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A linha tênue

 

A centralidade do Supremo Tribunal Federal (STF) na política brasileira vem aumentando muito nos últimos anos, e o Tribunal passou a ser um participante fundamental no jogo político, inclusive porque assumiu este papel em muitas ocasiões. Não só pelas decisões tomadas, monocráticas principalmente, mas também por entrevistas, depoimentos de ministros fora dos autos.

Mas também foi levado, por circunstâncias além de sua vontade, a participar de decisões que deveriam ter sido tomadas por outros poderes, especialmente o Legislativo. O Supremo, como última instância, passou a ser usado politicamente por grupos que têm agenda, sobretudo na questão de valores, como casamento gay, aborto, censura, assuntos delicados que o Legislativo não se dispõe a enfrentar, por receio de tomar posição, ou inação estrutural.

Outros assuntos, em que o Executivo não pretendia se envolver para não se desgastar, como consumo de droga ou, mais amplamente, a liberação de drogas como a maconha, também foram jogados para decisão do Supremo. O Supremo, pois, foi ocupando espaços, muitas vezes por gosto do poder crescente, e se transformou em parte da política, não em uma instância suprema para dar luz à sociedade. Hoje é procurado pelo Executivo, e o presidente Lula tenta uma aproximação para contrabalançar a pressão do Congresso.

Há vários componentes que fazem com que o STF tenha se tornado, em vez de uma fonte de soluções, mais uma interferência política que complica a situação. Muitas vezes os ataques pessoais a ministros, especialmente os mais visados como Alexandre de Moraes ou Gilmar Mendes, transformam decisões que deveriam ser técnicas em emocionais, como foi o caso da agressão sofrida pela família do ministro Moraes no aeroporto em Roma.

Um desentendimento banal se transfigurou em ataque à democracia, ganhando um sentido político maior o que era simplesmente uma grosseria, falta de educação. Essas reações, por humanas que sejam, servem de pretexto para ações de reacionários, que tentam demonizar os ministros que enfrentam os ataques golpistas já perfeitamente comprovados.

A linha tênue entre a legalidade formal e a reação necessária para barrar avanços antidemocráticos vem sendo constantemente ultrapassada, dando margem a que comportamentos ilegais de militantes políticos sejam relevados como se fossem simples reações a abusos de autoridade. Bolsonaristas se aproveitam disso para tentar desmoralizar o STF, que foi o alvo de Bolsonaro durante os quatro anos de governo. E em resposta, o STF se fecha em um corporativismo às vezes inexplicável, passando a atuar de maneira política, apoiando medidas claramente equivocadas de seus membros.

É preciso lembrar que a sensação de onipotência leva a decisões humanas equivocadas. Os deuses, quando querem destruir, primeiro enlouquecem os homens.

Isso não dá certo, em algum momento terá que ser resolvido. Não é papel do Supremo ser uma parte do problema. É o último a errar, e tem que ter a capacidade de se distanciar e tomar a melhor decisão em consonância com a Constituição. Continua, no entanto, no centro do debate, sendo chamado por Bolsonaro para alvo da manifestação pretendida para São Paulo. A manifestação é evidentemente uma tentativa de Bolsonaro de pressionar o STF, com a massa de apoiadores que espera seja robusta o suficiente para protegê-lo de uma ordem de prisão que parece cada vez mais inevitável.

Já passamos por situação semelhante quando da prisão do então ex-presidente Lula na Operação Lava-Jato. A decisão foi sendo revelada aos poucos, com o avanço das investigações e decisões de busca e apreensão na casa do próprio Lula, como já aconteceu com Bolsonaro agora. Havia o temor de que uma prisão de Lula provocaria uma rebelião popular, mas aconteceu uma resistência pacífica no Sindicato dos Metalúrgicos que não evitou sua prisão. Não creio que vá dar certo a manobra de Bolsonaro agora.

O Globo, 19/02/2024