Portuguese English French German Italian Russian Spanish
Início > Artigos > Os sem-noção

Os sem-noção

 

O sucesso subiu à cabeça dos congressistas, especialmente dos deputados federais. Sucesso do ponto de vista deles, não dos cidadãos, fique bem claro. O ápice dessa “vitória” foram os fundos eleitoral e partidário, que encheram as burras dos partidos, e o orçamento secreto, que privilegiou aliados fiéis do bolsonarismo. Há um ditado latino que diz: “Os deuses primeiro enlouquecem aqueles a quem querem destruir”.

Parece que alguns deputados estão colocando o próprio pescoço na forca, levados pela húbris, conceito grego que significa “excesso” (ou “petulância” na visão romana). Homens assim, que sucumbem à embriaguez do poder, perdem o pudor e são levados a um fim desonroso, diz a tradição histórica.

É o que acontece no Congresso, num momento complicado do país que exigiria foco nas questões essenciais, mas temos de lidar com propostas esdrúxulas que revelam o âmago dos interesses pessoais dos congressistas. É o caso do deputado federal Domingos Sávio, do PL, que recolocou em discussão uma proposta de Emenda Constitucional (PEC) que permite a deputados e senadores anular decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) que não forem tomadas por unanimidade.

Prerrogativa que o Legislativo não tem e não terá, posto que inconstitucional, pois acaba com a lógica dos Poderes independentes. Proposta com o mesmo objetivo já foi feita pelo deputado petista Nazareno Fonteles em 2011 e, naturalmente, arquivada em 2019. Vê-se que o interesse por controlar o Supremo é suprapartidário.

A Comissão de Segurança Pública da Câmara aprovou projeto do deputado Bibo Nunes, também do PL (será coincidência?), prevendo pena de até um ano de detenção para o cidadão que descumprir regras de comportamento durante uma abordagem policial: obedecer às ordens do agente; deixar as mãos livres e visíveis; não realizar movimentos bruscos; manter uma distância mínima de um metro e não tocar no policial. Evidente que ninguém pode atacar um policial, ninguém tem o direito de desacatar um policial. Mas a legislação proposta, além de inócua, é tendenciosa.

Existem normas internas que regem a abordagem, e ela deve seguir esses fundamentos, que também limitam a ação dos policiais. Num momento em que temos notícia de diversas abordagens violentas, e até mesmo causadoras de morte (como no caso do cidadão que morreu sufocado pelo gás lacrimogêneo lançado propositalmente no porta-malas do carro da Polícia Rodoviária Federal), não é possível tratar apenas de um lado da questão. Os policiais são orientados a não ofender o abordado, a não ter atitudes violentas, mas, pelo visto, é preciso primeiro treiná-los novamente. Evidentemente o cidadão que atacar um policial deve estar sujeito a penas severíssimas, é algo que não pode ser aceito pela sociedade.

Para dar um exemplo, em Nova York, atacar um policial é motivo de pena severa, e até motoristas de ônibus são protegidos por uma legislação rigorosa. A cereja do bolo é saber que o relator dessa proposta esdrúxula é o (ainda?) deputado federal Daniel Silveira.

Outro fato curioso, que seria risível se não demonstrasse uma intenção fisiológica capaz de destruir nossa diplomacia, é a proposta do senador Davi Alcolumbre, do União Brasil, que permite a parlamentares assumir embaixadas do Brasil sem perder o mandato, apenas ficando de licença enquanto durar a “mordomia”.

A Associação dos Diplomatas Brasileiros (ADB) se movimenta para barrar o que consideram, com razão, “quebra na separação de Poderes”. A diplomacia brasileira faz parte do Executivo e, com a mudança, sofrerá forte influência do Legislativo, diz a embaixadora Maria Celina de Azevedo Rodrigues, presidente da ADB: “Muda a natureza nacional do serviço de diplomacia. Um legislador representa um Estado, e isso é legítimo.

Mas ele não pode representar seu país no exterior de olho na reeleição em seu estado”. Justamente por a diplomacia ser do Executivo, parlamentares que assumem postos de embaixada deveriam ter de abrir mão de seus mandatos, pois foram eleitos para outro Poder da República. Em democracias representativas maduras, caso dos Estados Unidos, um parlamentar abre mão de seu mandato para assumir um ministério, como fez Hillary Clinton para ser secretária de Estado do governo Obama, assumindo a chefia da política externa. No parlamentarismo é que parlamentares assumem postos no Executivo representando seus partidos.

Na nossa geleia geral, a representação partidária é fluida porque os 32 partidos não representam projetos, apenas grupos políticos que se ajeitam nas siglas de acordo com seus interesses pessoais momentâneos.

O Globo, 16/06/2022