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Um país de ficção

 

Como senador, foi um dos interrogadores do advogado Cristiano Zanin quando sabatinado para a vaga aberta no Supremo Tribunal Federal (STF). Zanin foi o super-inimigo de Moro na defesa de Lula, e agora está no Supremo, onde poderia estar Moro, o mesmo STF responsável por anular todas as condenações do atual presidente da República.

Mais adiante, estava no plenário do Senado interrogando o hacker Walter Delgatti, responsável pelo crime de invasão de privacidade dos celulares dos procuradores de Curitiba que ajudou a desacreditar todo o processo da Operação Lava Jato comandado por Moro. Delgatti sugeriu que viu mensagens pessoais de Moro que indicariam que ele era um “criminoso contumaz”. O senador retrucou dizendo que Delgatti era tão inocente quanto Lula, o beneficiário final do desmonte da Lava-Jato, que o levou de volta à presidência da República.

Em outra cena digna de um roteirista com excesso de imaginação que seria recusado por exagerar nas coincidências, temos Delgatti, que salvou Lula, agora colocando Bolsonaro na rota da prisão ao revelar que o ex-presidente pediu-lhe que provasse que as urnas eletrônicas eram vulneráveis. Bolsonaro, que se elegeu, entre outras coisas, por defender a operação Lava-Jato, a ponto de levar Sérgio Moro para seu ministro da Justiça, agradeceu a Delgatti, segundo relato do próprio, por ter salvado a democracia ao provocar a Vaza-Jato, nome que tomou a revelação dos diálogos dos procuradores com Moro que provocou uma reviravolta política no país.

Logo Bolsonaro, que passou a campanha de reeleição presidencial chamando Lula de “descondenado”, e teve Moro como seu assessor. Delgatti, o herói da esquerda, passou a ser conselheiro da extrema-direita, e nessa posição chegou a ser enviado ao Ministério da Defesa para assessorar uma comissão que, oficialmente, havia sido formada para ajudar o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) a garantir a integridade das urnas mas que, nas sombras do poder, tramava, inclusive com um criminoso condenado, desmoraliza-las.

Se o então chefe dos procuradores de Curitiba, Deltan Dalagnol, fizesse um power point sobre as investigações atuais como fez com as de Lula, virando um alvo preferencial da esquerda até ser condenado a perder o mandato de deputado federal recém conquistado nas urnas, todas as setas iriam para cima do ex-presidente, e certamente estaria sendo aplaudido pela esquerda.

Como naquela ocasião, tudo está sendo confirmado e checado, e, como Lula era o centro do petrolão, Bolsonaro é o centro de escândalos sem fim. A prisão dos comandantes da PM do Distrito Federal mostra claramente que havia um grupo de militares que estava atuando à espera da consequência daquela baderna, a favor de um golpe. Não tinham apoio do Alto Comando e foram incompetentes. Mas tentaram. Ainda bem que o Alto Comando do Exército não aderiu a essa “maluquice”, e a maior prova disso é que não houve nenhum general graduado a tentar tirar partido da arruaça do 8 de janeiro para atiçar um golpe militar.

Em algum momento, e já está tardando, as Forças Armadas precisam dar uma posição oficial, repudiando esta tentativa de golpe e a ação de militares nesse sentido. Não é possível ficar em silêncio enquanto o país inteiro acompanha uma crise em que militares estão envolvidos. Se não separar o joio do trigo oficialmente, todas as Forças Armadas ficam suspeitas, manchadas. Imaginar que basta se manter dentro da lei, que todos irão entender que Exército, Marinha e Aeronáutica são a favor da democracia não é suficiente, é até ingênuo.

O Globo, 20/08/2023