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A política no Supremo

 

A discussão mais interessante da sabatina do ministro da Justiça e senador Flávio Dino no Senado foi sobre se ser político o tornaria inadequado para o cargo de ministro do Supremo Tribunal Federal (STF). Evidentemente ninguém estava ali para dizer que políticos não podem ser integrantes do STF, embora, dos presentes no plenário, talvez não encham os dedos da mão os que tenham o notável saber jurídico ou o passado ilibado. Dino já foi juiz, virou político de carreira — deputado federal, governador do Maranhão, ministro da Justiça — e agora está voltando para o Judiciário.

Além de político, Dino é comunista, acusaram uns, insinuaram outros, sibilinamente. Como se esse fato pudesse interferir nas decisões dele no STF. Recentemente tivemos em ação no Supremo um juiz declaradamente comunista, o professor emérito da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco Eros Grau. Citava Karl Marx em seus votos e escritos públicos, tinha uma foto dele na mesa de trabalho e nunca foi acusado de ser “juiz comunista”, mas era um “juiz”. Assim como tivemos um ministro, também nomeado por Lula, ligado à direita católica. Carlos Alberto Direito era respeitado por seus pares e, em sua curta passagem pelo Supremo, marcou presença em votações importantes, como a da reserva indígena Raposa Serra do Sol.

Nomeado por Lula em 2004, no início do primeiro governo, não houve contestação devido à origem política de Eros Grau, o que demonstra como estávamos em momento distinto de hoje, saídos de uma transição de poder republicana, depois de oito anos de governo tucano. Lula conseguiu estragar essa relação ao acusar Fernando Henrique de ter-lhe deixado uma “herança maldita”, para hoje ter de enfrentar a realidade que denunciou fantasiosamente há 20 anos.

Dino citou também vários políticos que passaram pelo STF, entre eles Paulo Brossard, que foi senador; Hermes Lima, Oscar Dias Corrêa, Nelson Jobim e Célio Borja, que foram deputados federais; e Oswaldo Trigueiro, que foi governador da Paraíba. Dos Estados Unidos, citou a ex-senadora Sandra Day O’Connor e o ex-governador da Califórnia Earl Warren, que ocuparam cadeiras vitalícias na Suprema Corte. Warren, por sinal, marcou sua presença como presidente da Corte (chief justice) com decisões que ampliaram os direitos civis, em especial no combate à segregação racial.

Para sublinhar que não atuaria com cores partidárias, Dino lembrou que “todas as togas têm a mesma cor” e acrescentou:

— A Constituição é igual, as leis são iguais, o comportamento ético é igual.

Para demonstrar a verdade de suas palavras, mostrou-se sereno durante toda a sabatina, mesmo quando provocado. Tentaram tirá-lo do sério, chegaram a lamentar que ali estivesse outra pessoa, e não aquele político agressivo e polêmico com quem se batiam dias atrás.

Ninguém acreditou que a mudança de personalidade se concretizará, nem seria razoável exigir que alguém, para ser nomeado ministro do Supremo, abrisse mão de sua vida anterior. Mas a postura tem de ser outra. Foi o que Dino disse, tentando escapar das armadilhas que lhe colocaram no caminho. Não abrirá mão de suas convicções pessoais, mas seguirá a Constituição. Deixou implícito que não seguirá a cartilha de Lênin, como sugeriu um senador.

Para surpresa dos que o queriam num corner, colocou-se contra o aborto, pauta cara à direita, que ficou desarmada com a sinceridade daquele comunista. Na verdade, não temos grandes exemplos de juízes que, tendo sido políticos, tenham abusado de sua autoridade em termos políticos. Temos, sim, exemplos cotidianos de ministros que nunca foram políticos com mandato, mas fazem política o tempo todo. Depende da personalidade do juiz, do seu caráter, do momento político.

 

 

 

O Globo, 14/12/2023