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Moby Dick

 

Alguém disse que, quando lemos um clássico pela primeira vez, realizamos, a bem da verdade, uma segunda leitura. Mais que um paradoxo, as linhas de força de um grande livro não deixam margem à dúvida.  
  
Esse é o caso de Moby Dick. Antes de navegar com Ismael, naquelas águas altas e perigosas, quem não passou por um sem-número de filmes e desenhos animados, músicas e quadrinhos, que aludem à baleia branca de Herman Melville? Portanto, sabíamos algo de Moby Dick, antes mesmo de aportarmos no romance, através de remissões e fragmentos. 

Um clássico dialoga com as vozes que o precederam. Melville não esqueceu a viagem dos Argonautas, o naufrágio da Odisseia e a tempestade da Eneida
Assim, quando chegamos a Moby não somos uma página em branco. A primeira leitura é, no mínimo, a segunda. 

A tradução de Melville em português adquire novo teor salino. Nossa língua é filha de Netuno e de Ulisses. Cresceu na intimidade com o mar, entre sonhos e lágrimas, naufrágio e calmaria, Vênus e Adamastor. 

A literatura é um repertório infinito, rede lançada em pleno oceano para buscar uma ostra, ou quem sabe uma estrela que dorme, afogada. Ou, ainda, uma baleia, simbólica e profunda.

Há outro fato que me encanta em Moby Dick. Leio um artigo publicado no jornal carioca Última hora: “Casca de Noz em pleno Oceano”. O repórter Irênio Delgado é atraído por um pequeno barco no porto do Rio. O “Buona Stella” partiu de Gênova e levou três meses para chegar ao Brasil. Corria o ano de 1951. Havia um mascote a bordo chamado Tânger. “Cachorro fiel que viveu os mesmos perigos da longa travessia”. Irênio entrevista um jovem de 29 anos, Egidio, oficial telegrafista. Era meu pai. A vida toda me falou da travessia, tempestades e baleias.

Moby estava em mim antes de conhecê-la. 

A “segunda” leitura do romance deu-se numa praia de Niterói de cara para o Atlântico. Ia eu cercado de antigas ideias, O velho e o mar e Os lusíadas. Dezessete anos de idade.  Não conseguia separar-me da ficção que condensava uma vida: o mistério do bem e do mal, as ideias fixas: o mundo sombrio e luminoso de cada personagem. E logo me apresento ao capitão Ahab: “Olá, meu nome é Marco”. E vogo em alto mar, preso ao convés, de olhos bem abertos, a sondar o horizonte.   

Se alguém disser que saiu do romance, não acredite, leitor. Quem bebe dessas águas não é capaz de abandoná-las.  Um clássico passa a fazer parte de nossa biografia, amizade que reconheço, quatro décadas depois, na mesma praia de Itacoatiara. Não tenho dúvidas de que Moby me engoliu. Quem sabe me tornei um novo Jonas, apaziguado no corpo da baleia. 

Jornal de Letras de Lisboa, 28/07/2021