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Narrativas

 

O fato de o presidente Lula ter exortado o ditador Nicolas Maduro a fazer “sua própria narrativa” sobre a situação da Venezuela, negando os relatos de organismos internacionais que registram tragédias humanitárias com a fuga em massa de cidadãos para diversos países da América do Sul, especialmente o Brasil, em busca de liberdade e comida, mostra não apenas que a política externa do país está enviesada à esquerda mas, sobretudo, que a proposta do presidente é fruto do que se chama hoje de infocracia, governo da informação, onde a distinção entre ficção e realidade desaparece.

Quem trata desse tema com clareza, num pequeno grande livro justamente intitulado “Infocracia”, da Editora Vozes, é o filosofo coreano, radicado na Alemanha, Byung-Chul Han. Ele vai além da constatação de que as plataformas digitais empobrecem o debate político, tornando imaturos seus viciados, ou os impedindo de amadurecer. Ou que a política se submete às mídias de massa, o entretenimento determina a mediação de conteúdos políticos, deteriorando a racionalidade.

Como consequência, diz ele, ocorre a violação do fundamento social da democracia, fazendo com que notícias se tornem “similares a uma narrativa”. O estímulo a debates mais aprofundados é trocado pelo entretenimento, fazendo com que a capacidade de concentração dos seguidores seja bastante baixa, ao contrário de quando a cultura social era baseada em livros.

Na era das fake News, comenta Byung-Chul Han, a realidade, “com suas verdades factuais, se nos extraviou”, criando um espaço hiper-real, “um universo desfactuado”. Para o filósofo, hoje “não é a posse dos meios de produção que é decisiva para o ganho do poder”, mas o acesso a dados e informações. Mas ele adverte: “A comunicação dirigida pelos algoritmos nas mídias sociais não é nem livre, nem democrática”.

O perigo para a democracia da ação descompromissada com ela das plataformas digitais aumenta com a chegada da inteligência artificial, o que provoca até mesmo o temor de que ela contribua para, no limite, a extinção da raça humana, como centenas de cientistas e estudiosos do tema, até mesmo diretores de plataformas digitais que desenvolvem a IA, advertiram recentemente em comunicado público.

Na quinta-feira passada, em mesa redonda da Academia Brasileira de Letras de que tratarei na próxima coluna com mais profundidade, o jornalista Eugênio Bucci alertou para a necessidade de regulamentação das mídias digitais, obrigando-as a se responsabilizar pela divulgação de fake news ou distorções de informações, para prevenir a democracia.

Sobre isso, escreveu o filósofo Byung-Chul Han: “A infocracia impulsionada por dados mina o processo democrático que pressupõe autonomia e liberdade de vontade”. Essa ameaça aumenta com a capacidade cada vez maior da Inteligência Artificial, inclusive porque ela depende de quem a alimenta com informações. As fake news desenfreadas e sem controle servirão de caldo de cultura para a alimentação de mentiras que parecerão verdades saídas da IA.

Bucci, em sua fala na ABL, defendeu a regulamentação das mídias sociais digitais à exemplo do que já estão fazendo diversos países na Europa e os Estados Unidos. A notícia da aprovação, na Câmara do Estado da Califórnia, da obrigatoriedade de pagamento pelas notícias utilizadas nas plataformas digitais, tem o objetivo de proteger o jornalismo, que é a base da democracia. Para que se mantenham como propagadores de verdades, e não instrumentos de disseminação de noticiais falsas, as plataformas digitais, terão que remunerar a imprensa profissional pelo uso indevido que fazem das notícias produzidas por equipes profissionais que são caras justamente porque se empenham na checagem das informações e têm responsabilidades sociais.

O Globo, 04/06/2023