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Mistero Buffo

 

Ariano Suassuna foi um dos últimos grandes intérpretes do país. Sua obra não só compreendeu o Brasil, como foi, por sua vez, compreendida pelas diversas partes de que o Brasil se constitui.  Fato raro entre nós, Suassuna foi amado e admirado com a mesma intensidade.
    
Descobri Suassuna, antes de o conhecer, quando Antiógenes Chaves me levou ao apartamento do maestro Cussy de Almeida, no Recife. Cussy estava momentaneamente órfão de seu stradivarius, guardado em Londres, depois de tocar Vivaldi, na Sala Cecília Meirelles. Falava sobre sírios e reisados, sobre João Pernambuco e o ardente, ascensional Guerra Peixe.
    
Eu andava na casa dos quinze anos, com a cabeça cheia de cromatismo e dissonância.
    
Chegou de repente um senhor com feições familiares. Trazia uma sanfona e deu, pouco depois, as primeiras notas de Asa Branca. Era ninguém menos que Luís Gonzaga, o Homero dos sertões. Improvisava acordes cheios. E alguém tratava longamente da música armorial.
 
Desde então, Suassuna traduz o sabor pessoal daquela tarde no Recife, que aconteceu por força e graça de sua obra, reunindo regiões aparentemente dispersas do Brasil.  
    
Cheguei a ouvi-lo numa aula show aqui no Rio, passados vinte anos. Sua exuberância denunciava não apenas a versatilidade de talentos, mas a cultura que presidia à sua reflexão,  nas raízes populares da comédia, para ir mais longe, para dizer mais (como se não dissesse), como fez, por outro lado, Dario Fo, ao voltar à commedia dell’arte.

A dramaturgia de Suassuna atinge patamares metafísicos, desenhados no limiar da física dos corpos e objetos. Alegorias encarnadas, com densidade artesanal, leves, fluidas, em puro dinamismo. E me refiro sobretudo ao mamulengos (físicos, filosóficos) da peça A pena e a lei, de estrutura dramática exemplar. Penso em Vieira, quando Cheiroso chega a dizer:

Vocês farão um inventário de seus infortúnios e dirão se valeu a pena ter vivido ou não. Será assim julgando o ato que Deus praticou, criando o mundo. Vou eu mesmo servir de acusador, formulando as perguntas fundamentais do processo, tudo aquilo que se pode lançar no rosto de Deus, mais uma vez exposto à multidão”.

Lembro do Misterio buffo de Dario Fo, no momento exato em que a procissão do papa Bonifácio VIII se depara com outra, mais simples e despojada, do próprio Jesus Cristo.  E faço uma visita a João Grilo.

Com a morte de Ariano, perde o Brasil não apenas um de seus maiores candidatos ao Nobel, como também o traço-de-união das partes dispersas e incomunicáveis de um mundo em vias de extinção. 

Comunità Italiana, 15/09/2014