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Tragicomédia

 

Não foi um ato falho, ou “sincericídio”, que levou o ex-presidente Jair Bolsonaro a declarar que, se fosse hoje, não levaria militares para o governo, mas políticos. Diante das provas contundentes apresentadas, confirmando as investigações da Polícia Federal ou acrescentando dados novos, não há mais escapatória jurídica para o ex-presidente, só política. Inclusive vinda do exterior. Enquanto a maioria do Congresso continua insistindo na aprovação da anistia, no Congresso dos Estados Unidos, em Washington, o secretário de Estado Marco Rubio confirmou ontem a análise de sanções ao ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes, relator do processo contra os golpistas de 2023.

Não há nada mais próximo de uma pressão política indevida que essa confirmação do governo americano. Grave ameaça à soberania brasileira, como se vivêssemos numa ditadura bananeira, e a democracia precisasse ser salva pelos Estados Unidos. Acontece justamente o contrário. Como o presidente Trump não é nenhum exemplo de democrata, a situação torna-se tragicômica. Bolsonaro não é um ex-presidente perseguido político, mas um candidato a ditador em julgamento. Trump é um presidente autoritário, que usa métodos nada ortodoxos para fazer política internacional e só trata bem os aliados poderosos ou os que podem lhe dar alguma vantagem, como um avião novo para viajar pelo mundo nas asas da ditadura catari.

Beira o ridículo o governo americano querer tachar o governo brasileiro de ditadura que persegue adversários políticos por meio de seu Judiciário. Críticas ao STF devem ser feitas, e eu as faço, mas daí a considerar que adversários políticos não têm liberdade para atuar vai uma grande diferença. Mais ainda: acreditar na narrativa de Eduardo Bolsonaro, autoexilado nos Estados Unidos, é desconhecer a política brasileira. Ou melhor, é chancelar que são farinha do mesmo saco, têm a mesma visão de mundo. Ver o desmando acontecendo nos primeiros dias de Trump é antever o que aconteceria caso Bolsonaro tivesse vencido a eleição presidencial.

Os militares brasileiros deixaram insinuado em seus depoimentos que a certeza de que os Estados Unidos não apoiariam um golpe foi uma das razões para que não aderissem. O mundo com Biden no governo americano era um, o de Trump é outro, e hoje os bolsonaristas teriam certamente o apoio que lhes faltou.

Enquanto o líder da direita tenta salvar a própria pele, a política continua em efervescência. Eduardo Leite, governador do Rio Grande do Sul, e Ratinho Júnior, do Paraná, anunciaram que estão no páreo para a corrida presidencial de 2026. A direita anda se movimentando, mas, por enquanto, dividida. Essa é a característica principal. Se estiver unida em torno de um candidato, com apoio de Bolsonaro, é uma coisa; com vários candidatos da direita e centro-direita, só no segundo turno o grupo se une. Isso facilita para a esquerda, que está unida em torno de Lula — se for ele o candidato. Se não for, não se sabe o que poderá acontecer.

A movimentação a mais de um ano da eleição se deve à dificuldade de definir o quadro. De um lado, Bolsonaro insiste em sua candidatura, numa atitude política, mas não lógica, apenas para preservar o seu nome. Não pensa em preservar a direita ou arranjar um candidato forte para derrotar Lula. Ele quer se manter como principal líder da direita. De outro, Lula se mantém como principal líder da esquerda, desestimulando eventuais candidatos, como o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e esperando para ver quem será o candidato adversário, se ele tem chance, medindo a popularidade de seu governo, que no momento vai mal, desmentindo a tese de que é a “economia, estúpido”. A expectativa de que vai piorar e de que o governo é desorganizado supera a realidade momentânea, com bons indicadores de crescimento. Estão abertas as possibilidades dos dois lados para a disputa política. Não há nenhum candidato que seja óbvio.

O Globo , 22/05/2025