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Um Poeta que escrevia na língua de ninguém

 

Acaba de sair um livro oportuno sobre o romeno Ghérasim Luca, da autoria de Laura Erber, pela coleção Ciranda da Poesia, da EdUerj, dedicada à poesia contemporânea. Não merecem passar em brancas nuvens, o livro e o poeta, e não somente pela efeméride dos cem anos de seu nascimento — porque não lhe devem faltar outros no futuro —, mas pelo vigor de um laboratório verbal que ainda produz uma linguagem de combinações químicas em estado latente. Eis a razão pela qual os leitores de Khlebnikov e Guimarães Rosa acham-se convocados desde já: aqueles que consideram a poesia uma intangível máquina de guerra, no silêncio e na palavra, ou uma síntese de opostos, os que defendem uma semântica radical ou uma política da fricção, no centro e no abismo da poesia, reconhecem todos, na obra de Luca, um golpe de estado na linguagem, em suas entranhas ásperas, cruciais, como cantou em versos famosos: “respirar profundamente no vazio/ jogando vazio e morte para trás/ ao mesmo tempo/ abrir a morte de cada lado das ideias/ vida e angústia na frente/ fazer uma pausa/ aspirar pelo vazio”.

Abismo e vazio dentro do qual se lançaram, fisicamente, recusando limites entre a metáfora e a vida, Paul Celan e Ghérasim Luca, da ponte Mirabeau sobre o Sena: este em 1994, aquele em 1970. Ambos romenos de nascimento, de raízes judaicas, rebatizados como poetas, abertos a uma nova língua e destino. Celan foi dos maiores nomes da literatura alemã do século XX, assim como Luca vem adquirindo espessura na crítica francesa da última década. Ambos levados pela correnteza de uma vida apátrida e bilíngue, embora essencialmente romenos, como demonstram os livros de Cugno, Mincu e Pop, bem visitados, aliás, por Laura Erber. Romenos do ponto de vista da cultura, plurilíngue e experimental, que é o que importa, e não dentro de uma esfera chauvinista. Erber inscreve seu nome entre os que tecem, no Brasil, uma aproximação com a poesia romena, como Luciano Maia, Carolina Floare, Fernando Klabin e Caetano Galindo, dentre outros, raros e bons. Um atlas bilateral foi publicado por Ático Vilas-Boas, com pouco mais de mil páginas, a demonstrar o volume de um diálogo que jamais deixou de acontecer, embora tímido e esquivo, de parte a parte, precário, intermitente.

Mas é preciso não insistir em demasia num Luca romeno, desconsiderando a insurgência de sua poesia, longe de uma pobre e absurda “geolírica”. Como lembra Sarane Alexandrian, bem a propósito, a poesia sonora de Luca não se reduz simplesmente a um domínio romeno ou francês, mas a um não domínio, a uma espécie de “no man’s langue”, uma língua de ninguém e, portanto, de difícil negociação com críticos nacionais, dublês de sequestradores. Penso no poema que diz, alternando entre maiúscula e minúscula, como um grafite na página: “gReve/ Geral/ sem fim/ nem começo// A POESIA// SEM LÍNGUA// A REVOLUÇÃO// SEM NINGUÉM// O AMOR/ SEM FIM”.

Há uma ideia de fundo no livro de Erber que aprecio, e que consiste na oposição a dois cativeiros para Luca: o do surrealismo e o do construtivismo, divorciados, como se o reivindicassem de forma exclusiva, rompendo a integridade de um projeto, o de nosso poeta, que se amplia numa coleção de fragmentos ou que se espalha numa constelação de poemas. Seria um erro clamoroso dividi-lo entre duas rubricas, nem sempre tão irreversíveis, como querem alguns.

Outro destaque do livro é o paralelo — inescapável — de Luca e Artaud, mais precisamente do Artaud “radiofônico” do “Para terminar com o julgamento de Deus”, que é um grito primitivo, crucial e performático, herança do teatro da crueldade e dos fantasmas de um mundo que se multiplica por dois. Quem melhor do que Antonin Artaud poderia ter apreciado esses versos de Luca? “Passi de passigrafia gra fifi/ grafia de fifi/ fifia fena fenakitis/ fenakitis coco/ fenakitiscópio fifi/ fofo fifi fofo do do/ do domine do foto mime fifi (...)”.

Não tenho dúvidas, porém, que a maior experiência do século XX na esfera criativa da poesia, como “inventa-línguas”, passa pelo desafio da língua transmental (zaum), do poeta russo Velimir Khlebnikov, no jogo do acaso e da necessidade, no embate de forças criativas, em que o labirinto da etimologia e o esforço apolíneo da gramática se equilibram como numa espécie de trapézio entre galáxias, dionisíacas, irregulares. Justo ele, Khlebnikov, que se autointitulou sem maiores delongas o “presidente do globo terrestre”, compondo palavras-cabide, sonoridades coladas ou não às marcas de sentido, música e palavra, como um Lizst moderno, debruçado no teclado, com inúmeros pianismos, variações sobre um tema sempre nômade, ou circular, colhendo um buquê de dissonâncias. Há uma troca permanente entre Khlebnikov e Luca, “por lapsus linguae/ por lapsus vitae”.

Os trechos dos poemas citados de Luca provêm da tradução de Annie Cambe e Laura Erber, que fecham o volume. Suspeito (e desejo) que a pequena e bem formada antologia guarde a promessa de uma edição maior dos poemas de Ghérasim Luca, com seus pináculos, alturas e vertigens.

O Globo, 02/02/2013