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Mestre Umberto

 

Espero que me perdoe o fato de não atender na semana passada ao convite para falar de sua obra. Preferi o silêncio e repassar algumas cenas de amizade, nesses últimos 20 anos. Primeiro, como leitor de sua afortunada obra, aberta, como sabemos todos, ma non troppo. Depois na reverberação de seu diálogo com Haroldo de Campos, mago da tradução, um de seus grandes leitores. E todo um modo de pensar a literatura, a estética, a filosofia, a sociedade de massa, na escola de sua meditação permanente e que se dividia entre Kant e o super-homem, entre a língua perfeita, pós-babélica, e a de Tomás de Aquino. 

Anos depois, veio a inesperada luta corporal que travei com a tradução dos romances "A ilha do dia anterior" e "Baudolino" Passava dias, quando não semanas, como detetive literário, ao encalço de uma palavra, bem parecido com o Guilherme de Baskerville de "O nome da rosa". Queria ler seu Quando surgiam próximo os primeiros indícios de uma certa palavra, fugia-me, com a onívora por outro lado, e por vingança, o sinônimo em português, e passava longe dos antigos dicionários, razão pela qual, sem a famosa pedra de Champollion, quase me afoguei muitas vezes na seção de obras raras da Biblioteca Nacional, que sempre ajudou a desbaratar os casos semânticos mais perigosos. 

Caro mestre, confesso que vivia no centro de um dilema, como um "visconde partido ao meio": queria ler seu próximo romance, com a onívora urgência de leitor, mas já me desesperava da futura missão de traduzi-lo. Torcia para que demorasse a terminar o novo romance, embora me sentisse adicto e saudoso das páginas futuras. Usávamos fax, em meados dos anos de 1990, e através dele chegavam, a qualquer hora do dia ou da noite, novos esquemas para o romance, outros desenhos específicos, mudanças de curso, frases, palavras. 

Nosso primeiro encontro deu-se em Bolonha, na Rua Marsala 26. Tudo muito leve, sem sombra de pedantismo, cheio de bom humor, a ponto de eu mesmo mandar sair a timidez que me acompanhava. Ouvi com atenção a tipologia de seus tradutores, de como eram terrivelmente meticulosos os alemães, presos a detalhes, a mais não poder, enquanto os japoneses passavam ano e meio em viagem, tirando mil fotos, para estudar lugares que o próprio autor jamais visitou, para depois, e somente depois, darem início à tradução. Já os franceses, cheios de autossuficiência, trabalham sem a mínima consulta ao autor do romance. 

Não ouso imaginar a tipologia dos tradutores brasileiros, por conflito de interesse sem dúvida, mestre Umberto Eco. E a primeira conversa durou quase três horas, enquanto o frio não dava trégua. E mais uma vez, o tema da Idade Média, porque de algum modo ela não terminou, lida com todos os níveis de sua profunda e inestimável riqueza, contra os pruridos de certos manuais positivistas. Mestre Umberto, você mostrou as fraturas do Ocidente, onde se conjugam passado e futuro, sem medo. Sentiremos profundamente a sua falta.     

O Globo, 02/03/2016