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Organizando a bagunça

 

A quarentena, período em que ocupante de um cargo público fica impedido de empregar-se no setor privado para não utilizar informações privilegiadas a que tenha tido acesso durante seu período no governo, é uma figura nova na legislação brasileira, e, assim como se origina na concepção médica de isolamento para evitar o contágio de uma doença - como no nosso caso agora, com a pandemia da Covid-19 -, tem acepção mais ampla que começa a ser debatida à medida que os fatos políticos vão se desenrolando.

O presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Dias Toffoli, defendeu recentemente uma quarentena de 8 anos para que um membro do Ministério Público ou juízes possam entrar na carreira política. O prazo hoje é de seis meses, o que parece muito pouco mesmo, mas 8 anos é a mesma pena da Lei de Ficha Limpa, que torna inelegível por esse período o político punido.

A proposta surge justamente no momento em que a Operação Lava-Jato vem sendo criticada com mais veemência, e diversos setores da vida nacional se mobilizam para inviabiliza-la. Embora a retroatividade de uma eventual medida não seja razoável nem juridicamente aceitável, os meios políticos identificam no ex-ministro e ex-juiz Sérgio Moro o objeto dessa quarentena, que também impediria que procuradores mais notórios da Lava-Jato possam eventualmente se candidatar em 2022.

A retroatividade poderia, temem alguns, ser aplicável caso a mesma interpretação da Lei de Ficha Limpa dada pelo STF, que atingiu todos os políticos já condenados em segunda instância no momento de sua decretação, seja adotada agora, como regra para o registro de uma candidatura.

Há também propostas de quarentena para indicações para o Supremo Tribunal Federal (STF). Ministros da Advocacia-Geral da União (AGU) ou o Procurador-Geral da República não poderiam ser indicados para uma vaga no Supremo saindo diretamente de um desses cargos. O caso do Procurador-Geral Augusto Aras é exemplar dessa inadequação, pois ele vem , aos olhos de seus próprios pares no Ministério Público, exercendo o cargo não como representante da classe, mas como candidato à vaga do ministro Celso de Mello, que se aposenta compulsoriamente em novembro. O bate-boca que teve com  colegas na recente reunião do Conselho Superior do MPF, inclusive destratando a subprocuradora-geral Luiza Fricheisein com comentários considerados machistas, é o sinal de que aumenta a cada dia o distanciamento entre Aras e os membros do Ministério Público Federal.

Assim, como aponta Toffoli, juízes devem cumprir uma quarenta longa para não usarem seus cargos para fazerem favores ou tornarem-se famosos diante de possíveis eleitores, também os titulares da AGU, como foi Toffoli no governo do PT, e da PGR não deveriam usar os cargos para agradar o presidente do momento para conseguir um assento no Supremo.

O debate sobre a presença dos militares, da ativa e da reserva, no governo do presidente Bolsonaro abrange um outro tipo de “quarentena”. O presidente da Câmara, deputado Rodrigo Maia, já se posicionou a favor de uma legislação que exija que os militares que queiram participar de um governo vão para a reserva antes de assumir cargos, especialmente os de cunho político como ministro de Estado.

Essa é uma abordagem específica de uma questão mais global, que é o uso excessivo de militares em postos da administração federal, tendo mais que dobrado esse número em relação a governos anteriores.

Outra questão relacionada à separação de Poderes no presidencialismo é o hábito brasileiro de parlamentares nos diversos níveis de governo fazerem parte do Executivo, com a possibilidade de pedirem licença dos cargos para os quais foram eleitos para exercerem funções como secretários municipais e estaduais ou ministros.

No presidencialismo puro como nos Estados Unidos, um parlamentar tem que renunciar a seu mandato para aceitar ser ministro no Governo Federal ou nos executivos estaduais ou municipais. Isso porque o Legislativo é um Poder igual ao Executivo e ao Judiciário, não havendo razão para esse intercâmbio de funções, inclusive com o nomeado podendo escolher a remuneração de parlamentar ou da função para a qual foi nomeado.

Essa medida evitaria também que o presidencialismo de coalizão seja deturpado pelo famoso toma-lá-dá-cá. A coalizão se daria em torno de conceitos de programas e projetos. Evidentemente que outro tipo regime, como o parlamentarismo, implica outra concepção. Nele, para ser ministro de Estado é preciso ser parlamentar, são os partidos majoritários e suas coligações que formam o governo.             

O Globo, 01/08/2020