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Yanomamis

 

Penso na cosmopolítica de Isabelle Stengers. Na passagem do consenso para a aliança, unindo natureza e cultura, quando poetas e cientistas constroem pontes de amizade, como os adolescentes do centro Dom Bosco. Não poderia recusar um viés antropológico, na inconstância da alma selvagem, para citar Viveiros de Castro, não poderia tampouco esquecer a profª Lívia Barbosa, da UFF, que me iniciou em LéviStrauss. Cada sistema etnográfico é uma epistemologia. E hoje, uma espécie de SOS. Penso no futuro de Gaia e no xamã da floresta Davi Kopenawa, a quem me dirijo.
Caro Davi, queremos sonhar a Terra com você. Convoca os xapiris, os espíritos da floresta, para evitar que o céu desabe. É infinito o número de deuses e de estrelas. Melhor que tanto peso não recaia sobre nossos ombros. Mas se cair, vamos soerguê-lo, juntos. Impedindo a xawara, a fumaça tóxica dos metais, a perigosa feitiçaria do capitalismo. Protegendo as terras indígenas e fiscalizando-as, segundo o espírito da Carta da Terra. Atacando o fetiche da mercadoria, aguarrás do campo subjetivo. Considerando nosso corpo como fruto de Gaia. Buscando alianças tentaculares, fraternas e solidárias com a vida. Apostando no decréscimo sereno, na economia circular e sustentável.
A desigualdade social fere o metabolismo da Terra. Nossa hybris é imensa. Lutamos contra o relógio, sem a redenção de um Édipo em Colono. Ele não sabia, enquanto
Yanomamis nós sabemos. Melhor fechar os olhos ou arrancá-los? Eis um falso dilema. Precisamos arrostar os desafios, de olhos abertos. Se o céu cair, meu caro Davi, um misto de delicadeza e força poderá reposicioná-lo. Todos os saberes convocados. Tratemos da floresta e de seus povos, das cidades assimétricas, de nossos rios. A mente lúcida e as mãos firmes, para retesar as cordas e içar o azul do céu a maiores altitudes.
Não podemos perder um só deus, começando por Omomë, e também o colibri de Tupã e os deuses araweté. Só assim, como disse o profeta, “o lobo e o cordeiro viverão juntos, e o leopardo se deitará ao lado do cabrito e a vaca e o urso pastarão lado a lado”. 
A Terra pode girar em torno do Sol, ainda que devastada, sem a nossa presença. Mas não podemos perder a memória frágil e sublime, escura e luminosa do humano, de
nossos filhos, de nossos ancestrais.
O tempo corre. A nostalgia do mais não recua. O rosto do futuro cresce em nosso espelho. De rosto misterioso e seios fartos. Inteiramente feminino. Começam as dores
do parto. Sentimos desde já sua beleza.

Jornal de Letras, Artes e Ideias (Lisboa), 13/01/2021