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O homem sem nenhum horizonte

 

Quando me perguntam: o que você leu nesta pandemia? Pergunto: nesta pandemia? Existe outra? Respondo. Ler? A Malu Gaspar por um bom tempo não me deixou ler nada. Não teve jeito. Fiquei encerrado, dia e noite, noite e dia em um livro-reportagem intitulado A Organização. Vocês se lembram da frase que acompanhava o chocolatinho Bis? É impossível comer um só? Você não para de comer. Assim acontece com o livro de Malu, das melhores repórteres da revista Piauí. E do Brasil, e olhem que estamos tendo mulheres jornalistas excepcionais!

Bom, estou lendo A Organização. É a mais longa e contundente reportagem que já li. Malu compete com Truman Capote. Lembram-se de A Sangue Frio, que a gente lia, lia, não parava, não tinha como? Aliás, este título do americano poderia ser usado por Malu. Porque se encaixa. Assim como A Organização, poderia ser Chefão, 1, 2, 3, 4, 5, 6.... No filme, baseado em Mario Puzo, trata-se da máfia em forma de ficção. Aqui, mergulhamos na realidade brasileira. A Odebrecht montou um esquema de corrupção que chocou o mundo. A frase não é minha, está na capa do livro. Que livro para Jorge Andrade, estivesse vivo, transformar em peça teatral dentro de seu panorama que vai de A Moratória a Ossos do Barão.

No que você lê a primeira página, está capturado. São mais 650 em ritmo dos antigos filmes seriados semanais. No final do capítulo, um gancho para você continuar. Malu é dona de técnica perfeita. Olhem que leio romances policiais desde os 14 anos. Ellery Queen e Raymond Chandler, de Simenon a Patricia Cornwell. Esse povo todo inventou. Malu conta os bastidores em uma pesquisa espantosa. Não há uma só afirmação que ela não comprove. 

Malu tem um título perfeito, curto, direto, te pega. Mas poderia ter usado também Recordações da Casa dos Mortos (Dostoievski) ou A Casa das Sombras, de Patricia Highsmith. Ou Crônica da Casa Assassinada, de Lúcio Cardoso, e ainda Seminário dos Ratos, de Lygia Fagundes Telles.

Nenhum de nós podia imaginar como a maior empreiteira do Brasil montou um esquema em que o dinheiro ilícito jorrou, sem parar, a todo instante para deputados (ninguém assina uma emenda sem colocar algum no bolso), ministros, governadores, judiciário, presidentes, presidentes de outros países, diretores de estatais, o que você pensar de quem decide grande. Decide com o dinheiro entregue em caixas de sapatos, escondido em cuecas, calcinhas, malas que surgem misteriosamente em apartamentos vazios, em contas ilegais espalhadas pelo mundo. Dá para acreditar que a empresa chegou a comprar um banco para efetuar transações sub-reptícias?

O livro é fascinante, anima, deprime, enoja, distrai, alegra, provoca ânsias, comichões. Impressiona ver a facilidade com que se fala em um milhão, 50 milhões, 100 milhões, 500 milhões. Um bilhão. De reais? De dólares. Que escoam ocultos por meio de uma rede de doleiros, trapaceiros, velhacos, biltres de todos os tipos, finórios, pulhas. Um bilhão, meus leitores. Para os bolsos de gente como o Cunha, Aécio, Cabral, Pimentel, Jucá, Calheiros, Delcídio, Paulo Preto, PT, PSDB - e muitos outros.

Preto no branco, os nomes estão todos nesse livro corajoso, com uma intensidade louca de pesquisas, entrevistas, exemplo para ser adotado em faculdades de jornalismo.

Tem hora que você para e grita: não é possível! De modo algum? Uma rede dessas com nomes tidos como respeitáveis, honrados, afundados em falcatruas. Rios de dinheiro correndo subterraneamente. O dinheiro com que a Odebrecht alimentou a ilegalidade resolveria os problemas de sanitarismo, habitação popular, água, fome deste Brasil. Desapareceu no bolso dos que mandavam. Ou dos que ainda mandam. Pensar que havia executivo da organização que tungava a própria organização. Este é um livro trágico. Pode ser shakespeariano ou nelsonrodriguiano. Marcelo Odebrecht, o príncipe, herdeiro da maior empreiteira do Brasil, o homem que queria ser rei (lembram-se de Rudyard Kipling?), queria ser imperador, monarca, czar, potentado, termina sozinho, brigado com o pai, com a família, amigos, sem ter uma empresa, sem ter nada. Triste é sua última declaração. Quando Malu Gaspar pergunta: “E agora, qual o horizonte?”. Ele diz: “Não há nenhum”.

O Estado de S. Paulo, 12/02/2021