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Guerra de narrativas

 

A verdade, como definiu o austríaco Karl Popper, é inalcançável, o mais perto que se chegue dela é insuficiente. Mas é possível saber quando se apresenta o falso. Outro dia, Ruy Castro escreveu sobre a mudança no sentido das palavras nos dias de hoje, e a mais política delas é “narrativa”, que ganhou a conotação de uma versão falsa sobre determinado assunto. Pois estamos em meio a uma guerra de narrativas na disputa presidencial, que se tornará cada vez mais acirrada à medida que a campanha eleitoral acelere.

Os três candidatos que aparecem à frente nas pesquisas de opinião —Lula, Bolsonaro e Sergio Moro — estão envolvidos nos mesmos episódios históricos que serão determinantes na decisão do eleitor, e as narrativas se sucedem, às vezes coincidentes entre dois deles, para tentar desmoralizar o adversário, às vezes disparatadas entre si.

Há momentos em que o ex-presidente Lula e Bolsonaro se aproximam nas narrativas, como quando querem pregar na Operação Lava-Jato a pecha de ter sido uma ação política, não jurídica, em que métodos distorcidos foram utilizados. Bolsonaro outro dia ajudou a narrativa de Lula quando disse que os procuradores de Curitiba “escreviam o depoimento e chamavam o cara para assinar”. Era um ataque ao ex-procurador-chefe da Lava-Jato em Curitiba Deltan Dallagnol, hoje candidato a deputado federal pelo Podemos.

Na mesma narrativa, Bolsonaro disse que Dallagnol o procurara na tentativa de ser escolhido procurador-geral da República. Essa, no entanto, foi desmentida por um vídeo da época do próprio Bolsonaro, em que ele dizia que nunca fora procurado por Dallagnol. A tarefa mais difícil dessa guerra de narrativas é a do presidente atual, pois ele tem de se equilibrar entre tentar desmoralizar seu ex-ministro Sergio Moro e, ao mesmo tempo, sustentar que o ex-presidente Lula é um ladrão, como diz com frequência.

Quando coloca suspeitas sobre a Operação Lava-Jato, Bolsonaro reforça a narrativa de Lula de que foi um perseguido político por uma ação do Judiciário que visou a tirá-lo da campanha de 2018 para favorecê-lo. Devido a essa manobra, Bolsonaro teria recompensado o juiz Sergio Moro, convidando-o para o Ministério da Justiça. Quem diz que se arrependeu de ter aceitado o convite é o próprio Moro, que só descobriu quando já estava no governo que o compromisso de Bolsonaro com o combate à corrupção não era à vera.

O presidente diz que Moro sempre se mostrou desconfortável dentro do governo, que “entrava mudo e saía calado” das reuniões, o que pode confirmar a narrativa de Moro. Difícil acreditar que um juiz que tivesse feito toda essa manobra para tirar Lula da corrida presidencial fosse ingênuo em relação a Bolsonaro, a ponto de não tê-lo reconhecido no saguão do Aeroporto Santos Dumont. Bolsonaro bateu continência para ele, que àquela altura era um ídolo popular, e Moro desprezou-o.

A narrativa de Lula — apoiada por uma série de advogados que se dizem imparciais, mas disputam um lugar ao lado de Lula à mesa de uma confraternização — de que houve um conluio da Justiça, em diversas instâncias do Poder Judiciário, para tirá-lo do páreo pode fazer sentido para seus seguidores, que se eximem de ter de explicar o que aconteceu na Petrobras e em outras estatais.

Os bilhões roubados, depois de confissões, devolvidos ao Erário público, são uma incômoda pedra no caminho dessa narrativa golpista. Moro, como se vê, tem flancos para críticas, assim como Lula e Bolsonaro. O pior dessa guerra de narrativas é que elas se passam no submundo das redes sociais, onde prevalecem as piores versões, e o candidato que não estiver capacitado para defender-se e atacar nesse submundo fracassará inevitavelmente.

Dos três, Moro parece o mais desaparelhado para essa disputa cruenta que se avizinha, por falta de estrutura partidária e experiência política. Por isso, o apoio do partido União Brasil, que nasce da fusão do DEM com o PSL, é tão importante para ele.

Caberá ao pobre do eleitor separar o falso do verdadeiro.

O Globo, 14/12/2021