta
Tenho que ter mãos vazias
Ter a alma e o corpo nus

Se eu quiser falar com Deus
Tenho que aceitar a dor
Tenho que comer o pão
Que o diabo amassou

Tenho que virar um cão
Tenho que lamber o chão
Dos palácios, dos castelos
Suntuosos do meu sonho

Tenho que me ver tristonho
Tenho que me achar medonho
E apesar de um mal tamanho
Alegrar meu coração

Se eu quiser falar com Deus
Tenho que me aventurar
Tenho que subir aos céus
Sem cordas pra segurar

Tenho que dizer adeus
Dar as costas, caminhar
Decidido, pela estrada
Que, ao findar, vai dar em nada

Nada, nada, nada, nada
Nada, nada, nada, nada
Nada, nada, nada, nada
Do que eu pensava encontrar

1) “Uma criatura”

Sei de uma criatura antiga e formidável,
Que a si mesma devora os membros e as entranhas,
Com a sofreguidão da fome insaciável.

Habita juntamente os vales e as montanhas;
E no mar, que se rasga, à maneira do abismo,
Espreguiça-se toda em convulsões estranhas.

Traz impresso na fronte o obscuro despotismo;
Cada olhar que despede, acerbo e mavioso,
Parece uma expansão de amor e egoísmo.

Friamente contempla o desespero e o gozo,
Gosta do colibri, como gosta do verme,
E cinge ao coração o belo e o monstruoso.

Para ela o chacal é, como a rola, inerme;
E caminha na terra imperturbável, como
Pelo vasto areal um vasto paquiderme.

Na árvore que rebenta o seu primeiro gomo
Vem a folha, que lento e lento se desdobra,
Depois a flor, depois o suspirado pomo.

Pois essa criatura está em toda a obra:
Cresta o seio da flor e corrompe-lhe o fruto,
E é nesse destruir que as suas forças dobra.

Ama de igual amor o poluto e o impoluto;
Começa e recomeça uma perpétua lida;
E sorrindo obedece ao divino estatuto.

Tu dirás que é a morte; eu direi que é a vida.

2) “Soneto de Natal”

Um homem, — era aquela noite amiga,
Noite cristã, berço do Nazareno, —
Ao relembrar os dias de pequeno,
E a viva dança, e a lépida cantiga,

Quis transportar ao verso doce e ameno
As sensações da sua idade antiga,
Naquela mesma velha noite amiga,
Noite cristã, berço do Nazareno.

Escolheu o soneto . . . A folha branca
Pede-lhe a inspiração; mas, frouxa e manca,
A pena não acode ao gesto seu.

E, em vão lutando contra o metro adverso,
Só lhe saiu este pequeno verso:
"Mudaria o Natal ou mudei eu?"

3) “A Carolina”

Querida, ao pé do leito derradeiro
Em que descansas dessa longa vida,
Aqui venho e virei, pobre querida,
Trazer-te o coração do companheiro.

Pulsa-lhe aquele afeto verdadeiro
Que, a despeito de toda a humana lida,
Fez a nossa existência apetecida
E num recanto pôs um mundo inteiro.

Trago-te flores, - restos arrancados
Da terra que nos viu passar unidos
E ora mortos nos deixa e separados.

Que eu, se tenho nos olhos malferidos
Pensamentos de vida formulados,
São pensamentos idos e vividos.

1) “Clio” (fragmento)

Passar de céu
a céu
migrar de pele
a pele
saltar de sonho
a sonho

Um fio de ouro
e sangue
me desvela
a iminência
de algo
que não sei

Breve longo
raso

fundo

 

abismo

 

vago
da palavra
mundo
Meu pensamento
é um porto
de conjuras e naufrágios

No imo
das subidas
profundezas
agarro-me
aos cabelos
dos sentidos

Um torvelinho
voraz
e veloz se abate
nos veios de mim
Perdidas
no caminho
para as Índias
passam
as naus
desertas
pela noite escura:
afogam-se
oficiais
corsários
capelães
Nas ondas
frias
desse mar
sem fundo
com seu colar
de verdes
algas
surge
o espectro
do rei de Portugal
e sorve
como a noite
o fundo vago
do não ser
Bebo
o silêncio
da lua
a pele
e seus apelos
de pedra e chama
e brasa

Bebo
a insônia
dos gatos e a fúria
dos deuses que se apressam
do ser para o não ser
Vogo nas águas do golfo
da infância por onde
mil línguas
de fogo se agasalham
em seus remansos
ilhas e gamboas

Como chegar
ao tempo-quando
de todos
os meus ondes?

O capitão-mor
das analogias de el-rei
sabe como são falhos
e precários
agulhas portulanos esmeraldos

e como não
traduzem
onde
e quando
os marcos
e fronteiras desse império

1) “Minha dança...”

Minha dança, minha bebida e meu canto são o colchão onde minha alma
repousará, quando voltar ao mundo dos espíritos”, diz um sábio indonésio.
Quem ler os evangelhos irá reparar que quase a totalidade dos ensinamentos de Jesus aconteceu em duas circunstâncias: enquanto ele viajava ou em torno de uma mesa.
Nada de templos. Nada de lugares escolhidos. Nada de práticas sofisticadas e difíceis. Andando. E comendo. Algo que fazemos todos os dias de nossas vidas - e, por isso mesmo, não damos nenhum valor.
Pensamos que as coisas sagradas são tarefas para os gigantes da fé e da vontade.
Achamos que aquilo que a gente faz é pobre demais para ser aceito com alegria por Deus.
Deus é amor. Mas - além disso - Deus é humor.

2) “Lutar contra certas coisas”
Lutar contra certas coisas que só passam com o tempo é desperdiçar sua energia.
Uma curtíssima história chinesa ilustra bem o que quero dizer: No meio do campo, começou a chover. As pessoas corriam em busca de abrigo, exceto um homem, que continuava a andar lentamente.
“Por que você não está correndo?”, perguntou alguém.
“Porque também está chovendo na minha frente”, foi a resposta.

3) “Grande parte”

Grande parte das civilizações primitivas costumava enterrar seus mortos na posição fetal. “Ele está nascendo para uma outra vida, de modo que vamos colocá-lo na mesma posição que veio para este mundo”, diziam.
Para estas civilizações – em constante contato com o milagre da transformação – a morte era apenas mais um passo no longo caminho do Universo.
Aos poucos, fomos perdendo a suave visão da morte. Mas não importa o que pensamos, o que fazemos, ou em que acreditamos: queiramos ou não, vamos todos morrer um dia. Então, é melhor fazer como os velhos índios iaqui: usar a morte como conselheira. Perguntar sempre: “já que vou morrer, o que devo fazer agora?”.

15/02/2023