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Mais circo que pão

 

Aparentemente, não foi preciso subornar ninguém para trazer a Copa América para o Brasil, depois que países vizinhos, todos envolvidos em crises sanitárias e políticas, ficaram inviabilizados como sede de um torneio de futebol que pode não ter importância maior, mas que, na hora do vamos ver, fará com que os torcedores esqueçam a irresponsabilidade que é organizá-la num país às vésperas de uma terceira onda da Covid-19, com 463 mil mortes nas costas e 14 milhões de desempregados.

Uma jogada diabólica de Bolsonaro, em sentido político, mas também quase literal, dado o perigo de disseminação do vírus. A camisa verde e amarela da seleção brasileira, apropriada indevidamente pelos bolsonaristas, estará espalhada pelo país, dando a ilusão de que os adeptos do presidente são mais numerosos do que na realidade. Desde a Roma Antiga, pão e circo são fatores políticos fundamentais, aqui no Brasil temos hoje mais circo do que pão na mesa do cidadão comum, com a inflação e o desemprego em alta.

O Brasil ganhou o direito de sediar a Copa do Mundo de Futebol de 2014 sete anos antes, no governo Lula, e teve um longo e tortuoso caminho até o momento decisivo. Dilma, que fora eleita com tranquilidade em 2010, chegou à Copa já capengando graças aos escândalos de corrupção que voltavam a atingir o PT com o petrolão e a Operação Lava-Jato. A vaia que a presidente petista recebeu na abertura da Copa do Mundo, a crise econômica e os desvios de dinheiro público nas obras de construções de estádios pelo Brasil afora — hoje, muitos elefantes brancos sem utilidade prática que poderão ser aproveitados agora na Copa América — levou-a fragilizada à campanha presidencial, vencida por uma vantagem mínima que já previa o desastre que encerraria prematuramente seu segundo mandato.

Bolsonaro, como na campanha em que não precisou participar dos debates devido ao atentado que sofreu, não passará pelo teste de popularidade do Maracanã devido à pandemia. Duvido que seja autorizada a presença do público na final. Aglomeração, seja de esquerda ou de direita, não pode ser considerada uma atitude correta, por melhores que sejam os objetivos. O direito à vida deve superar as disputas políticas. Não compro a ideia de que “ir ao espaço público sempre comporta riscos, mas deixar as ruas — grande motor das transformações sociais ao longo da nossa História — como monopólio da extrema-direita, de viés neofascista, é risco maior”, como me mandou dizer numa mensagem o vereador Chico Alencar, criticando minha coluna de domingo, em que lamentava as manifestações da esquerda, por considerar que tiravam da oposição o peso moral de condenar as atitudes do presidente Bolsonaro e de seus seguidores na pandemia. Pelo jeito, Lula também concorda. Segundo Bela Megale, ele não compareceu às manifestações para preservar sua capacidade de criticar as aglomerações bolsonaristas.

Com relação ao futebol, as infecções de jogadores pela Covid-19 falam por si contra a normalização dos jogos, mesmo com protocolos de segurança rígidos e sem a presença de público. Copa América no Brasil, a esta altura do campeonato ( perdão pelo trocadilho), é uma maluquice total, um absurdo que confirma o descaso do governo Bolsonaro com a pandemia.

O Brasil está na iminência de uma terceira onda, quando começar a Copa América devemos estar com cerca de 500 mil mortos. É um desrespeito completo marcar um evento esportivo desse tamanho no Brasil agora, neste momento. O Japão está com dificuldade de confirmar as Olimpíadas em julho, e nós agora vamos fazer um evento dessa magnitude no Brasil... É mais uma tentativa de fingir que está tudo bem entre nós. Foi uma decisão claramente política, que a CBF ajudou a montar.

Um populismo irresponsável, quase suicida. Não há nenhum sentido, o Brasil é atualmente um pária mundial. Os brasileiros estão impedidos de viajar ao exterior, porque somos considerados uma fonte de grande disseminação do coronavírus, e vamos trazer gente de fora para fazer uma grande manifestação esportiva. Com direito a espalhar novas cepas. Acredito até que algumas seleções não venham porque a imagem sanitária do Brasil não favorece a realização de nada internacional por aqui.

O Globo, 01/06/2021