Portuguese English French German Italian Russian Spanish
Início > Artigos > A uma brasileira em Paris

A uma brasileira em Paris

 

Sua carta me sensibilizou, trazendo-me palavras muito amáveis. Mas não participo das suas apreensões ante a perspectiva da presidência Luiz Inácio Lula da Silva. Por tudo o que representa a sua esteira de compromissos político-administrativos com lideranças não-petistas, não vejo o que temer. Além do mais, a equipe que o assessora é da melhor qualidade, e não tem, até pela formação intelectual e política, qualquer vínculo com o trabalhismo predatório. Basta citar dois exemplos: Antônio Cândido e Cristovam Buarque, indicado para o MEC.


Vou além; pelo que estamos observando do Lula na sua prudência e equilíbrio, é possível concluir que não teremos um governo populista, mas popular sem dúvida. E é do que precisamos. Nosso povo cansou-se da política intrincada - principalmente da política econômica, não raro difusa e pedante. O Brasil votou como votou, de cansaço.


A França de 1789 também estava cansada... e perfilhou a trama dos intelectuais que conspiravam no Café Procope. E não é próprio do intelectual genuíno a faina de rever, reajustar, reestruturar, recondicionar idéias, processos e técnicas? Espero que possamos reconstruir brasileiramente o país, atentos aos fundamentos endógenos da nossa cultura, agora que a invasão está no auge.


Você me falou da decepção que foi, na Polônia, o governo Lech Walesa. Mas ele era só operário. Não teve uma visão longitudinal da ação política. Viu apenas o sindicato, no qual se insulou, porque era o seu mundo, sua torre sem marfim. Faltou-lhe sensibilidade para captar o imperativo de integrar-se na sociedade global.


É certo que, na Presidência da Polônia, durante cinco anos viajou pela Europa e pelos Estados Unidos; mas não se sabe que tenha exportado uma mensagem política renovadora ou, quando menos, larga nas intenções de permuta. É também certo que ele tinha o seu recado político a dar, ainda que moderadamente - porque não era comunista, nem de concepção e muito menos de ação; católico praticante, como a grande maioria dos poloneses.


Mas a verdade é que, no relacionamento transnacional do líder do Solidariedade, o que avultava era a palavra, eram as postulações e os apelos do sindicalista, do metalúrgico e do eletricista, primeiro aluno da turma de “práticos”, em sua cidade de Gdansk. E parece-me extremamente expressivo que um jornal da categoria do “Le Monde” o tenha considerado, pouco após sua reeleição à Presidência da Polônia, uma “singela paródia do Rei Sol: o Sindicato sou eu”.


E isso terá explicado as limitações do seu diálogo, no campo propriamente político, muito em especial em termos de convivência com os contrários, fosse do ponto de vista ideológico ou estritamente partidário. Será talvez o caso de recordar aquela concisão salgada de Roberto Campos, justamente sobre Walesa: “Um idealista desastrado.”


Luiz Inácio Lula da Silva não caberia na sátira, nem do jornal francês nem na do Campos; sua ótica é outra. Neste sentido, estou confiante. Creio que vamos eliminar o paradoxo maligno: a convivência tragicômica entre a liberdade política (ela mesma enganosa) e a opressão econômica e social.


Não é livre o cidadão inseguro na sua mesa e na sua bolsa, aquele que não consegue calcular o dia seguinte e tem medo de amanhecer. Vale a liberdade política que se prolonga e adensa na justiça extensiva, moral das democracias profundas, essência cristã do poder honesto, capaz de produzir o Estado justo.


Já não me lembro de qual presidente do ciclo militar, ao receber para despacho o seu ministro da Fazenda, depois de examinar a copiosa documentação que lhe trazia ele - uma exaustiva massa de dados estatísticos - foi todo franqueza e lucidez: “É ministro, a economia vai bem, mas o povo vai mal.” Não conheço nada mais substancioso - a força das coisas simples.


No momento em que um compatriota, de formação e posição políticas inteiramente opostas às do general, está para assumir o governo, não resta senão concluir que o eleito de agora aplaudiria com dignidade a advertência do soldado-presidente, pelo que tem de realismo agudo e benéfico.


A vida é irônica. E o Brasil ainda mais...




O GLOBO (Rio de Janeiro - RJ) em 24/12/2002

O GLOBO (Rio de Janeiro - RJ) em, 24/12/2002