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O fogo-fátuo, uma fábula

 

Ao lado de dom Pedro Casaldáliga, foi emoção para mim ter sido paraninfo em 1979 dos formandos em jornalismo da Universidade Federal de Goiás. Entre eles estavam Cristiana Lobo, Cristina Veiga e Mariangela Berquó.

Depois que a Nave Espacial Solar Orbiter chegou a 77 milhões de quilômetros do Sol, enviando fotos nunca vistas da superfície solar, a nave continuou, só que fotografando a Terra. Súbito, os observadores se assustaram com a visão de um país da América Latina em chamas, seus limites perfeitamente delineados. Cientistas ficaram atônitos: Parece o Brasil! Os mais sábios informaram: Não parece, é! Será a Amazônia? Não, é mais, muito mais, é todo o território hoje denominado Desolado Branco. 

As fotos correram mundo, houve trocas de informações entre redes e cientistas. Soube-se que acontecia naquele momento o fenômeno conhecido como fogo-fátuo, que sempre despertou pavor nas populações interioranas. Chamas estreitas azuis e amarelas subiam dos 210 milhões de sepulturas que cobrem o País, praticamente coladas uma à outra. Daí o Brasil ser conhecido como Desolado Branco. Com pouquíssimos trechos em que ainda havia cidades e pessoas, todo o resto era alvo como a Antártida, sem ser congelado. A situação chegara a esse número espantoso de sepulturas pouco depois que o Capitão Cloroquina deixou o Palácio do Crepúsculo, levando seus filhos univitelinos e um acompanhante habitual, o Homem Invisível, que todos sabiam ser o ministro da Saúde. Abandonando o jet ski, o cavalo e a moto usuais de todas as manhãs, o homem passou a circular pelos ares a bordo de uma anacrônica carruagem puxada por gigantescas emas selvagens de bico afiado, que pastavam no cerrado. Julgando-se Faetonte a conduzir o carro alado do sol, o Capitão, com a força de seus pulmões mofados, jogava caixas de Hidroxicloroquina e exortava: “Coragem gente! Vamos tocar a vida e buscar uma maneira de se safar desse problema. Façam como faço, o possível e o impossível contra essa pandemia. Todos vamos morrer um dia. E daí?”. E os oito destaques de seu carro alegórico completavam: “E daí? E daí? Por mais cruel decepção, eu continuo a te adorar, ninguém pode parar meu coração, que é teu, somente teu”. Como cantava Isaura Garcia há décadas.

Neste momento, houve o clímax do fenômeno fátuo, delineando perfeitamente em fogo o mapa de 8 milhões e meio de quilômetros quadrados. Cientistas explicaram que era a primeira vez que o fenômeno do fogo-fátuo acontecia com tal intensidade. Ele ocorre na superfície de pântanos, porém é mais comum em cemitérios. No momento em que um corpo entra em decomposição, verifica-se a liberação de gás metano que se concentra, provocando uma explosão espontânea com chamas azuladas de dois a três metros de altura. Quando os cemitérios são gigantescos, como no caso deste que tomou todo o território brasileiro com os 210 milhões de mortos pela covid-19, o fogo-fátuo surgiu intenso e as chamas iluminaram hectares e hectares de áreas. As fotos do País provocaram maravilhamento e horror e foram incluídas entre imagens icônicas da história universal. Como a de Isaraa Seblani na véspera do casamento, fazendo fotos vestida de noiva, buquê de flores no regaço, varrida pelo deslocamento de ar da explosão do porto de Beirute em agosto deste ano. O dilúvio bíblico visto por Gustave Doré em 1843. A foto do Sol neste ano de 2020, semelhante a uma grapefruit vermelha. O homem pisando na Lua pela primeira vez no dia 20 de julho de 1969. Foram lembrados momentos como o 12 de abril de 1961, quando Iuri Gagarin, astronauta russo e também comunista, fez poesia ao declarar: “A Terra é azul”. Também a foto da Terra nascendo, como foi vista a bordo da Apolo 8, sete meses depois do Maio de 1968 em Paris. O gato do viciado, drogado e beatnik William Burroughs, dormindo sereno em seu colo, sem data. As explosões atômicas em Hiroshima e Nagasaki em 1945. As montanhas de cadáveres nos campos de concentração alemães. Crianças fugindo dos incêndios no Vietnã com a garota Kim Phuc Phan Thi nua, inteira queimada pelo napalm, em 1972. A nave Challenger explodindo um minuto após subir, em 1986. O formigueiro humano em meio à lama de Serra Pelada, foto de Sebastião Salgado, em 1986. No Sudão, uma criança negra morrendo de fome enquanto um abutre espera para devorá-la, em 1993. As torres gêmeas de Nova York desabando em 2001. Einstein mostrando a língua para o mundo em 1951. O primeiro ultrassom de um feto humano de 18 semanas, em 1964. O estudante chinês parado diante de um tanque de guerra na Praça da Paz Celestial em Pequim, em 1989. Jovem colocando um cravo vermelho no cano de um fuzil em Lisboa, em 25 de abril de 1974. A saia de Marilyn Monroe esvoaçando sobre o respiradouro do metrô de Nova York, em 1955. Cleo Pires nua na Playboy, 2010, com uma frase tatuada na coxa: “Esquecer os nossos caminhos que nos levam sempre aos mesmos lugares”.
O Estado de S. Paulo, 14/08/2020