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Uma viagem filosófica

 

Com as rendas coloniais em franco declínio, exauridas as jazidas de ouro, a rainha D. Maria I, de Portugal, desejava conhecer melhor o Centro-Norte do Brasil. Designou Alexandre Rodrigues Ferreira, naturalista baiano que vivia em Portugal, para empreender a Viagem Filosófica pelas Capitanias do Grão-Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuiabá. A ideia era explorar a região, conhecendo as virtudes da fauna, da flora e das populações locais. A viagem se fez entre 1783 e 1792.

Comemora-se agora o segundo centenário da morte do especialista, formado na Universidade de Coimbra e membro correspondente da Real Academia das Ciências de Lisboa. Graças aos seus estudos, é possível examinar amostras de utensílios utilizados pela população, além de comentários filosóficos e políticos da vasta região. Há rico material na Biblioteca Nacional brasileira e no acervo da Academia das Ciências de Lisboa. Nenhuma viagem foi mais importante, no período colonial, com as características de pragmatismo que a distinguem das demais.

Não dispunha de muitos recursos, por isso contou com apenas dois desenhistas ou riscadores, como se dizia na época, e um jardineiro botânico, chamado Agostinho do Cabo. A viagem foi subsidiada pela Academia das Ciências de Lisboa e pelo Ministério dos Negócios e Domínios Ultramarinos, tendo sido planejada pelo naturalista italiano Domenico Vandelli. Contou com apenas um naturalista. Tinham sido previstos quatro. Começou, no Brasil, em outubro de 1783, quando aportou em Belém do Pará a charrua Águia e Coração de Jesus.

Depois de percorrer as ilhas de Marajó, Cametá, Baião, Pederneiras e Alcobaça, subiu os rios Amazonas e Negro até os limites das terras espanholas. Dos rios Madeira e Guaporé foi até Vila Bela da Santíssima Trindade, então capital de Mato Grosso. Seguiu para Cuiabá e navegou pelos rios Cuiabá, São Lourenço e Paraguai. Depois de nove anos, voltou a Belém do Pará, mapeando as comunidades indígenas e seus costumes, além de avaliar as potencialidades econômicas da região, como era o seu propósito inicial.

Os diários da Viagem Filosófica mostraram o quadro das lavouras existentes, procurando explicação para o seu declínio, sobretudo após a expulsão dos jesuítas pelo marquês de Pombal. Entre as causas apontadas, a indolência dos nativos, a falta de braços e a redução do número de escravos negros. Já na ocasião, Alexandre Rodrigues Ferreira clamava pela racionalização das culturas e a introdução de técnicas adequadas à lavoura e ao solo. Em cada comunidade, as virtualidades eram medidas pela existência de trabalhadores ativos e inativos, o número de brancos, índios, negros escravos, mulheres, crianças e velhos. Assim se podia alcançar a viabilidade econômica dos lugarejos visitados. O naturalista passou a conhecer o quadro das colheitas de farinha, arroz, milho, cacau, café e tabaco.

O Diário da viagem filosófica foi publicado na revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, em 1887. Na Biblioteca Nacional, a Divisão de Manuscritos conserva centenas de documentos desse feito, além de papéis referentes à Amazônia do século 18. Parte se encontra no Museu Bocage, de Lisboa. Trata-se de rico acervo, com diários, mapas geográficos populacionais e agrícolas, correspondências, totalizando mais de 1.000 pranchas e memórias. O farto material ficou por mais de um século desconhecido e não foi estudado por ninguém durante o período. Várias peças foram mais tarde levadas para Paris como butim de guerra. A Viagem Filosófica tem grande valor histórico e, por isso mesmo, deve ser agora rememorada.

Jornal do Commercio (RJ), 19/06/2015