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A paixão pelo violão de Edson Alves

 

Há pessoas que chegam tarde à vida da gente, mas chegam e ficam para sempre. Como é o caso de Edson Alves, que entrou no meu caminho há seis anos e me iluminou desde então. Nós nos conhecemos quando minha filha Rita Gullo montou um pequeno conjunto musical para nos acompanhar no show Solidão no Fundo da Agulha. O grupo acabou tendo um nome improvisado, que ficou Pai, Filha e Espírito Santo. Há 72 meses rodamos por este Brasil. Não ganhamos dinheiro, mas conhecemos gente e lugares e nos divertimos. 

Sempre que chegávamos a uma cidade nova, ou teatro, auditório, bar, o que fosse, e olhávamos a plateia ainda vazia, Edson lembrava um período em que acompanhou Adoniran Barbosa em uma temporada. Adoniran, contava ele, chegava, abria um pedacinho de cortina e dizia: “Está um fedor de ausência”. Riam e, se ninguém aparecia, iam todos para um bar. Com Edson, veteraníssimo, admirado por toda a classe, aprendemos, Rita e eu, que a plateia é fundamental, mas fazer o show, tenha quantos tiver, é mais importante do que tudo. Sempre fizemos o Solidão alegremente, puxados pelo nosso violonista. 

Sua morte, na semana passada, foi tão rápida, desnorteante, que, quando soubemos, ele já estava cremado. Um grupo enorme de amigos ainda conseguiu chegar ao crematório e se despedir com canções e casos. Porque Edson tinha um repertório enorme de histórias de músicos, sobre músicos, para músicos. Sua morte, aos 68 anos, frustrou a ideia que tínhamos os dois de contar em livro tudo o que ele viu e viveu. 

Esse nosso pocket show, com histórias de minha vida conduzidas por canções que me marcaram e cantadas por Rita – que ele adorava e se entusiasmava ao ouvi-la, principalmente na canção Amado Mio, do filme Gilda, um clássico –, foi a prova de que havia coisas que ele fazia por amor, paixão, por se divertir também. Apaixonado pela ideia, pelo jeito intimista, pela maneira como tudo chegava e envolvia a plateia. Edson tocou com todos músicos que sabemos ser ou ter sido importantes. Era respeitado pelo seu estilo no violão. Poucas notas e exatas. Tirava do violão os sons mais inimagináveis. E era correto, severo. Rígido, ao passar o som, às vezes infernizava técnicos com suas exigências, máximas, apesar de mínimas. Queria o som perfeito, irritava-se. Estava sempre certo.

Quantas histórias se foram com ele. Uma delas, me lembro, foi de quando tocava com Ray Conniff, que usava uma peruca perfeita, mas que um dia foi levada pelas águas do mar, o que deixou o mestre dos bailes desesperado. Por sorte, não havia plateia. E a infinidade de festas, bailes, coquetéis, debutantes, aniversários, quando os músicos só podiam (e ainda podem) entrar pelos fundos, acomodar-se em uma área de serviço e sem poder provar croquete, coxinha, empada, pastel, o que fosse. Se tivesse lagosta e caviar, nem podiam se aproximar, os garçons passavam ao largo. Histórias de como o trabalho de artistas funcionou ao longo de décadas. E o músico de renome que, convidado para tocar em uma festa, perguntou: “É de carnaval? Não trabalho em carnaval, de modo algum”. O contratante garantiu de pés juntos que não era e o músico notável foi, apertou a campainha e foi recebido na porta pelo Rei Momo. Virou as costas e se mandou. 

Ele nos acompanhou de pequenos bares à inauguração de Sescs, fomos do sul ao norte, vilas e capitais. Mas houve um lugar que adorávamos, o restaurante Gênova, íntimo, com uma das melhores comidas italianas de São Paulo. Edson adorava quando João Gianesi promovia nosso show a propósito de nada e tudo. Ele morreu sem levar o filho outra vez para comer o espaguete limone, imbatível. 

Vamos sentir falta de Edson e de suas reclamações (o box do chuveiro do hotel sempre entupia, justo com ele), de sua simplicidade, do cafezinho que tomava antes de cada show. Ele adorava dar aulas para jovens carentes que formavam uma orquestra no Auditório Ibirapuera. Ficou triste quando foi tirado de lá, assim como todos os que o conheceram estão desolados com a sua partida para sempre.

O Estado de S. Paulo, 13/03/2020