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O show de Bolsonaro

 

Assim como Truman Burbank - o personagem do filme 'O show de Truman', de 1998, que antecipou a chegada dos reality shows ao mundo televisivo - vive em uma cidade cenográfica e é acompanhado por cinco mil câmeras durante 24 horas por dia, sem saber, o presidente Bolsonaro é protagonista de seu próprio show, mas por vontade própria.

Com uma diferença: quando descobre que toda a sua vida é uma farsa, com atores e atrizes fazendo o papel de sua mulher, seu melhor amigo, seus vizinhos, Truman começa a desejar conhecer o mundo verdadeiro. Ao contrário, Bolsonaro faz questão de viver em seu mundo imaginário, onde valem mais as imagens do que a realidade.

O filme antecipa também a crítica à chegada dos novos meios de comunicação, nos quais as pessoas se expõem ao público por prazer, não por ignorância. Bolsonaro vive de tal maneira esse mundo da internet que, para ele, o que há fora dela não existe. Foi o que se viu na quinta-feira, quando chegou ao ápice o exibicionismo de um presidente que vive em um mundo imaginário e usa fake news espalhadas por seus próprios seguidores como verdades incontestáveis que podem mudar a realidade, onde se move com dificuldade.

Os irmãos Gold, Joel, psiquiatra, e Ian, neurologista, cunharam a expressão 'síndrome de Truman', em que pessoas imaginam-se personagens de uma encenação que não podem controlar, considerando tudo o que acontece resultado de alguma manipulação de imagens. Acho que Bolsonaro não sofre dessa síndrome, e sim a de ser Christof, o diretor do programa de televisão que transmite o show de Truman. A certa altura do filme, já conhecedor de que faz parte de uma encenação, Truman pergunta a Christof se não havia nada de real em tudo aquilo. Christof quase se lamenta, dizendo: 'Você era real'.

O diretor manipulava Truman, inventando até traumas para impedir, por exemplo, que tentasse fugir de barco da ilha cenográfica. Os atores que representam sua família contam-lhe que ele tem trauma de mar porque seu pai morreu afogado e nunca mais o corpo apareceu. Bolsonaro, por sua vez, finge acreditar (ou acredita mesmo) serem reais as manipulações de som e imagem que se reproduzem na internet.

O presidente Bolsonaro vive uma grande fake news, acredita em tudo o que sai na internet. Ele prometeu apresentar provas de manipulação das urnas eleitorais e apareceu em uma live com um astrólogo sem a menor credibilidade, juntando fatos que estão na rede há anos, alguns que já foram desmentidos quando mereceriam uma resposta formal, outros para os quais ninguém nem deu atenção, por serem ridículos.

São bobagens que ocupam o tempo do presidente de um país em crise, em meio à maior pandemia em um século, e de uma rede de televisão pública que não pode ser usada para campanha política - a live nada mais foi do que uma ação de campanha. Bolsonaro está fazendo na TV Brasil o mesmo que líderes autocráticos como Fidel Castro, em Cuba, ou Putin, na Rússia, com as TVs oficiais, em transmissões de suas ações e discursos pelo país afora.

A exigência de que os meios de comunicação que mandassem jornalistas ao Palácio da Alvorada para assistir a sua live teriam de transmiti-la na íntegra só serviu para coonestar o papel da TV Brasil. Chega a ser patético, parece que não tem noção da realidade, ou não quer ter.

O filme 'Show de Truman' foi interpretado também como uma variação do Mito da Caverna de Platão. Homens que nunca saíram de uma caverna onde estão presos convivem com imagens que são sombras projetadas na parede, a única realidade que conhecem. Um deles decide procurar uma saída e depara-se com o mundo exterior, muito maior do que aquele que conhecia.

Se voltasse para tentar resgatar os outros prisioneiros, provavelmente não os convenceria de que o que viam era apenas um reflexo distorcido de uma realidade muito maior. Bolsonaro não quer ver a realidade ou, pior, acha que pode levar os brasileiros a acreditar que as fake news divulgadas na internet por sua própria gente são a realidade.

São bobagens que ocupam o tempo do presidente de um país em crise, em meio à maior pandemia em um século.

O Globo, 01/08/2021