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Hora de parar

 

A revolta que a aparição do deputado Eduardo Bolsonaro no jogo do Brasil contra a Suíça na Copa do Mundo do Catar provocou em bolsonaristas nas redes sociais mostra bem o clima delirante em que se envolvem os que buscam um 'terceiro turno' da eleição presidencial, acampando em tomo de quartéis, reivindicando uma intervenção militar para evitar a posse do presidente eleito Lula em l2 de janeiro. Sentiram-se abandonados pelo filho Zero Três de Bolsonaro, entendendo que ele estar vibrando com o futebol do Brasil no Catar é sinal de que nada acontecerá no país nos próximos dias. Mas é preciso que esses lunáticos parem de agir como guerrilheiros, perseguindo seus supostos inimigos pelo mundo afora.

O que aconteceu no Catar com um dos maiores ícones da cultura brasileira, Gilberto Gil, é repugnante. Mais perigoso ainda é justificar a perseguição política como se ela nada significasse. O empresário de Volta Redonda Ranier Felipe dos Santos Lemache admitiu que fazia parte do grupo que assediou moralmente Gil e sua mulher, Flora, mas negou tê-lo xingado.

Ele não entende (ou finge não entender) que perseguir uma pessoa para criticá-la ou xingá-la em locais públicos ou privados é crime, pois todos têm o direito de pensar e agir como quiserem sem ser perseguidos ou moralmente atacados. E preciso desnaturalizar essas atitudes, pois a vida em sociedade pressupõe a convivência entre contrários. A liberdade de expressão não permite ataques e acusações levianas, que devem ser reparadas na Justiça.

O senador Renan Calheiros (MDB-AL), a propósito da agressão a Gil, disse que apresentará uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) para tipificar a intolerância e crimes contra o Estado Democrático de Direito. Ele citou outros casos de assédio moral acontecidos recentemente, como ataques a ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), ao senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) no Egito e ao ex-presidente da Câmara dos Deputados Rodrigo Maia num resort turístico.

Deveria ter citado também os ataques feitos à atriz Regina Duarte, ex-secretária de Cultura de Bolsonaro, praticamente expulsa de um teatro em São Paulo aos gritos de 'Fora, Bolsonaro'. Também o deputado federal Kim Kataguiri, do União Brasil, principal liderança do Movimento Brasil Livre (MBL), foi impedido de participar de uma palestra na Universidade Federal de São Paulo na última sexta-feira, agredido e expulso do recinto por militantes de esquerda.

Em tempos de Copa do Mundo, o futebol não podería deixar de ser palco desses extremismos. O bolsonarista Neymar, principal jogador da seleção brasileira, sofreu uma contusão séria no tornozelo direito e teve de ser substituído. Sua desdita foi comemorada por petistas, e a presidente do PT, Gleisi Hoffmann, disse um 'já vai tarde', aos berros. Houve também quem sugerisse que torcéssemos contra a seleção brasileira para não dar ao presidente Bolsonaro a chance de usar uma eventual vitória da seleção. Ou que ninguém usasse a camisa amarela, pois tomara-se um símbolo bolsonarista.

Bem fez o presidente eleito Lula ao incentivar o uso dela e dos símbolos nacionais como abandeira, na comemoração futebolística, como sempre aconteceu. Além do mais, é ridículo tentar torcer a tendência natural de vibrar com a vitória da seleção devido a rivalidades políticas. Nem mesmo durante a ditadura militar, quando as razões políticas eram mais graves, foi possível boicotar a seleção que se tomou tricampeã do mundo em 1970 no México.

O futebol sempre foi usado por governantes, especialmente ditadores ou autocratas, como soft power político, por isso governos como os do Catar ou da Rússia, em 2018, quiseram sediar a Copa do Mundo. Resultados do futebol no Brasil servem para eleger jogadores, como o senador Romário, mas não ajudam o governo de turno. Mesmo na ditadura, os governantes se dobraram à tentação de tentar tirar proveito da seleção: Médici, que gostava realmente de futebol, interferiu para que Dario fosse convocado e Saldanha deixasse de ser o técnico do time vitorioso de 1970, e Geisel, que não gostava, tentou convencer Pelé a voltar à seleção em 1974.

Em 1994, com direito a cambalhota de Vampeta na rampa do Palácio do Planalto e beijo de Fernando Henrique Cardoso na taça, o Plano Real teve muito mais a ver com sua eleição que a vitória nos EUA. Em1998, mesmo com derrota na Copa, o Plano Real voltou a ser o responsável pela reeleição. Em2002, o time de Felipão trouxe o penta, mas José Serra, candidato governista, perdeu para Lula. De lá para cá, nem mesmo a derrota em casa em 2014, com a humilhação dos 7 a 1 e tudo, impediu que a então presidente Dilma fosse vitoriosa. Lula se reelegeu em 2006 e elegeu Dilma em 2010, apesar das derrotas brasileiras.

É preciso que esses lunáticos parem de agir como guerrilheiros, perseguindo inimigos imaginários mundo afora.

O Globo, 29/11/2022