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A Reforma política

 

Se é verdade que a sociedade civil é fruto de uma utopia do Iluminismo e, por isso mesmo, habitada pela incompletude e pela incessante revisão de seus princípios, no caso brasileiro as lacunas parecem abismos e reclamam maiores cuidados. O ano termina  com a sofrida renovação das pastas ministeriais,  a criação do PSD e a volta de conhecido representante do Pará ao Senado Federal. Não entro no mérito das listas de filiação daquele partido e nem tampouco do modo pelo qual a lei da ficha limpa mereceu consideração do STF.

A responsabilidade do quadro da vida política  vem diretamente do Legislativo, mas os dois outros poderes não vivem isolados em céu platônico. De um lado, a presidência da República reúne condições suficientes para convidar as lideranças partidárias no Congresso a incluírem na agenda o debate da reforma política. De outro lado, o Supremo deve ser um dos avalistas da autonomia do equilíbrio dos poderes, com uma  sensibilidade temporal adequada aos juízos relativos às questões eleitorais. Processos democráticos sobre bases democráticas.

A reforma política arrasta-se há anos, como piedosa miragem no deserto, engolida pela máquina burocrática e pela anemia da vontade política. Enquanto o Congresso não se inclinar à votação de um conjunto de medidas que implementem a tão esperada  reforma, de acordo com os princípios da representatividade e da participação democrática, teremos de assistir  a uma série de práticas que diminuem nossa democracia, como se a política e a ética fossem instâncias contraditórias, segundo uma lógica  pérfida que serve aos maus políticos, a partir da qual perdem os três poderes sua  respectiva qualificação republicana.

Diante do fato da corrupção, não sei o que é mais deplorável, se os malfeitos, ou a língua com a qual alguns se reportam à sociedade.  Precisamos de um novo Victor Klemperer para  abordar o dialeto  de nossa corrupção? Não creio. Língua  sem variantes, movida apenas por uma razão cínica. Negam, não sabem, não lembram, não conhecem, jamais ouviram falar. São vítimas de seus desafetos. E quando a defesa já não atende às leis banais da verossimilhança ou das leis da física, apelam para sua inarredável condição litúrgica: não se pode duvidar da palavra de um mandatário, pelo simples fato de ser a palavra de um mandatário.  E com essa brilhante petição de princípio dão por encerrada a discussão. Messianicamente inocentes, consideram-se brâmanes, enquanto  a cidadania, para eles, não passa de abstração. Somos súditos, talvez, a plebe, os intocáveis. Não vale insistir no esquema desse pobre melodrama, de que são plagiários uns dos outros, quer nas mesmas estratégias de defesa, como nos abusos de chicanas jurídicas, ou das crises de amnésia, de que são acometidos.  

A única resposta possível a todo esse estado de coisas  repousa no aperfeiçoamento dos instrumentos consensuais. Extra democratiam nulla salus, fora da democracia não existe salvação. As sociedades civis de nosso tempo, nos rastros de um ideal utópico, como defende Jürgen Kocka, escolhem a emancipação no lugar da tutela, a difusão do poder contra a concentração, a solidariedade horizontal, em detrimento daquela vertical, a promoção da igualdade dos gêneros, a tolerância e o debate  permanente. Em seu famoso ensaio “A sociedade civil desde uma perspectiva histórica”, Kocka põe em relevo o nó da questão: “A sociedade civil faz parte de um plano ou projeto geral com características que não foram de todo  realizadas do Iluminismo até nossos dias. Nesse sentido, a sociedade civil é uma espécie de utopia que deve ser  ainda concretizada.”

Apostando sobretudo numa práxis que diminua a distância entre  a planície  da cidadania e a cordilheira do parlamento, como se a política fosse uma esfera de todo separada e incomunicável, acima dos instrumentos de consulta e  responsabilidade, a depender apenas do “acidente” sazonal do voto popular. Uma reforma política madura poderá influir sobre a longa jornada de um projeto democrático menos vulnerável, de que não podemos abrir mão.

O Globo, 28/12/2011