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Credibilidade em jogo

 

Como diz um velho ditado, até um relógio parado está certo duas vezes ao dia. Assim também, até um Congresso esclerosado pelo fisiologismo ou patrimonialismo pode estar certo em algum momento. É o caso da proposta negociada pelos presidentes da Câmara, Hugo Motta, e do Senado, Davi Alcolumbre, para equilibrar as penas dos indiciados na tentativa de golpe de 2023, reduzindo as dos “bagrinhos” e, quem sabe, aumentando as dos líderes.

Não é razoável que a imensa maioria de meros “inocentes úteis” recebam as mesmas penas e sejam acusados dos mesmos crimes que o ex-presidente Jair Bolsonaro e seus asseclas, militares ou civis. Mesmo que se entenda que ali não havia inocentes, não eram os financiadores e estrategistas que comandaram a depredação dos prédios públicos, mas uma “massa de manobra” incentivada a tal vandalismo pelos verdadeiros “estrategistas”, muitos deles infiltrados na multidão para facilitar a invasão.

Quem teve a ideia de usar as grades como escadas para entrar no prédio do Congresso? Várias táticas de guerrilha foram empregadas, naturalmente instruídas por profissionais misturados à multidão. O problema com esse Congresso é que, ao mesmo tempo que promove uma mudança de bom senso, também aprova uma alteração na legislação protegendo a imunidade parlamentar para tentar salvar Bolsonaro e demais envolvidos das punições que merecem.

Mesmo sem ser parlamentares, esses militares e o próprio ex-presidente tentam pegar carona na alteração para se livrar do julgamento. Mais ainda, nem mesmo acredito que a lei proposta tenha sido feita para proteger o deputado federal Alexandre Ramagem, na época do golpe chefe da Abin. A intenção sempre foi salvar Bolsonaro, como se com isso conseguissem que ele pudesse se candidatar à eleição presidencial do próximo ano.

Além de ser uma interpretação “teratológica”, como nossos jurisconsultos supremos gostam de classificar as propostas absurdas que fogem à lógica jurídica, Bolsonaro está inelegível por outros crimes, que não os da tentativa de golpe. O Tribunal Superior Eleitoral o tirou do páreo por abuso do poder político e econômico de seu cargo de presidente da República na campanha que promoveu contra as urnas eletrônicas, em particular a reunião com embaixadores no Palácio da Alvorada meses antes do primeiro turno. Agindo dessa maneira, o Congresso cria uma crise institucional que não tem como ser resolvida sem que um dos lados ceda.

Ou o Supremo Tribunal Federal (STF) aceita acatar a interpretação do Congresso, abrindo mão de sua condição de ser a última palavra em constitucionalidade; ou o Congresso, diante da reafirmação já feita pelos cinco ministros da Primeira Turma de que a proteção legal só existe para os crimes cometidos depois que Ramagem foi eleito, acata a decisão do Supremo e esquece o assunto. São percalços de uma democracia ainda em desenvolvimento, que só se consolidará quando os Três Poderes se convencerem de que é melhor para todos cada um cuidar de seu pedaço sem se intrometer no dos outros.

A prevalência do STF sobre os demais Poderes, pois é aquele que dá a última palavra ou, como definiu Rui Barbosa, aquele que tem o direito de “errar por último”, é fundamental para que nossa democracia se consolide. A frase de Rui Barbosa é irônica, mas fundamental para o entendimento dos freios e contrapesos democráticos. É preciso, porém, que mesmo os derrotados por uma decisão do Supremo estejam convencidos de que o eventual erro não foi cometido por má-fé, ou por questões políticas, para beneficiar um dos lados. Essa tarefa cabe ao STF, evitando que palavras fora dos autos, ações dúbias ou privilégios de seus ministros criem dúvidas nos cidadãos sobre sua credibilidade.

O Globo, 13/05/2025