Portuguese English French German Italian Russian Spanish
Início > Artigos > Ponto final

Ponto final

 

O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luis Roberto Barroso deu ontem o primeiro pronunciamento oficial da Corte negando a função de Poder Moderador das Forças Armadas. Ao não dar seguimento a mandado de injunção que pedia a regulamentação do artigo 142 da Constituição, utilizado por seguidores de Bolsonaro para justificar uma eventual intervenção militar em caso de ameaça à democracia, o ministro Barroso aproveitou para reforçar formalmente o que já havia sido dito por organizações da sociedade civil, como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), e pelo Congresso.

Agindo dessa maneira, Barroso replicou a atitude do juiz John Marshall, da Suprema Corte dos Estados Unidos, o primeiro a definir, em 1803, a capacidade da Suprema Corte de fazer o controle constitucional das leis, no caso mais famoso do constitucionalismo mundial.

Em uma discussão sobre a nomeação de um juiz feita pelo presidente anterior, o juiz Marshal decidiu que a lei em que se baseava a nomeação era inconstitucional e, portanto, ele não poderia ser nomeado. Ao mesmo tempo em que afirmava o poder da Suprema Corte de determinar a constitucionalidade das leis, que até aquele momento não tinha esse papel, não criava um conflito entre Poderes.

Aqui também, ao definir que o artigo 142 não requer regulamentação, Barroso formalizou um entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o tema, encerrando a discussão. Barroso marca posição referindo-se ironicamente a um “terraplanismo constitucional” dos que interpretam a Constituição erroneamente, e afirma que qualquer tentativa de usar medidas extraordinárias sem seguir os trâmites constitucionais configura crime de responsabilidade.

“Nos quase 30 anos de democracia no Brasil, sob a Constituição de 1988, as Forças Armadas têm cumprido o seu papel constitucional de maneira exemplar: profissionais, patrióticas e institucionais. Presta um desserviço ao país quem procura atirá-las no varejo da política”, afirmou Barroso.

Na sua decisão, ele ressalta que “o Poder Moderador só existiu na Constituição do Império de 1824 e restou superado com o advento da Constituição Republicana de 1891. Na prática, era um resquício do absolutismo, dando ao Imperador uma posição hegemônica dentro do arranjo institucional vigente. Nas democracias não há tutores”.

Para Barroso, “nenhum elemento de interpretação – literal, histórico, sistemático ou teleológico – autoriza dar ao artigo 142 da Constituição o sentido de que as Forças Armadas teriam uma posição moderadora hegemônica. Interpretações que liguem as Forças Armadas “à quebra da institucionalidade, à interferência política e ao golpismo chegam a ser ofensivas”, diz Barroso.

Depois de fazer um apanhado histórico sobre as diversas constituições do Brasil, desde a de 1824 que definiu o papel moderador do Imperador, até a de 1988, Barroso define que “finalmente o Brasil fez sua transição para um Estado Democrático de Direito. Nessa medida, submeteu o poder militar ao poder civil, e todos os Poderes à Constituição”.

Barroso lembra que, desde então, “passaram-se mais de 30 anos, dois impeachments presidenciais, uma intervenção federal, inúmeras investigações criminais contra altas autoridades (inclusive contra Presidentes da República), sem que se tenha cogitado jamais da utilização das Forças Armadas ou de um inexistente poder moderador”.  

Todas as crises institucionais experimentadas pelo país, ao longo dos governos democráticos anteriores foram solucionadas sem rupturas constitucionais e com respeito ao papel de cada instituição – e “não se pode afirmar que foram pouco relevantes”, afirma Barroso. “Portanto, a menos que se pretenda postular uma interpretação retrospectiva da Constituição de 1988 à luz da Constituição do Império, retroceder mais de 200 anos na história nacional e rejeitar a transição democrática, não há que se falar em poder moderador das Forças Armadas”.

O Globo, 11/06/2020