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Nise da Silveira

 

Nise da Silveira foi um dos maiores nomes da ciência no Brasil. Não só porque mudou a face obscura da psiquiatria, e com raro destemor, mas também porque jamais se deixou contaminar pelo vírus positivista que assola parte de nossa universidade. E como a doutora Nise ficou imune? Primeiro pela grande cultura e sensibilidade de sua formação, sem nunca perder o horizonte ético e humanista, que é o que falta a não poucos neurocientistas deslumbrados, ou aos sempre presentes behavioristas, inclusive com novos rótulos.

Nise foi mais longe, guiada por um instinto de alteridade como poucos, olhos de lince e majestosa intuição. Conhecia em profundidade Jung, Freud e Lacan. Mas não formava pelotão, nem se dobrava a dialetos estéreis e autocentrados. Foi das pessoas mais corajosas que conheci.  Disse-me certa vez que Jung e Freud sabiam bem pouco do inconsciente, o que até hoje não deixa de me encantar pelo espírito raro de abertura.

Acaba de sair a tão esperada reedição de seu belíssimo livro  Imagens do Inconsciente. São páginas que não perderam o fascínio, nem o compromisso ético, mas sobretudo, caro leitor, o delicado olhar poético a seus pacientes. Recusou-se a aplicar o eletrochoque, combateu visceralmente a lobotomia e as mais  perigosas, porque sutis,  camisas-de-força químicas. Ela abriu o ateliê, contra Deus e o mundo, contra os médicos dos anos cinquenta, para tornar-se até hoje contemporânea. E trouxe os animais para o hospital, como co-terapeutas. Acham que exagero?  Leiam aquelas páginas, vejam como alcançou através de desenhos inesquecíveis, as biografias dos que antes não passavam de uma simples frase dos tratados de psiquiatria clássica (e de certo modo eugênica). Nise trouxe, das profundezas do psiquismo, Carlos Pertuis, Emygdio e Adelina, dentre outros, para não falar de Fernando Diniz. Abateu os muros do manicômio. Deu aos pacientes a possibilidade de desenhar o mundo interno, de arrancar as potências do medo, mediante a leitura fantástica daqueles aparentes hieróglifos e, de tal ordem, que as obras saíram do hospital, alcançaram o mundo, e hoje constituem casos exemplares da história e uma psiquiatria nova.     

Luiz Carlos Mello, que colaborou com Nise na preparação dos livros e das imagens, de quem ela mesma dizia que os olhos de Lula (como o chamava), eram também os olhos de Nise, é o responsável pela edição.

Façam uma visita ao Museu de Imagens do Inconsciente, no Hospital Nise da Silveira, único no mundo, com um acervo de quase meio milhão de imagens. E aqui falo aos poetas e aos jovens, sobretudo, e aos que não perderam a coragem de dizer não e percorrem, como Nise, um caminho por fazer.  

Num tempo em que certas figuras da Câmara e do Senado localizam-se entre o código penal e o manual psiquiátrico, Imagens é um livro que responde por uma cultura ética, contra os fascistas de plantão e os inimigos da democracia. 

O Globo, 05/08/2015